Maria Cristina Correia Leandro Pereira[1]
Em um dos romances ambientados na Idade Média mais famosos do século passado (assim como sua versão cinematográfica), Umberto Eco (1980) cria uma trama policial em que o riso é passível de morte, como experimentam alguns irmãos de uma fictícia abadia beneditina nos Alpes italianos no século XIV. Parte do sucesso dessa obra junto ao grande público se justifica pelos ecos na narrativa de alguns dos lugares-comuns sobre o período medieval, considerado uma “idade das trevas”, quando uma sisuda Igreja católica controlaria a qualquer custo mentes, livros e saberes. Essa visão não poderia estar mais equivocada, como qualquer estudante de História sabe e pode divertir-se mesmo assim (ou por isso mesmo) com o pastiche criado por Eco. Caso seja medievalista, a primeira morte lhe deve ter sido particularmente significativa: a de um monge iluminador que criava imagens em margens de manuscritos que faziam rir seus companheiros. Nessa passagem há a demonstração – correta do ponto de vista histórico – de que a sisudez e as trevas estavam longe de ser a regra na Idade Média e, ao mesmo tempo, o reforço do topos – historicamente equivocado – do humor subversivo e escondido. Afinal, nos últimos séculos medievais, em especial no XIII e no XIV, era relativamente comum encontrar nas margens de manuscritos iluminados (isto é, livros copiados à mão contendo imagens), mesmo de temática religiosa, cenas e personagens que poderiam fazer rir e que chocariam um espectador nosso contemporâneo. Nem por isso, contudo, eram imagens condenadas ou criticadas: elas faziam parte dos livros, e sua presença em vários deles até hoje é prova disso.
Parafraseando um dos inspiradores de Eco, o abade Bernardo de Claraval, a pergunta que inexoravelmente aflora diante de tais imagens é: O que fazem aqui tantas e tão maravilhosas imagens?[2] Para ajudar a responder essa questão, tomemos a descrição dada por uma entidade virtual afinada com o estado da arte atual a respeito dessas imagens: “[elas] eram empregadas para reforçar o apelo visual do manuscrito e oferecer um comentário ou lição moral relacionada ao texto”[3]. A resposta do programa de IA ChatGPT pode servir de ponto de partida para nosso breve exame das motivações para a ocorrência das imagens marginais, também conhecidas como marginalia, em manuscritos medievais.
Mas antes de passarmos a esse exame, três observações prévias são necessárias. A primeira delas, e que serve de alerta para qualquer estudo sobre imagens, é o cuidado com generalizações. As imagens marginais são de diferentes tipos (inclusive iconográficos), do mesmo modo que os manuscritos que as contêm, e isso frustra necessariamente qualquer tentativa de explicação unívoca. A segunda observação é que as funções têm de ser analisadas juntamente com seus modos de funcionamento: as perguntas “por quê?” e “para quê?” devem ser conjugadas à “como?”. E a terceira é que juízos de valor e interpretações exclusivamente anacrônicas e subjetivas devem ser deixadas de lado. Isso vale, certamente, mesmo para a IA.
De acordo com a resposta por ela oferecida, a primeira função das imagens marginais é aumentar o “apelo visual” do manuscrito. Ela não indica como nem faz referência explícita à dimensão estética, não mencionando por exemplo nem a beleza, nem a feiura dessas imagens. Tal opção é bem-vinda, como vimos acima, sobretudo porque até meados do século XX as imagens nas margens foram consideradas grotescas, rudimentares, não sendo dignas da atenção dos historiadores da arte. Nossa interlocutora virtual frisa, quase ao contrário – e acertadamente –, o poder que essas imagens têm de atrair a atenção para o manuscrito.
Poderíamos mesmo dizer que essa seria uma de suas principais motivações. As imagens marginais invocam o olhar do espectador não só pela temática como também por uma série de operações, a começar por sua posição deslocada da mancha do texto ou do centro da página. Elas também escapam das bordas e dos fundos pintados, estando mais próximas da pele do livro, do próprio pergaminho.
