Texto: No Mercado das Memórias dos Mestres dos Século XI e XII[1]

Carlile Lanzieri Júnior (UFMT – Vivarium)

 

Um paraíso do estudante: ensinar e debater na Paris medieval é um dos livros mais recentes de Olga Weijers (2015). Professora da Universidade de Paris, Weijers há décadas leciona e produz pesquisas voltadas para a vida intelectual na Idade Média, mais especificamente entre os séculos XII e XIII. Como o título sugere, o livro em questão é um convite ao leitor que deseja conhecer detalhes do cotidiano da Universidade de Paris em seus primórdios. Dos rituais de iniciação à divisão básica dos currículos a passar pela organização da vida administrativa, pelo trabalho docente e pelas etapas da formação discente, Olga Weijers trouxe a público a história exemplar de uma das instituições que é tratada pelos medievalistas como uma das maiores e mais notáveis criações da Idade Média.

Em diversas línguas, existe uma gama enorme de publicações cujo objetivo é apresentar a história das universidades, das razões múltiplas para o seu surgimento e gradual estruturação à sua disseminação por diferentes regiões da Europa medieval. Mesmo os historiadores e demais pesquisadores que se debruçam sobre a história da educação como um todo, dão a elas um grande destaque a reafirmar a sua condição de legado da Idade Média. Todavia, não raramente como uma espécie de antecipação apressada da modernidade, a escrita dessa história costuma trazer em si muitas vezes o esquecimento ou o tratamento menos acurado daquilo que foi feito em séculos anteriores em termos de formação discente, formação esta produzida em escolas ligadas a mosteiros e a catedrais urbanas, quando não eram aquelas que mantidas por mestres avulsos a oferecer em locais improvisados os seus conhecimentos a jovens estudantes em troca de algum de algum fomento material e proteção pessoal (RUBENSTEIN & VAUGHN, 2006).

Assim, mais do que testemunhas de um momento de passagem ou de preparação para a chegada de algo maior e mais vistoso, as histórias que temos em mãos estão distantes daquelas que Olga Weijers dispôs em seu livro que até aqui nos serviu como contraponto didático-argumentativo. Se o século XIII foi o período no qual a licença e as primeiras regras para ensinar em todos os lugares foram estabelecidas e aninhadas nas nascentes universidades, pouco mais de cem anos antes, as relações eram outras, mais diretas e pessoais, portanto, mais frágeis, tensas e instáveis. Certamente, as condenações, por exemplo, de alguns mestres dos séculos XI e XII por prática de heresia estão entre as “dores de crescimento da teologia ocidental” (STECKEL, 2020). Para análises um pouco mais justas, estas não podem ser dissociadas das urdiduras de seus ambientes físicos, políticos e sociais (BOSCH, 2021). Portanto, os atos de lembrar e escrever a respeito do que foi lembrado podem não ter sido conduzidos por razões apenas de aconselhamento ético exemplar.

Além disso, frisamos que este também era o tempo no qual mestres e discípulos seguiam com suas atividades a estabelecer vínculos variados em escolas episcopais e monásticas e também em outras pequenas de existência às vezes efêmera e mantidas por alguns abnegados cujo trabalho e a fama pessoal costumavam ser os únicos indicadores do sucesso dos locais nos quais ministravam suas aulas. Não foram raros os casos em que a morte ou a partida de um renomado mestre para um outro lugar sem um devido sucessor significaram a decadência de uma escola outrora famosa e por muita gente requisitada. Por fim, quando duradouros, esses vínculos poderiam ser o início de carreiras de sucesso; quando não, poderiam significar fracasso e ostracismo. Por isso, a importância de rememora-los e compartilha-los a depender das circunstâncias, obviamente (MEWS, 2020).

