NOTAS SOBRE A CAVALARIA

Marcus Baccega (UFMA)[1]

 

A cavalaria já nasce estilizada, afirma o historiador holandês Johann Huizinga no clássico O Outono da Idade Média (1919)[2]. É fato notório que, desde os primórdios do processo social plurissecular de gesta e ascensão da cavalaria, entre os séculos XI e XIII, mostrou-se vasta a produção escrita vernácula sobre esta camada social, como atestam as canções de gesta, os romans e, após Giovanni Boccaccio, as novelas de cavalaria. Estes guerreiros não apenas foram retratados, mas, sim, constituídos por tal cultura escrita alto e centro-medieval. Desde cedo, esteve em jogo a configuração de um ethos cavaleiresco por parte das camadas sociais hegemônicas da Idade Média Central, ou seja, as aristocracias clerical e nobiliárquica.

As canções de gesta, cujo modelo primordial é a célebre Chanson de Roland (c. 1080), revelam um eixo narrativo eminentemente oral, constituído por aliterações, longos estribilhos e outras estratégias de memorização, seja por parte do declamador ou do auditório de ouvintes. Por sua vez, o roman descortina um horizonte de expectativas e relações sociais complexas e, em grande medida, palacianas e aristocráticas. O neologismo roman advém da expressão francesa mettre en roman, que significa, fundamentalmente, a operação de traduzir para um idioma vernáculo neolatino um corpus originalmente redigido em latim.

Coetâneo ao gênero retórico-poético da Historiografia, o roman centro-medieval traça uma representação abrangente da cavalaria e procura desenhar-lhe um ethos tristânico, do jovem guerreiro andante, que busca aventuras, exibe grandes feitos de armas e ambiciona glórias mundanas, fama e riqueza. Como explicar, então, que alguns romans, principalmente a muito divulgada Demanda do Santo Graal, possam ter notas clericais tão visíveis? Inicia-se, com esta indagação, a problemática que nos parece mais relevante. Sendo a cavalaria uma camada social ascendente durante a Idade Média Central, era necessário criar-lhe um molde ideal, não simplesmente para representá-la, e, sim, para normatizá-la e discipliná-la. Este processo retórico-disciplinar de modelagem da cavalaria implicou sua recepção por parte do ordo nobiliárquico, na condição de pequena nobreza guerreira. Com o passar do tempo e a crescente identificação da figura do cavaleiro à própria nobreza de bellatores, os filhos secundogênitos dos nobres feudais tornavam-se cavaleiros.

Recebendo um certo dote familiar em ouro, prata ou pedras preciosas, esses novos cavaleiros partiam em busca de aventuras e feitos em armas, visando a participar de justas e torneios e, eventualmente, contrair matrimônio com nobres donzelas, sendo-lhes, algumas vezes, enfeudados direitos como a posse fundiária, tributária, judicante, de ordenação sacerdotal, entre outros exemplos. Em alguma medida, desde auctoritates[3] como o épico e trovador da Champanha Chrétien de Troyes ou seu contendor cortesão Guillaume d’Arras, ambos declamadores da corte de Felipe de Flandres (1143-1191), o roman é um inventário da vida cavaleiresca, mas não apenas isso.

Sendo, como afirma Paul Zumthor, em seu magistral La Lettre et la Voix: de la “littérature” médiévale (1978), tanto Guillaume d’Arras quanto Chrétien de Troyes eram clérigos convivas de Maria de Champagne (1145-1198) e, ulteriormente, de Felipe de Flandres. É notório como tais figuras, de formação clerical basilar e portadores de algumas religiones clericais, percorrem um itinerário que unifica as cortes principescas, senhoriais e episcopais a localidades de frequência popular, como tabernas, praças públicas, estradas, estalagens, cemitérios.

Tais atores sociais de cultura intermediária, como bem conceitua Hilário Franco Júnior, em Meu, Teu, Nosso: Reflexões sobre o conceito de cultura intermediária, ensaio componente da coletânea A Eva Barbada (1995), são agentes híbridos, que se enunciam a partir de uma ampla camada de interface de símbolos, mitos e ritos, entre a cultura popular e a cultura erudita. Em suma, esses atores de uma cultura intermediária centro-medieval são responsáveis pelo trânsito da oralidade dos conteúdos cavaleirescos e trovadorescos não apenas pelas cortes, mas também pelos lugares de manifestação da cultura popular. Sua marca sinalética é a declamação oral e a escrita em idioma vernáculo, considerada a última um auxílio para a oralidade prevalecente.

