Wendell dos Reis Veloso[1]
Também não gosto, e não sem razão, “dos elogios com que exaltei Platão, os platônicos e os filósofos acadêmicos”, mais do que o que é lícito aos homens ímpios, principalmente por causa de seus grandes erros dos quais a doutrina cristã deve ser defendida. Eu também disse que “comparados com os argumentos que Cícero usa em seus livros acadêmicos, os meus eram ninharias”, com os quais eu havia refutado esses argumentos energicamente. (Agostinho de Hipona, Retratações, I, I, 4).
A transcrição acima fora retirada da obra Retractaciones/Retratações de Aurélio Agostinho. Aurelio Augustinus nasceu em Tagaste, província romana da Numídia na África (atual Argélia, Norte da África) no dia 13 de novembro de 354 EC. Em sua fase adulta, após 9 anos nos quais esteve associado ao cristianismo maniqueu, Agostinho o rejeita em favorecimento do cristianismo católico, mas não sem antes encantar-se com o platonismo (VELOSO, 2018, 183-184). Em 395 EC teria sido ordenado bispo-auxiliar da diocese de Hipona e em 396 EC, após a morte do bispo-titular Valério, Agostinho ascendia a tal posição, o episcopado de Hipona (COSTA, 2012, 17).
As Retractaciones são uma espécie de revisões ou reconsiderações que o já bispo de Hipona fez acerca de quase toda a sua obra. Embora seja difícil precisar o início da escrita, sabemos através de seu epistolário que este inventário de sua própria produção estava sendo planejado em 412 EC. De modo geral, a intenção seria a de corrigir aquilo que o hiponense, passado algum tempo das reflexões, achasse inadequado ou incorreto, enfatizando, portanto, aquilo que, em sua opinião, deveria ser considerado importante nos seus escritos. (FITZGERALD, 2006, 1143)
No trecho de suas Retratações alocado no início deste texto podemos verificar de modo flagrante o objetivo do hiponense com a referida obra, posto que o epíscopo afirma se arrepender do tom laudatório utilizado por ele para se referir aos platônicos. De igual modo, lamenta os elogios dispensados à retórica de Cícero. O motivo de tamanha compunção seria a alegada inferioridade dos argumentos filosóficos ante a doutrina cristã.
No entanto, a relação, ambígua e complexa dos eclesiásticos católicos, tal como Aurélio Agostinho, com a filosofia dita pagã, em especial com o platonismo, não foi algo pontual. Ao contrário, esta tensão marca a teologia cristã tardo-antiga e medieval. Os autores cristãos se deslocam, às vezes mais e às vezes menos, dos preceitos filosóficos platônicos em benefício da doutrina cristã. Como Miguel Spinelli afirmou ao abordar o caso específico de Gregório de Nissa, tratou-se da “subversão cristã da Filosofia grega” (SPINELLI, 2015, 723).
Peter Brown em suas argumentações sobre o poder do bispo nos séculos IV e V destaca que, a princípio, os integrantes do episcopado já fariam parte de uma elite intelectual, de modo que não seria segredo algum que parte do prestígio social adquirido pelos bispos seria legitimado por serem bons retóricos (BROWN, 1992, 72-75). A retórica, portanto, foi elemento capital na formação das elites cristãs e no aprendizado do sacerdócio, ainda que os eclesiásticos negassem a centralidade da oratória em seus discursos (PUERTAS, 2016, 250).
Dito de modo direto, o uso do sistema retórico, assim como o exercício de funções da administração imperial não se dariam de modo instintivo, mas sim com base no mais alto grau de educação formal. O conhecimento da paideia clássica e seus autores se tornou imprescindível para rebater as críticas pagãs ao mesmo tempo em que se transformou em útil ferramenta intelectual nos numerosos debates internos do cristianismo, assim como também foi útil para a exegese das escrituras entendidas pelos cristãos como sagradas (PUERTAS, 2016, 249).