Além disso, é importante chamar a atenção para um fato não menos relevante e comum ao período anterior ao supracitado advento das primeiras universidades e da respectiva institucionalização do ensino que elas ajudaram a construir: a transmissão da autoridade de um antigo mestre para um sucessor costumava ocorrer de forma gradual e não havia um momento ou um ritual para marcar quando e como essa transferência estava completa. Por conseguinte, a criação e a manutenção de vínculos pessoais e afetivos com um ou vários mestres e as boas relações com os poderes locais eram importantes para a ascensão de alguém antes discípulo a este posto ou algo correlato. E este poderia ou não obter sucesso em sua missão que costumava seguir ao sabor das referidas relações de força por ele estabelecidas e por outras presentes nos diferentes contextos nos quais ele se inseria ou desejava se inserir. Essas relações também se mostraram assaz importantes para os mestres que conseguiram alcançar o status um dia desejado e que precisavam mantê-lo ao longo dos anos ou das décadas subsequentes (LONG, SNIJDERS & VANDERPUTTEN, 2019).

Também é de suma importância explicitar que as estruturas educacionais que existiram nos séculos que antecederam o surgimento das universidades eram amplamente baseadas no estreito vínculo entre um mestre e seus estudantes. Uma relação de bases hierárquicas, mas, ao mesmo tempo, marcada pela reciprocidade. Embora houvesse uma fissura aqui ou uma outra ali fruto de algum desentendimento ou desgastes pontuais, algo normal se levarmos em consideração o grande número de jovens envolvidos, o natural era que esses relacionamentos se tornassem perpétuos. Mesmo quando o estudante de outrora era finalmente alçado ao posto de mestre, o relacionamento anterior não era dissolvido, pelo menos não era esse o habitual. Em outros termos, o novo mestre ainda era discípulo de seu velho mestre enquanto assumia a condição de mestre dos próprios estudantes agrupados sob sua responsabilidade e assim por diante. Ademais, esses relacionamentos eram a estrutura subjacente de toda uma rede de relações constituída por linhas genealógicas que se cruzavam e se multiplicavam a ligar gerações e criar sistemas variados de filiações éticas, religiosas e intelectuais que, em última análise, transcendiam as fronteiras espaciais e temporais até então existentes. E como as escolas não estavam limitadas ao conteúdo textual do que nelas era ensinado, é factível supor que a vida escolar da época seguia em variadas direções pela difusão dos seus ensinamentos, por sua recepção por outros mestres e pelo uso da reputação destes dentro da sociedade, sobretudo em seus extratos mais elevados.

Portanto, em paralelo com a falta dos mencionados elementos institucionais, a dificuldade de se estabelecer o reconhecimento de ritos de passagem capazes de marcar a mudança da condição intelectual de um estudante que conseguiu se tornar um mestre traz uma série de problemas interpretativos para os que desejam estudar a educação que existiu antes das universidades. No entanto, os problemas maiores talvez não estejam exatamente aí, mas na procura por semelhanças em algo que deveríamos tratar por meio de uma abordagem que se mostre capaz de enfatizar a alteridade. Sem dúvida, isso nos ajudaria a pensar com a devida contextualização histórica e conceitual o quão foram diretas as relações que então eram construídas e o quanto a trajetória de cada um e os conhecimentos e experiências acumuladas no curso de vários anos e décadas poderiam pesar nesse processo de transição e afirmação e o quanto tudo isso também teria a capacidade de interferir e moldar as memórias posteriormente criadas acerca de situações rememoradas em textos que ganharam forma muitos anos depois nos quais essas se deram (LANZIERI JÚNIOR, 2014).

Com efeito, acreditamos que, depois de serem longamente guardadas na memória e transformadas em texto em algum momento e por algum motivo, essas “heranças negociadas” foram significativas para a transmissão de vários tipos de legados de um mestre ao seu discípulo (ou aos seus discípulos). E uma vez transmitida à sua descendência intelectual, essa “herança” poderia implicar no estabelecimento de uma série de conexões ao longo do tempo. Por conseguinte, explorar como uma determinada herança foi empregada com o objetivo de constituir ideias de legitimidade, autoridade e afinidade é de vital importância. No caso dos personagens com os quais trabalhamos de maneira mais detida, todos eles mestres (novos ou não no exercício de seu ofício) e que de uma forma ou de outra estiveram ligados em algum momento de suas vidas às escolas monásticas e das catedrais urbanas do século XII, essas memórias podem ser basicamente agrupadas em pelo menos seis níveis complementares e não hierárquicos, a saber: saberes letrados acumulados a respeito das sete artes liberais, técnicas de ensino, experiências de vida marcantes, mestres dos quais um dia foram discípulos, lugares por onde passaram em busca de conhecimentos e críticas à degenerescência dos locais nos quais estavam instalados (BRUUN & GLASER, 2008).

