Edison Cruxen (LAPEHME/UNIPAMPA)[¹]
Somente aos 50 anos de idade, em 1795, no Álbum B, as bruxas aparecem na obra do pintor espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) mas, a partir desse momento, sob diferentes abordagens, elas estarão presentes até o fim de sua vida. Existem dois períodos em que Goya se dedica com mais intensidade a este tema, o primeiro entre 1797 e 1798, onde produz Los Caprichos e os quadros de La Alameda, para os Duques Osuna e o segundo entre 1815 e 1824, onde produz Las Pinturas Negras, na Quinta del Sordo e o Álbum D (de las Brujas y de las Viejas).
Na Espanha, até Goya, não existia a tradição de representação de bruxas na arte. Essa tradição pertence ao norte da Europa, onde durante séculos se desenvolveu a temática imagética das bruxas. É possível que Goya tenha sofrido influências da obra de Hyeronimus Bosch, na representação de monstros, criaturas que causavam espanto e que viviam em um universo imaginário. Mas, as imagens de Goya eram de uma categoria diferente das de Bosch, pois representavam seres que habitavam nossa realidade, porém com formas grotescas e aterrorizantes. Estes seres não provinham de outro mundo, de outra realidade, mas eram a outra face da humanidade. “Bosch introduz os homens em seu universo infernal, Goya introduz o infernal no universo humano” (TODOROV, 2014, p. 43-44).
As bruxas de Goya podem ser interpretadas (pelo menos) sob três expressões. A primeira, que atende ao gosto da aristocracia ilustrada da capital Madrid, que via nas bruxas e sabás motivos para curiosidade e diversão. Os Duques de Osuna foram os grandes mecenas de Goya, assim como de muitos outros artistas. Embora fosse considerada como ignorância popular, a aristocracia ilustrada espanhola, no final do século XVIII, sentia grande curiosidade pela bruxaria. Existia uma atração por questões relacionadas ao ocultismo e mistérios paranormais. Muitos eram os nobres e abastados que, por diversão, colecionavam obras sobre o tema. A bruxaria era assunto compartilhado com grande interesse nas rodas de conversas das altas classes sociais. Desta moda, provém o interesse dos esclarecidos Duques de Osuna em comprar de Goya uma série de seis quadros sobre bruxaria, os Asuntos de Brujas (1798), que enfeitaram sua biblioteca e o gabinete pessoal da duquesa, no Palacio de la Alameda (VALLE, 2010).
A segunda, de crítica social, partia de uma perspectiva ilustrada contra o obscurantismo da Igreja, as superstições do povo e o autoritarismo dos poderes seculares e religiosos. Durante muito tempo em sua vida Goya dedicou-se a servir aos poderes estabelecidos, traduzindo em imagens os princípios que sustentavam o sistema (religião, nobreza e monarquia). Vale lembrar que ele foi o pintor da corte em Carlos III, Carlos IV e José Bonaparte, além de atender às encomendas da mais alta aristocracia madrilenha. Goya foi o Primeiro Pintor da Câmera do Rei (1785) e Diretor da Real Academia de Belas Artes de San Fernando (1795). Mas ele conseguiu inverter essa lógica e utilizar sua obra como instrumento questionador da sociedade e dos poderes, atacando os princípios ideológicos dominantes. Uma vez que na perspectiva ilustrada as bruxas eram farsantes mal intencionadas, marginais que exploravam e sugavam o dinheiro do povo pobre e crédulo, essa é a imagem que Goya utiliza para representar os poderes secular e clerical que sugavam e exploravam o povo (GUIDOLIN; FIANCO, 2017).
Para Argan (1992), Goya acreditava que monstros também poderiam ser gerados pela razão do pensamento ilustrado. As críticas que direcionava ao obscurantismo e à irracionalidade da Igreja e do Absolutismo também realizava à desumanização e terror criados pela busca racionalidade absoluta. As luzes do pensamento ilustrado também poderiam ser geradoras de tempos violentos e obscuros. Para Goya, o projeto da racionalidade ilustrada não passava de uma superstição laica em confronto com uma superstição religiosa. Este pensamento está representado na coleção de 80 gravuras Los Caprichos (1799) e, de forma mais incisiva, na coleção de 85 gravuras Los desastres de la Guerra (1810/15).