Este aprendizado era o mesmo dispensado aos membros da aristocracia que ansiavam ocupar qualquer cargo na administração do Império Romano. Os bispos e os clérigos subordinados a eles dividiriam o exercício da autoridade na cidade, produzindo maneiras alternativas para o controle dos habitantes destas regiões. O bispo cristão tornou-se, portanto, uma pessoa digna de reverência. Este ainda se destacaria como o ponto de contato entre os indivíduos proeminentes nas comunidades cristãs e o governo imperial (BROWN, 1992, 77). A proeminência dos bispos seria tamanha que Brown argumenta que na última década do século IV a figura dos eclesiásticos seria fundamental para o controle da multidão e, portanto, a manutenção da paz (BROWN, 1992, 103 e ss).
Durante o período aqui em questão os bispos paulatinamente estenderiam seus domínios para a sociedade romana em geral. O envolvimento contundente destes homens pouco a pouco transformaria a aplicação da justiça, a extensão da caridade, a celebração de cerimônias municipais – agora transformadas em manifestações da espiritualidade cristã –, etc; todos os aspectos da vida cotidiana, das cortes do império e dos reinos aos mais pobres, a vida de todos deveria ser mensurada a partir da doutrina cristã ortodoxa (DAM, 2007, 361).
Puertas (2016) argumenta que se verifica a passagem do vir bonus dicendi peritus para vir sanctus dicendi peritus, ainda que complexa. De modo semelhante Spinelli (2015) afirma que ocorre a passagem do manto do filósofo para o do eclesiástico. Fato é que nas últimas décadas as historiadoras e os historiadores demonstraram que os bispos progressivamente se imiscuíram nos âmbitos sociais e culturais até que se tornaram figuras das quais as comunidades já não poderiam mais prescindir. E grande parte da legitimidade do cargo episcopal viria, portanto, do seu ocupante ser preparado para tal ao cumprir todo o processo educacional formal, o qual era estruturado a partir dos textos entendidos pelos cristãos como pagãos.
Retomemos a questão específica do platonismo. Para Clifford Ando, no processo de expansão da influência social das elites eclesiásticas cristãs, uma elite intelectual cristianizada se valeu de uma linguagem já familiar para o seu público, buscando na filosofia popular da época um modo de fala que tornasse o cristianismo entendível para os seus pares e, especialmente, para os seus rivais. O Platonismo, em sua versão neoplatônica, forneceu a linguagem pela qual as elites intelectuais da Antiguidade Tardia se valeriam para os seus debates (Ando, 1996, 184-187).
Como defende Ronaldo Amaral é a tradição filosófica platônica, não desconsiderando a apropriação que diferentes sociedades no tempo fizeram dela, a mais proeminente entre todas as escolas de pensamento que formam o amálgama do cristianismo (AMARAL, 2017, 89-90), melhor dizendo, especialmente do cristianismo católico e a sua defesa da consubstancialidade que caracterizaria sua deidade, a qual seria três sem deixar de ser uma.
Amaral afirma que sem o platonismo os teólogos cristãos não poderiam sustentar algumas das questões que lhes eram mais caras, como as referentes à revelação e à relação salvífica e transcendente entre o espírito humano e o espírito do deus cristão, esta última a maior contribuição da metafísica platônica ao sistema de pensamento cristão, assevera o autor (AMARAL, 2017, 90). Em palavras do próprio:
A premência, em anterioridade e superioridade, do metafísico sobre o físico, do suprassensível em relação ao sensível, da alma em relação ao corpo, foram as preocupações mais contumazes e inquietantes dos filósofos platônicos desse período. Em uma época em que as mazelas materiais e as inquietações espirituais alçavam os homens a olhar e a buscar um outro mundo além deste universo mundano, promover- se- ia, por isso mesmo, e com grande esforço de assimilação, ou pelo menos de contiguidade, o encontro e a fusão da metafísica platônica com a mensagem cristã fundada na realidade e na verdade de um Deus transcendente e doador deste mesmo estado de transcendência aos seus crentes eleitos. A teologia cristã somava-se, portanto, à metafísica platónica, na medida em que ambas se alimentavam mutuamente daquilo que tinham em comum (AMARAL, 2017, 96).