Outros autores canônicos, como Mikhail Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1957), Aaron Gurevitch em As categorias da cultura medieval (1983) ou mesmo Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes (1976), preferem falar sobre uma circularidade – de fato existente – entre uma cultura de alto repertório (erudita), acalentada pelos litterati (versados no idioma latino), e uma cultura popular cultivada pelos illiterati. A cultura popular, inicialmente desprovida de registro escrito, manifesta-se pela ampla gama de gestos, paródias, contos orais, saberes ancestrais. Este conhecimento atinge os setores de cultura intermediária, que se valem de um determinado vernáculo para dar registro a essas manifestações culturais, a partir do século VIII-IX.

Entretanto, os romans, mais pronunciadamente que as canções de gesta, revelam a elocução de outra voz, não coincidente com o ethos tristânico do amor cortês. Se é verdade que em alguns famosos romans centro-medievais, caso, por excelência, de Tristan et Iseut, há uma narrativa densa sobre o modelo cavaleiresco tristânico, seu cultivo da liturgia palaciana retórico-poética do fin’ amor (amor cortês) e sua sanha por aventuras e feitos em armas, outra é a voz que necessitamos escutar.

Trata-se da voz clericalizante do foco narrativo de grandes romans como a já mencionada Demanda do Santo Graal, com quatro versões ducentistas, a bretã do Ciclo da Vulgata (c. 1220), aquela do Ciclo da Post-Vulgata (c. 1235), a portuguesa (1248) e, finalmente, a finissecular versão alemã (c. 1290). Nestes corpora narrativos, há um nítido tom moralizante e clericalizante, que visa a converter o cavaleiro em miles Christi, um soldado de Cristo. Leia-se, um guerreiro sob o comando do Corpus Mysticum de Cristo na Terra, a Igreja. O integrante da Militia Christi, o “exército” da Igreja, abdica da fama, da glória mundana e da vã cobiça por ascensão social, típicas do miles saeculi, o cavaleiro cortês. O único intuito do miles Christi é servir a Deus, sacramentalmente presente no mundo por seu Corpus Mysticum, contribuir e mesmo sacrificar-se para a maior glória de Cristo. Sob a pluma de São Bernardo de Claraval (c.1090-1153), destacado ideólogo orgânico da Igreja Medieval, o ideal da Militia Christi será projetado sobre a Ordem dos Templários (1118), representada, ideologicamente, como perfeita sociedade cristológica de monges-guerreiros.

Como se pode perceber, enfrentam-se dois projetos cristológicos antagônicos quanto à imagem e à conduta ideias do cavaleiro. Esta pugna é um epifenômeno de uma conflagração de maior amplitude, mas que passa, necessariamente, pela figura do cavaleiro. Trata-se de um embate interno ao bloco hegemônico centro-medieval, constituído em torno de um acordo, muitas vezes tenso e frágil, entre as aristocracias clerical e nobiliárquica. Os séculos XI a XIII conheceram uma intensa disputa retórico-política entre a pretensão de erigir uma teocracia pontifícia, por parte da chamada Reforma Eclesial (dita “Gregoriana”), por um lado, e por outro, uma resistência simbólica da nobreza de espada a essa investida clerical.

Com efeito, o ordo nobiliárquico procura resistir à pretensão política de plenitudo potestatis da Igreja por meio de uma imensa efabulação mitopoética que, ao fim, engendra um cristianismo alternativo, tendente à heresia e profundamente impregnado de mitemas pré-cristãos, celtas, germânicos e greco-romanos. São exemplos os mitos da fada Melusina e sua vinculação com a linhagem nobre de Poitou, os Lusignan, ou o mitema da mulher-demônio, que seria ancestral da Dinastia dos Plantagenetas. Este processo histórico foi denominado Reação Folclórica por Jacques Le Goff, em seu belo ensaio Cultura eclesiástica e cultura folclórica na Idade Média: São Marcelo de Paris e o dragão (1970).

No fundo, a disputa retórico-política pela imagem e pelo ethos dos cavaleiros desvela a tensão interna ao bloco hegemônico medieval, exibindo as contradições entre as próprias camadas sociais hegemônicas. Como ensina o filósofo político italiano Antonio Gramsci, no XXIII de seus Cadernos do Cárcere (1937), a capacidade de um determinado concerto hegemônico de impor uma ordenação social coesa depende do fortalecimento de sua tessitura interna, o que pressupõe um compromisso retórico-político entre as camadas que o constituem. É nestes precisos termos que surge a figura do cavaleiro perfeito Galaad, destinado a comungar dos mistérios e beatitudes mais recônditos do Santo Graal.  Assim como o monte que leva seu nome no capítulo 31, versículo 48 do Livro de Genesis, o personagem Galaad represente um ponto de convergência e compromisso entre os dois ethoi cavaleirescos, por meio de uma ascendência da Igreja sobre a aristocracia de espada, reforçando a coesão interna do bloco hegemônico.