A terceira, intimista, é onde o artista purga seus próprios monstros. Uma expressão onde não há condenação, mas aceitação de que o obscuro faz parte dos seres humanos e que o fantástico é parte da existência. Goya contempla os demônios da humanidade. As denominadas Pinturas Negras (1819/23) foram realizadas nas paredes de sua casa, na Quinta del Sordo, nos arredores de Madrid, em um período de distanciamento e reclusão do artista. O fato de não pintar sobre uma tela transportável marca a renúncia de Goya em difundi-las. Elas não foram destinadas para serem vistas por outras pessoas, além do próprio pintor e seus íntimos. As Pinturas Negras são a externalização do lado obscuro do pintor, uma forma de plasmar e purgar seus próprios fantasmas, medos e terrores. Nesta obra, ao contrário das bruxas de Los Caprichos ou Asuntos de Brujas não há espaço para a sátira e o cômico, caracteriza-se não como uma pintura fantástica, mas fantasmagórica, que apresenta uma atmosfera, sufocante, macabra e obscura, com multidões de personagens grotescos e deformados. O Album D (de las Brujas y de las Viejas, 1819/23) faz parte dos oito álbuns pessoais de desenhos de Goya, nominados de A a H. As imagens representam as bruxas, a decrepitude física do passar dos anos e a vulnerabilidade da existência humana, fortemente marcada pelo macabro e grotesco. Conforme a especialista em Goya, Juliet Wilson-Bareau (2015), estas eram obras íntimas, pessoais, sem objetivo de mostrar ao público. Estas bruxas e criaturas fantásticas também estavam dadas apenas aos olhos do artista e de seu círculo próximo de amigos, o que permitiu que Goya desse rédeas soltas à sua imaginação.
Parte da inspiração das brujas e aquelarres (sabás) de Goya tem origem no contato com a obra de seu amigo Leandro Fernández de Moratín, estudioso da história da bruxaria na Espanha, que em 1811 publicou uma edição comentada (e sarcástica) sobre o processo das bruxas de Zugarramurdi (Navarra), publicado pela primeira vez por Juan Mongastón, na cidade de Logroño (La Rioja), em 1611. A bruxaria e os sabás já estavam rica e profundamente arraigados no imaginário popular da época e, com certeza, deviam ser de conhecimento de Goya, mas autores como Carmelo Lisón Tolosana (Las brujas en la historia de España, 1996), Julio Caro Baroja (Las brujas y su mundo, 2011), Tzvetan Todorov (Goya: A Sombra das Luzes, 2014), Josephe Perez (La brujeria em Espanha, 2010) e Gustav Henningsen (El abogado de las brujas, 2010), concordam em apontar a proximidade com Moratín e o acesso aos seus escritos como grande influência para criar suas bruxas.
Conforme Gustav Henningsen (2012) e Mikel Azurmendi (2012), quando o processo de Logroño inicia, em 1609, a palavra aquelarre só existia como topônimo, como nome de determinados prados: akelarre (prado do macho cabrío/bode) ou alkelarre (prado das flores de alka). Esta palavra aparece por primeira vez na documentação da Inquisição em uma carta do Tribunal, em Maio de 1609, em que os inquisidores escrevem que estão ocupados com juntas de brujas y aquelarres, celebrados por toda Navarra. Na tradição campesina de Navarra existiam bruxos e bruxas, mas estes nada tinham a ver com o demônio. Eles eram brujos y brujas de aldea, ou seja, a crença ancestral em pessoas com capacidade de colocar mal olhada nas outras, nas plantações e animais, mas sem qualquer intervenção de forças demoníacas. Da mesma forma, essas mesmas pessoas tinham a capacidade de desfazer o mal olhado, curar e proteger. A bruxaria satânica ou as bruxas como uma seita secreta maléfica eram desconhecidas no País Basco e Navarra antes do Processo de Logroño. Este conceito foi introduzido pelos inquisidores.
Ginzburg, em sua obra História Noturna (2007), constitui uma genealogia do sabá e das bruxas revisitando e analisando perspectivas da Igreja, estudos inquisitoriais e tradições populares cristãs e pré-cristãs, em diversas regiões da Europa. O autor se empenha em constituir, de forma coerente, um complexo mosaico de informações que possibilitou, a partir do século XVI, a Inquisição cristalizar e popularizar estereótipos sobre o sabá e suas relações intrínsecas com as bruxas, apostasia e pacto demoníaco.