Fica evidente que na relação dialógica estabelecida entre o platonismo e o cristianismo, este último adquiriu o repertório vocabular e em parte o semântico em torno do qual e a partir do qual se organizaria e enquadraria as vivências. E não apenas daqueles que se identificariam de modo orgânico com a visão de mundo cristã, pois como argumentado por Ronaldo Amaral:
o cristianismo, (…), passaria a ser então uma religião universal e universalizante graças aos princípios filosóficos que adotaria, mais permeáveis e receptivos a outras visões de mundo, e isto por sua vocação mesma (AMARAL, 2017, 90).
Agostinho de Hipona, em escrito do quinto século, A Cidade de Deus, assevera cabalmente que não haveria diferença alguma entre os cristãos e os platônicos, aos quais ele outorga o adjetivo de célebres (Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, I, X, II). Entretanto, no próprio livro em que o bispo faz tal afirmação, também nos indica o rol de leitura através do qual se deu o seu contato com as ideias platônicas: a compilação das obras que o discípulo de Plotino, Porfírio, efetuara (Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, I, X).
Logo, torna-se mais adequado entendermos que o contato de Agostinho fora com um pensamento platônico já ressignificado, o neoplatonismo. Inclusive, torna-se imperioso nos remetermos à lembrança que Peter Brown nos faz, de que, menos em Plotino e mais em Porfírio, o platonismo dos neoplatônicos passara por um filtro religioso. Desta maneira:
Para um platônico cristão, a história do platonismo parecia convergir muito naturalmente com o Cristianismo. Ambos apontavam na mesma direção. Ambos eram radicalmente extramundanos. Cristo dissera: “Meu Reino não é deste mundo”; Platão dissera a mesma coisa sobre o seu reino das ideias (BROWN, 2008, 112).
O neoplatonismo de Plotino e Porfírio convenciam o nosso bispo paulatinamente de que a realidade provavelmente situava-se em um plano que não o físico (CHADWICK, 2009, 21).
De acordo com a tradição platônica a experiência é distante da realidade, a qual, para os seguidores desta tradição, também é imutável (CHADWICK, 2009, 21). Esta realidade configurar-se-ia no Bem, ao qual ligar-se-iam a verdade, a beleza e a bondade ontológicas, elementos imortais transcendentes ao tempo e ao espaço.
Em uma concepção na qual o mundo é um cosmos ordenado hierarquicamente e tudo possui graus diferenciados de existência, o Bem platônico ocuparia o mais alto grau desta hierarquia, assim como também se caracterizaria por sua irredutibilidade às particularidades. Tais características, para os neoplatônicos, provavelmente contrastariam com as coisas terrenas que seriam plurais e, devido à soberba, conflituosas (CHADWICK, 2009, 22). O Bem platônico, entendido por este prisma, possuiria caráter aglutinador e conformador; além de constituir-se na fonte de emanação da existência dos seres.
A partir do exposto, entendemos que o Bem platônico seria o Uno a que Plotino se refere. O autor também liga o Uno ao mundo sempre por meio da noção de causalidade. Ou seja, esta relação – entre o Uno e o mundo – se daria por meio da relação de emanatio ou processão (Ullmann, 2004, 33). Todavia, há que se ressaltar que esta metafísica da criação foi importante para Agostinho de Hipona não somente para explicar a relação entre a divindade e o mundo, mas também para explicar as relações entre as diferentes pessoas da divindade cristã.
A noção plotiniana de emanatio, importantíssima para as conjecturas agostinianas sobre os graus distintos de existência dos diferentes seres sociais, possui algumas importantes características. Para os neoplatônicos o Uno seria a plenitude do ser. É a liberdade que ele possuiria para produzir aquilo que o seu desejo demandar que o caracterizaria como o Principio real de todas as coisas, o autor de tudo que não seja ele próprio. Daí infere-se que tudo aquilo que não fosse o Uno seria proveniente do Uno e, portanto, diverso dele (ULLMANN, 2004, 35-36).
Entretanto, a relação de procedência entre o mundo e o Uno não pode reverberar em uma concepção que assume a existência de um fosso entre o Uno e o múltiplo. Trata-se de uma concepção apressada e inadequada.