Ao invocar o olhar e a atenção do espectador, o que se pretenderia? Em um nível bem amplo, exibir a riqueza do manuscrito e de seu possuidor, que se permitiu um gasto a mais com imagens que em princípio não seriam necessárias à composição do livro (e que poderiam mesmo ser vistas como meras macaquices, como reclamou um pai dos gastos que teve seu filho para fazer seus livros “babuinarem” – “fecit libros suos babuinare”. BRANNER, 1977, p. 2). Ou seja, de certa forma essas imagens também ajudavam a criar laços entre o objeto e o dono e a mostrar sua identidade – que pode ir além de ser uma pessoa rica (ou esbanjadora, de acordo com o supramencionado pai). Um exemplo bastante explícito são os brasões encontrados em margens, um indício claro da preocupação em demonstrar a quem – ou a que família – pertencia o manuscrito. Isso fica ainda mais patente em casos em que os brasões foram modificados para se adequarem a novos proprietários do manuscrito[4].
Mas passemos à segunda parte da resposta da IA: as imagens marginais se reportariam ao texto, fazendo comentários ou dando lições de moral. Este último ponto é fulcral nas análises sobre esse tipo de imagem – e a própria autora já se dedicou à dimensão moralizante dessas imagens em outra ocasião (PEREIRA, 2018). Contudo, vale sublinhar a ênfase que a IA dá ao texto – e nisso ela não se afasta do comum dos historiadores, que tendem a supervalorizar o escrito em detrimento das imagens (seria nossa IA uma historiadora?).
É importante lembrar que um manuscrito poderia não ser composto apenas de textos, mas também de imagens (além das que estão nas margens). Assim, as imagens marginais poderiam estabelecer relações com essas imagens “centrais” (ou com outras imagens marginais), e não só com o texto. Além disso, é fundamental quebrar o paradigma de que uma imagem necessariamente tem que “ilustrar” um texto (comentando-o ou dando lições a partir dele). As relações entre eles podem ser bastante mais complexas, ou mesmo incompreensíveis para nós, que perdemos o contexto preciso em que foram feitas. E não precisamos nos remeter à descrição de Eco do cotidiano de um scriptorium monástico para tentar evocar isso que perdemos. Podemos ter um vislumbre quando lemos comentários escritos nas margens de manuscritos reclamando da qualidade da tinta, do cansaço do trabalho, da falta de iluminação ou da vontade de beber.
Citemos dois exemplos dessas relações complexas. Em um manuscrito com romances arturianos do século XIII (New Haven, Beinecke Rare Book Library, Yale University, Ms. 229), no fólio 220r, que pertence à obra Queste del Graal, ao lado da imagem que mostra um cavaleiro tipicamente paramentado – Percival – saudando a dama que se encontra no barco, à margem da página está um cavaleiro nu, portando apenas uma cota de malha à cabeça, flechado no ânus por um homem laico híbrido [Fig. 1]. Todos os códigos da cavalaria são rompidos, a margem mostra um mundo de ponta-cabeça, que só é possível naquele espaço da margem. Importa menos, aqui, encontrar um texto que tenha servido de inspiração para a imagem marginal que perceber essa justaposição (PEREIRA, 2018, p. 26).
O segundo exemplo, que envolve ainda mais níveis, é o de um manuscrito do Romance de Alexandre (Oxford, Bodleian Library, Ms. Bod. 264[5]), da metade do século XIV: no fólio 98v, no centro da página estão dois casais montando a cavalo belement, como diz o texto no final da segunda coluna. Na margem há também cenas de “montaria”: de um lado, dois casais, formados cada um deles por um monge e uma freira, em que aqueles as carregam nos ombros, e, de outro, um macaco carregando outros dois macacos em um carrinho de mão [Fig. 2]. A relação entre a imagem central e o texto é de equivalência, quase de ilustração, mas as imagens marginais desmontam a ambos, texto e imagem. Em vez da “bela cavalgada”, há uma espécie de jogo com insinuações eróticas entre monges e freiras, onde o cavaleiro torna-se cavalo. Na outra cena, a ideia de inversão está nos animais antropomorfizados, fazendo uso de um transporte muito pouco elegante, burlando com o termo belement escrito logo acima dos macacos (PEREIRA, 2018, p. 26-27).
Esses exemplos deixam ver também uma das funções mais evidentes das imagens marginais: fazer rir. Elas dão mostra do humor medieval que pode, por vezes, ser facilmente compreendido, por ser próximo ao nosso, e por outras vezes nos escapar absolutamente, considerando sua ancoragem no contexto histórico.