Para além dessas situações exemplificadas, as memórias reavivadas também poderiam indicar tensões e disputas existentes entre mestres e destes com alguns dos próprios discípulos, disputas que em algumas ocasiões derivaram para acusações de heresia cuja confirmação ou não revelaria muito acerca das condições de um mestre e da eficiência ou não de suas redes de apoios políticos e econômicos que poderiam assegurar uma posição de autoridade dentro do mercado acadêmico por eles acessado (BOSCH, 2021, especialmente o capítulo 5; MEWS, 2020, p. 15 e 28). E também através da qualidade de seus ensinamentos e do status concedido sobre eles por seus alunos e ex-alunos, os mestres poderiam adquirir uma reputação que os investia com uma autoridade reconhecida além das escolas nas quais um dia atuaram. Com sorte e talento, alguns alcançaram a condição de conduzir bispos e papas com os seus conhecimentos, assim como príncipes e autoridades urbanas seguiram a buscar suas opiniões e aconselhamentos (VERGER, 2020).

Vários mestres que um dia também foram discípulos construíram um imenso legado de ensinamentos e experiências de vida que dividiram com os seus e com os pósteros em suas aulas, nos exemplos pessoais, nas exortações, nos sermões e nos escritos que deixaram. Em diversos casos, esse legado alcançou diferentes gerações de novos discípulos a tornar-se um produto exposto a negociações constantes. A partir destas, verdadeiras linhagens intelectuais foram construídas. E com estas, aspectos do passado foram manipulados e distorcidos e eventos e nomes conscientemente apagados enquanto outros foram privilegiados pelas mais diversas intenções (BRUUN & GLASER, 2008). Como resultado disso, buscar novos insights interpretativos em relação às práticas sociais que conduziam o ensino e a aprendizagem no medievo tornou-se sinônimo de trazer à cena as possíveis intenções de quem entrou nesses jogos e optou por jogá-los (MÜNSTER-SWENDSEN, 2008).

Como uma expressão do uso das próprias memórias e ressignificações destas como um capital, podemos também pensar na existência de uma “linguagem de memória” compartilhada por diferentes autores (no caso, mestres e discípulos) a criar não apenas textos, mas contextos (POCOCKI, 2003). Como explicitamos, estes ganharam forma em uma época na qual a teologia e o trabalho dos mestres estavam a assumir feições novas e careciam de orientações minimamente institucionais. Vistas em conjunto, as fontes disponíveis indicam a existência dessa linguagem construída nas relações cotidianas de mestres e alunos e destes com os ambientes nos quais precisaram se inserir e se estabelecer. E as memórias compartilhadas e instrumentalizadas em muito do que foi por eles escrito constituíam um elemento aglutinador que conectava presente e passado a extrair deste os conhecimentos e a autoridade que sustentavam o primeiro.

Assim, diferente de um suposto nascimento do indivíduo e da individualidade como uma das marcas do renascimento do século XII, acreditamos que muitas das referências com traços autobiográficos deixadas por esses personagens, quando tomadas sem a necessidade de antecipações forçadas, atenderam a demandas específicas de contextos específicos nos quais as disputas entre diferentes mestres e seus muitos discípulos que também se tornariam mestres a lutar por um lugar ao sol ou neste se manter impuseram maneiras muito peculiares de enxergar e dissertar acerca da própria trajetória e dos saberes e experiências acumuladas no decorrer desta. Embora não possamos negar a existência de uma nova percepção de si no período com o qual trabalhamos, o foco de então parece ter sido outro, não o nosso (JAEGER, 2003; WEI, 2011).