No livro El abogado de las brujas (2010), Henningsen apresenta a atuação do inquisidor D. Alonso de Salazar Frías, nos tribunais contra as bruxas em Navarra e no País Basco. Pouco depois do Auto de Fé, o padre produziu um relato e enviou para o Inquisidor Geral, denunciando as irregularidades ocorridas durante os processos. Salazar realizou visitas nas ditas zonas infectadas por bruxaria e pode constatar pessoalmente que naquelas regiões não existiam bruxos ou embruxados, até que os inquisidores começassem a escrever sobre eles. Salazar apontou em seus escritos a injustiça cometida nas condenações através de confissões forçadas e declarações induzidas pela retórica dos inquisidores, que se aproveitavam de pessoas humildes e assustadas. Possivelmente, a identificação entre aquelarre e junta de bruxas seja fruto de uma má interpretação do declarado pelos interrogados. Nenhum deles falava castelhano, mas o vascuense/euskara e todos os interrogatórios foram conduzidos com a mediação de intérpretes.
Para Azurmendi (2013), o fato de em suas falas os acusados indicarem a existência de um “prado do bode”, onde as pessoas se reuniam, serviu para uma identificação errônea (proposital ou não) por parte dos inquisidores. Na cultura tradicional basca, o bode ocupava valores simbólicos positivos de força, vitalidade e fartura, além de estar relacionado a questões identitárias e festivas das comunidades campesinas. A partir desta perspectiva o pesquisador define que o sabá/aquelarre foi uma coprodução entre tradições bascas pré-existentes e uma construção ideológica e intelectual de integrantes da Igreja e da justiça, que gradualmente se impôs a partir do século XVII. Gustav Henningsen (2012), apresenta que o nome aquelarre seria consagrado no Relato do Auto de Fé de Logroño (1611) pelo impressor Mongastón, onde aparece definido como a forma que os bascos chamavam os ajuntamentos, conventículos e juntas de bruxas para adorar o demônio.
Dois dos principais esteriótipos de demonização da bruxaria são o infanticídio e o canibalismo de crianças, fartamente representados em Asuntos de Brujas, Los Caprichos e Album D. A bruxa inverte por completo a lógica das virtudes universais impostas às mulheres da procriação e criação de filhos. Com isso, a bruxa tornava-se uma criatura hedionda, antinatural, que se empenhava em provocar abortos, roubar crianças de seus berços, matá-las e devorá-las. Este ato significava uma agressão direta à comunidade, principalmente em um período (séc. XVIII e XIX) que a infância era tão frágil, onde o número de crianças que não vingavam era muito grande. Nada poderia ser mais demoníaco. No Auto de Logroño, assim como na obra de Goya, são constantes as referências dos cestos com alça (típico dos trabalhos das mulheres das aldeias), utilizados para colocar ossos de tumbas profanadas, carne humana, carregar demônios, juntar sapos e carregar crianças que seriam devoradas. Para Pilar Predraza (1999), bruxas e velhas eram sinônimos na fala popular e, com certeza, na imaginação de Goya. Na Espanha dos séculos XVIII e XIX a velha era um objeto fóbico e abjeto. A feiura do corpo de uma mulher pobre, velha e sozinha estava ligada a questões morais e espirituais, não apenas estéticas.
Amaia Naussia, em seu artigo Mujeres solas y brujeria en Navarra (2012) utiliza como referência as gravuras de Goya que representam a feiura e decrepitude da bruxa velha, da mala mujer, para argumentar que, entre os séculos XVI e XVIII, a mulher jovem era símbolo da beleza física e moral, do amor e do prazer terreno. Mas, com o passar dos anos, essa mesma mulher se convertia em um símbolo de feiura, ódio e sofrimento. O corpo nu de uma anciã era um tabu, algo diabólico. O corpo feminino envelhecido, sem fertilidade e sem desejo sexual se convertia em algo maligno e contaminante. Kayser (1986) define que o grotesco gera estranhamento e sensação de absurdo. O corpo grotesco é ambíguo, monstruoso, deformado e desprezível. Ele é capaz de gerar horror e sorriso pois é desconcertante, desarticula as referências confiáveis do mundo conhecido. O grotesco é desarmonioso, gera uma percepção desagradável do real.
Segundo Julio Caro Baroja (2011), Goya utilizou a bruxaria para criticar os poderes instituídos e conseguiu perceber que o problema da bruxaria não se solucionava à luz de análises racionalistas. Nessa tentativa, Goya deixou imagens muito intensas, que são capazes de produzir pânico. O autor ainda observa que a própria Inquisição gostaria de ter Goya em suas fileiras, pois seus gravados apresentavam todo terror e monstruosidade da bruxaria aos fiéis católicos. Nesta linha de pensamento os desenhos de Goya, mesmo com a intenção de crítica social, também podem ser utilizados para a observação de características estereotipadas sobre a bruxaria satânica, criadas pelas autoridades e fixadas em autos de fé e tratados de demonologia.