Outra característica do humor é ter frequentemente um fundo moralizante. Ri-se do que é risível. Conhecem-se mais facilmente os valores morais de dada sociedade quando se conhece aquilo de que se pode rir, ou como, quando e onde se pode rir. Um cavaleiro nu, e portanto sem sua armadura, ou um cavaleiro fugindo de um caracol[6] é algo digno de riso, assim como uma freira amamentando um macaco[7], e assim por diante.
Com frequência, essa função moralizante do humor se exerce por meio da inversão – de papéis, de expectativas, de ações. No texto acima mencionado propusemos mesmo uma tipologia dessas inversões: a) inversão de uma imagem no centro; b) inversão de comportamentos virtuosos; c) inversão de comportamentos naturais; d) inversão no uso ou no funcionamento do corpo; e) inversão de papéis de gênero (PEREIRA, 2018, p. 25-37). Dito de modo breve: por contraste, o invertido reforça aquilo que está no lugar.
A referência a lugar não é por acaso: na economia da página, o lugar é fundamental e daí decorre a diferença entre centro e margem. Assim, se uma imagem bíblica pode até ser colocada na margem (afinal, não há limitação para essa dimensão fundante da sociedade cristã medieval[8]), uma imagem que mostra um macaquinho exibindo o traseiro[9] ou um coelho caçando um cachorro[10] não pode estar no centro da página. Há, portanto, tipos, ou categorias, de imagens que só podem estar neste lugar, nas margens.
Por fim, considerando os diferentes tipos de imagens que podem ser encontradas nas margens, estes podem derivar não de temáticas, mas de temporalidades distintas. Ou seja, não necessariamente as imagens marginais são contemporâneas ao resto do manuscrito. Elas podem ter sido acrescentadas depois, e isso as torna testemunhos importantes da recepção e da utilização dos livros. Esse é o caso das garatujas desenhadas por leitores (SILVA, 2021) ou, ainda, um exemplo ainda mais significativo e recorrente, as manículas: pequenas mãos com o dedo apontando usadas para indicar pontos que se quer destacar no texto (e aqui a relação entre imagem marginal e texto é certamente direta, talvez a mais direta de todas). Essas imagens, aliás, terão vida longa, perpetuadas no nosso mundo virtual como as mãozinhas ou mesmo flechas que servem de cursor.
A Roda da Fortuna segue girando para as imagens medievais marginais. De objetos de estudo desprestigiados, hoje são cada vez mais foco de atenção de trabalhos acadêmicos sérios e do público em geral, que se diverte com as páginas na internet e perfis em redes sociais a elas dedicadas. Mais que nunca, o mote do famoso trabalho de Hélio Oiticica, de 1968, citado no título deste artigo, mostra-se adequado: as imagens marginais são novas heroínas do mundo acadêmico e do mundo virtual[11].
Bibliografia
BRANNER, Robert. Manuscript Painting in Paris during the Reign of Saint-Louis: A Study of Styles. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1977.
CAMILLE, Michael. Image on the Edge: the margins of medieval art. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1992.
ECO, Umberto. Il nome della rosa. Milano: Bompiani, 1980. Tradução brasileira: O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
PEREIRA, Maria Cristina. O discurso moralizador das margens dos manuscritos iluminados no Ocidente Medieval. In: FRANÇA, Jean Marcel; PEREIRA, Milena Silveira (org.). Por escrito: lições e relatos do mundo luso-brasileiro. São Carlos: Edufscar, 2018. p. 15-41.
RANDALL, Lilian. Images in the Margins of Gothic Manuscripts. Berkeley: University of California Press, 1966.
SANDLER, Lucy Freeman. “The Study of Marginal Imagery: Past, Present, and Future”. Studies in Iconography 18, 1997, p. 1-49.
SANTOS, Stefanny B. Sobre múltiplos sentidos: imagens de cavaleiros e caracóis nas margens de manuscritos do século XIII ao XV. In: PEREIRA, Maria Cristina; SOUZA, Maria Izabel (org.). Encontros com as imagens medievais: volume II. São Paulo: FFLCH, 2021. p. 215-227.
SCHAPIRO, Meyer. Marginal images and drôlerie. In: Id. Late Antique, Early Christian and Medieval Art. New York: George Braziller, 1979. p. 197-198.
SILVA, Pedro de Oliveira e. Garatuja como categoria para o trabalho com imagens medievais. In: PEREIRA, Maria Cristina; SOUZA, Maria Izabel (org.). Encontros com as imagens medievais: volume II. São Paulo: FFLCH, 2021. p. 184-199.