Como assinalamos no início deste breve texto, a cavalaria realmente já nasce estilizada, na medida em que seus contornos ideológicos e a ética cavaleiresca que se lhe propõe atravessam um disputa retórico-política, desde seus primórdios. Os guerreiros haviam sido, ao princípio, armados para resguardar os domínios senhoriais durante a renovatio imperii carolíngia e, depois, durante aquela que Marc Bloch denominou Primeira Época Feudal (atomização do poder após o esfacelamento do Imperium Romanum carolíngio). Como integrantes do conjunto subalterno da sociedade alto-medieval, os cavaleiros, não raras vezes, cometiam pequenos ou grandes delitos, como assaltos em vias ou assassinatos a soldo. Já ao longo dos séculos XI a XIII, de camada subalterna, os cavaleiros ascendem à posição inferior do ordo nobiliárquico. Essa ascensão plurissecular permite-se entrever na semelhança morfológica entre os termos Knecht (“servo”, em alemão) e Knight (cavaleiro, em inglês). Desde muito cedo, o papel social e de exemplaridade de conduta da cavalaria foi objeto de acirrada disputa ideológica.

Tal controvérsia, entre a Igreja Reformada e a Reação Folclórica, descortina o próprio caráter retórico-argumentativo dos corpora cavaleirescos em vernáculo. Ao invés de pensá-los como escritos ficcionais, pensamos que há maior proveito teórico em uma tipificação retórica. Para Aristóteles, há fundamentalmente três grandes gêneros retóricos: o deliberativo (voltado para o futuro), o judiciário (voltado para o passado) e o epidítico ou demonstrativo (voltado para o presente do enunciador). Concebemos e propomos que as narrativas cavaleirescas alto, centro e baixo-medievais estejam inseridas no gênero retórico epidítico, uma vez que propõem modelos do bom cavaleiro e do mau cavaleiro. Esse último, cultor do amor cortês, dos feitos em armas e da vã glória do mundo, representado por Lancelot, nos escrito artúrico-graalescos, potencialmente felão, opõe-se ao miles Christi, preposto militar da Igreja e de seu projeto político de plenitudo potestatis, figurado no melhor cavaleiro do mundo, Galaad.

Neste sentido, pensamos que a matéria cavaleiresca, desde a origem estilizada, provê um solo ideológico privilegiado para se pesquisar as auto e hetero-representações cunhadas no seio do embate entre a Reação Folclórica e a Reforma Pontifical.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Arte Retórica. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1951.

BACCEGA, Marcus. O Sacramento do Santo Graal. Curitiba: Editora CRV, 2018.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 2010.

BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1997.

BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.

GUREVITCH, Aaron. Les catégories de la culture médiévale. Paris: Editions Gallimard, 1998.

HUIZINGA, Johann. The Autumn of the Middle Ages. Chicago: The University of Chicago Press, 2020.

ZUMTHOR, Paul. La Lettre et la Voix: de la “littérature” médiévale. Paris: Éditions du Seuil, 2003.

 

[1] Doutor em História pela Universidade Federal de São Paulo (FFLCH-USP). Pesquisador do Grupo de Estudos Celtas e Germânicos (BRATHAIR) e do Grupo de Estudos e Pesquisas (HILL – História, Cultura Letrada e Outras Linguagens), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS-UFMA). Contato: marcusbaccega@uol.com.br Currículo: http://lattes.cnpq.br/5718340897020123

[2] Nota do Editor: As datas designam a publicação dos originais.

[3] O uso da categoria retórica da auctoritas faz-se aqui necessário como medida de precisão analítica. Não há, durante a Alta Idade Média (séculos IX-XI) e na Idade Média Central (séculos XI-XIII) a ideia de uma subjetividade criadora em termos estéticos. Os textos, para adquirirem maior circulação e reputação por onde circulassem, eram atribuídos a nomes de respeito, celebridade intelectual e apreço pela comunidade de potenciais leitores e ouvintes.


Publicado em 05 de Novembro de 2024.

Como citar: BACCEGA, Marcus. Notas sobre a cavalaria. Blog do POIEMA. Pelotas: 05 nov. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/notas-sobre-a-cavalaria/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.