Reinholdo Aloysio Ullmann chama atenção que, para os neoplatônicos, Uno e múltiplo encontrar-se-iam unidos, mas reforça que não haveria dependência do Uno em relação ao múltiplo. Também argumenta que os entes vários participariam do Uno, no entanto, sem fazer parte dele. Isto é, esta participação não implica em divisão ou em esgotamento de sua potência criadora (ULLMANN, 2004, 35-36).
Baseados no que já vimos até aqui podemos acatar a assertiva de que, a partir de um ponto de vista filosófico, o tema da criação gira em torno da dependência completa dos entes resultantes da atividade primeva de causalidade (Ullmann, 2004, 39). Ainda sobre o assunto um trecho do texto de Ullmann faz-se pertinentemente esclarecedor:
(…), para o autor das Enéadas, Deus não é tudo, mas Deus está em tudo ou tudo está em Deus. Precisamente é esta a interpretação moderna de Plotino: emanação quer dizer processão do mundo a partir de Deus. Como se há que entender tal processão? Da seguinte maneira: o Uno conserva a sua natureza, nada tira de si, permanece imutável em sua essência. Numa palavra, não se despotencializa. Aquilo que dele procede não é fruto do acaso, mas de sua atividade voluntária e inteligente, criadora, sem recurso à matéria preexistente (ULLMANN, 2004, 37-38).
Atentando para o caráter conformador e emanador do Uno nesta concepção filosófica, assim como também para a matriz socrática existente no pensamento platônico, entendemos que ao falarmos no Uno aludimos ao axioma platônico do lógos. E o conceito de lógos que Platão recebera de Sócrates e os neoplatônicos transformaram em Uno, fora traduzido pela teologia cristã através da palavra latina Verbum. (GARCIA MORENTE, 1980, 87).
A confusão do logos/Uno como Verbum é ratificada pelo próprio Agostinho, quando este, ao comentar sobre as obras platônicas que lera, declara: “Neles li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que ‘ao princípio era o Verbo, e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo: e este, no princípio existia em Deus. (…)’ (Agostinho de Hipona, Confissões, VII, IX).
A coincidência, alegada pelo hiponense, entre pensamento platônico e teologia cristã, reverberou em importante característica de seu pensamento. Para Peter Brown: “Foi uma leitura tão intensa e minuciosa que as ideias de Plotino foram cabalmente absorvidas, “digeridas” e transformadas por Agostinho”; comparando-o com outros pensadores cristãos que também leram neoplatônicos, Brown faz questão de traçar nuances: “No caso de Agostinho, contudo, Plotino e Porfírio encontram-se enxertados de maneira quase imperceptível em seus escritos, como a base sempre presente de seu pensamento” (BROWN, 2008, 113).
Para além do repertório e do elemento universalizante, o qual se coadunaria de modo bastante ajustado à prática imperialista romana, é imprescindível abordar a contribuição do platonismo, em sua versão neoplatônica, ao cristianismo e mais especificamente às proposições do bispo de Hipona, porque é a partir das propostas daqueles que seguiram as reflexões de Platão que Agostinho constrói a sua metafísica, sua ontologia pré-social, a sua superfície políticamente neutra para a ação daqueles que seriam os desígnos divinos e também os humanos, quando estes se afastam daqueles. É graças à proposição de que o Uno é, que a ontologia nicena é associada à estabilidade e à substância, características estas que estruturam a concepção de ortodoxia, o discurso de verdade que fabrica a ficção de natureza que seria aplicada pelo hiponense no gerenciamento de sua diocese e na sua proposta de identidade cristã.
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[1] Doutor em História (PPHR/UFRuralRJ); Professor Adjunto de História Medieval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (wendell.veloso@uerj.br). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8708923340473079
Publicado em 05 de setembro de 2023.
Como citar: VELOSO, Wendell dos Reis. Aurélio Agostinho, leitor de Platão e Epíscopo de Hipona. Blog do POIEMA. Pelotas 05 set 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-aurelio-agostinho-leitor-de-platao-e-episcopo-de-hipona/ Acessado em: Data em que você acessou o artigo.