WIRTH, Jean (ed.). Les marges à drôleries dans les manuscrits gothiques (1250-1350). Genève: Droz, 2008.
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[1] Doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. mcclp@usp.br. http://lattes.cnpq.br/6153091381585654.
[2] O início da famosa Apologia do abade de Claraval assim diz: “Que vêm fazer em vossos claustros, onde os irmãos fazem suas leituras, esses monstros ridículos, essas extraordinárias belezas disformes e essas belas deformidades? Para que são aqueles imundos símios, aqueles ferozes leões, aqueles monstruosos centauros, aqueles semi-homens, aqueles tigres listrados, aqueles cavaleiros combatendo, aqueles caçadores tocando nas suas cornetas? Veem-se aí muitos corpos com uma só cabeça, ou então muitas cabeças para um só corpo […]”. SANCTI BERNARDI ABBATIS CLARAE-VALLENSIS. Apologia ad Guillelmum Sancti-Theoderici Abbatem 12, 29 (PL 182, col. 895-918, col. 916).
[3]“These images were used to enhance the visual appeal of the manuscript and to provide a commentary or a moral lesson related to the text”. Disponível em: https://chat.openai.com/chat, acesso em: 6 fev. 2023. Lançado recentemente, o programa de Inteligência Artificial para elaboração de textos ChatGPT vem movimentando a comunidade acadêmica, gerando preocupações por seu uso indevido na produção de textos de alunos. Mas o exemplo aqui utilizado mostra possibilidades positivas de se trabalhar com a IA.
[4] Um exemplo é um manuscrito da obra Noctes Atticae, de Aulus Gellius, de meados do século XV (Chicago, Newberry Library, Ms. 90), em que se pode ver, na margem inferior do fólio 18r, a silhueta de um brasão apagado e substituído por outro, de tamanho menor, da família Finardi, de Bérgamo.
[5] Disponível em: https://digital.bodleian.ox.ac.uk/objects/ae9f6cca-ae5c-4149-8fe4-95e6eca1f73c/. Acesso em: 2 mar. 2023.
[6] A exemplo do Saltério de Ormesby, do séc. XIII (Ms. Douce 366, fol. 109r). O combate entre cavaleiros e caracóis é um tema usual nas margens, e está sendo estudado por Stefanny Batista dos Santos em sua dissertação de mestrado junto ao PPGHS da USP. Uma prévia pode ser vista em: SANTOS, 2021.
[7] Como pode ser visto em um manuscrito do Romance de Lancelot du Lac de c. 1300 conservado em Manchester, na John Rylands Library, com a cota Ms. fr 1, no fol. 212r.
[8] Um entre vários exemplos é o livro de Horas dito de Taymouth, do segundo quarto do século XIV (Londres, British Library, Ms. Yates Thompson 13), em quatro de seus fólios (120v, 122v, 123v e 125v).
[9] Como ocorre em um missal do séc. XIV (La Haye, Koninklijke Bibliotheek, Ms. D40, fol. 124r).
[10] A exemplo dos Decretais Smithfield, de fim do séc. XIII ou início do séc. XIV, conservado em Londres (British Library, Ms. Royal 10 E IV, fol. 62r).
[11] As operações de inversão, de que são pródigas as imagens nas margens, são também evocadas na obra de Oiticica “Seja marginal seja herói”. A contrapelo da tristemente célebre fórmula “bandido bom é bandido morto”, o artista faz do marginal um herói: o malandro Cara de Cavalo acusado de matar um policial e que foi executado por um grupo de extermínio formado por policiais em 1964. É ele, o “bandido”, e não os “mocinhos”, a polícia, o homenageado. As inversões não param aí: Oiticica coloca o marginal no centro da bandeira-poema, enquanto o texto está mais para a margem. No entanto, a maior inversão ocorre na própria imagem: na fotografia serigrafada em que jaz morto, Cara de Cavalo tem os braços abertos tal um Cristo crucificado. A imagem marginal passou para o centro, o marginal se transformou em herói, ou no próprio crucificado.
Publicado em 04 de Abril de 2023.
Como citar: PEREIRA, Maria Cristina Correia Leandro: “Seja Marginal, Seja Herói”: Por uma ampliação do campo de estudo da História das Imagens Medievais. Blog do POIEMA. Pelotas: 04 abr. 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/seja-marginal-seja-heroi-por-uma-ampliacao-do-campo-de-estudo-da-historia-das-imagens-medievais/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.