Goya se propõe a tornar visível o invisível, convida a ver além do que está posto, valendo-se de metáforas para advertir, afetar, questionar e desestabilizar. Com suas bruxas e aquelarres ele busca gerar diferentes sentidos, valendo-se de referências eruditas e populares. Trazendo sombras para a época das luzes, Goya utilizou a potência da arte para exercitar seu olhar crítico e sua imaginação fantástica (TODOROV, 2014).
No fim de sua vida, Goya, embora participante do movimento ilustrado espanhol, não tinha a intenção de destruir as fantasias e superstições, mas compreendê-las, saber de que forma fazem parte da vida das pessoas, porque geram medo, pavor e, ao mesmo tempo seduzem e fazem rir. A racionalidade pura não dava conta de compreender as facetas da irracionalidade humana. O fantástico, o incrível, o imaterial, o onírico eram formas que Goya utilizava para se aproximar cada vez mais do que conhecemos como realidade. Uma realidade muitas vezes dura, sem esperanças e agressiva, que favorecia uma minoria e explorava e tritura a maioria, mantida sob controle. Esta realidade era representada pela bruxa, aquela que na tradição popular era condenada por sua perversidade demoníaca, a serva de satanás, que na obra de Goya simbolizava os poderes laicos e religiosos da Espanha dos séculos XVIII e XIV.
REFERÊNCIAS:
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BAROJA, Julio Caro. Las brujas y su mundo: Un estudio antropológico de la sociedad en una época oscura. Madrid: Alianza Editorial, 2011.
CASTELLARY, Arturo Colorado. Goya y las Brujas. In. Teatro: Revista de Estudios Culturales /A Journal of Cultural Studies, 2009: Nº 23, pp.217-229. Disponível em: https://digitalcommons.conncoll.edu/teatro/vol23/iss23/21/
GUIDOLIN, Camila; FIANCO, Francisco. As ambiguidades do Iluminismo em algumas obras de Francisco de Goya: leitura de imagens. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. v. 13 – n. 2 – p. 328-348 – maio/ago. 2017.
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KAYSER, Wolfgang. O Grotesco na Pintura e na Literatura, Perspectiva, São Paulo, 1986.
NAUSIA, Amaia. Mujeres solas y brujería en la Navarra de los siglos XVI y XVII. In. Revista Internacional de Estudios Vascos Cuaderno, nº 9, 2012, pp. 216-239. Disponível em:
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PEDRAZA, Pilar. La vieja desnuda: Brujería y abyección. In. Atti del XIX Convegno [Associazione ispanisti italiani]: Roma, 16-18 settembre 1999 / vol. 1, 2001 (Le arti figurative nelle letterature iberiche e iberoamericane), pp. 5-18. Disponível em : https://cvc.cervantes.es/literatura/aispi/pdf/13/13_011.pdf
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WILSON-BAREAU, Juliet. Londres expone el inédito “Album D”. Entrevista concedida à Bárbara Celis, In. El Confidencial, 24/02/2015. Disponível em: https://www.elconfidencial.com/cultura/2015-02-24/goya-se-rebela-contra-el-blo ckbuster_717589/
Figuras
[Figura 1 – El Akelarre/Pintura Negras] https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/el-aquelarre-o-el-gran-cabron/09559184-cfeb-48fe-8acc-89b070b64d92?searchMeta=el%20aquelarre
[Figura 2 – Akelarre/Asuntos de Brujas] https://museolazarogaldiano.blog/2011/10/18/el-aquelarre-goya-mejores-pinturas-museo-lazaro-galdiano/
[Figura 3 – Mucho hay que chupar/Los Caprichos] https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/mucho-hay-que-chupar/67b6ca83-4bad-4375-b47e-92766adde7ae
[Figura 4 – Sueño de hechicera/Album D] https://fundaciongoyaenaragon.es/obra/sueno-de-buena-hechicera-d-15/1368
[Figura 5 – Mala mujer/Album D] http://arts-graphiques.louvre.fr/detail/oeuvres/3/22103-Mala-muger-Mauvaise-fe mme-max
…
[1] Doutor em História pela Pontifício Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) (edisoncruxen@unipampa.edu.br) http://lattes.cnpq.br/8112576746642168
Publicado em 07 de Maio de 2022.
Como citar: CRUXEN, Edison Bisso. As Bruxas e Aquelarres na Obra de Francisco de Goya: Inspirações e Possibilidades Interpretativas (Espanha, Séculos XVIII e XIX). Blog do POIEMA. Pelotas: 07 mai. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-as-bruxas-e-aquelarres-na-obra-de-francisco-de-goya/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.