De forma complementar, é sempre importante pensar em que (ou em quais) momento(s) essas memórias foram reavivadas e sob quais interesses. Normalmente, isso se deu quando seus portadores se encontravam diante de novas pessoas, situações e oportunidades, entre estas, a chagada em um novo ambiente de corte, a confirmação de uma eleição abacial, o início de uma tutoria. Assim, diante de novos contatos, tensos ou não, e diante de novos ambientes, tensos ou não, os antecedentes poderiam funcionar como uma valiosa carta de apresentação (ou mesmo de pertencimento). Em diálogo com a recente tese de Rafael Bosch (2021), o valor desse capital era instável e dependia do talento e do carisma particular de seus portadores, mas também da acomodação ou não das placas formadas pelas forças políticas e sociais vigentes. Mas o simples fato de essas memórias terem sido um dia sacadas e compartilhada significa que elas possuíam um alto valor intrínseco que não poderia ser desprezado. E não foi.

Referências

BOSCH, Rafael. Hereges dialéticos: um estudo sobre a escolástica nos séculos XI e XII. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Filosofia, 455 fls, 2021.

BRUUN, Mette B. & GLASER, Stephanie (eds.). Negotiating heritage: memories of the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2008.

JAEGER, Stephen C. Pessimism in the twelfth-century “renaissance”. Speculum, volume 78, n. 4, p. 1151-1183, 2003.

LANZIERI JÚNIOR, Carlile. “No tesouro seguro de nossa memória”: a memória na concepção de três personagens do século XII. In:  ALMEIDA, Rodrigo Davi & LANZIERI JÚNIOR, Carlile (orgs.). Intelectuais: conceito e história. Curitiba: CRV, 2014, p. 15-35.

LONG, Micol, SNIJDERS, Tjamke & VANDERPUTTEN, Steven (eds.). Horizontal learning in the high Middle Ages: peer-to-peer knowledge transfer in religious communities. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2019.

MEWS, Constant J. The schools and intellectual renewal in the twelfth century: a cocial approach. In: GIRAUD, Cédric (ed.). A companion to twelfth-century schools. Boston/Leiden: Brill, 2020, p. 10-29.

MÜNSTER-SWENDSEN, Mia. Medieval “virtuosity”: classroom practice and the transfer of the charismatic power in medieval scholarly culture c. 1000-1230. In: BRUUN, Mette B. & GLASER, Stephanie (eds.). Negotiating heritage: memories of the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2008, p. 43-63.

POCOCK, John C. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

RUBENSTEIN, Jay & VAUGHN, Sally N. (eds.). Teaching and learning in northern Europe: 1000-1200. Turnhout: Brepols, 2006.

STECKEL, Sita. Submission to the authority of the masters: transformations of a symbolic practice during the long twelfth century. In: GIRAUD, Cédric (ed.). A companion to twelfth-century schools. Boston/Leiden: Brill, 2020, p. 69-94.

VERGER, Jacques. The World of Cloisters and Schools. GIRAUD, Cédric (ed.). A companion to twelfth-century schools. Boston/Leiden: Brill, 2020, p. 49-68.

WEI, Ian. From twelfth-century schools to thirteenth-century universities: the disappearance of biographical and autobiographical representations of scholars. Speculum, volume 86, p. 42-78, 2011.

WEIJERS, Olga. A scholar’s paradise: teaching and debating in medieval Paris. Turnholt: Brepols, 2015.

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[1] Este texto é uma síntese do capítulo II de meu livro mais recente: LANZIERI JÚNIOR, Carlile. O renascimento do século XII: a longa e sinuosa trajetória de um conceito e suas novas possibilidades de abordagem. Serra: Milfontes, 2023.


Publicado em 30 de maio de 2023.

Como citar: LANZIERI JÚNIOR, Carlile. No Mercado das Memórias dos Mestres dos Séculos XI e XII. Blog do Poiema. Pelotas, 30 mai 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/no-mercado-das-memorias-dos-mestres-dos-seculo-xi-e-xii/ Acessado em: data em que você acessou o artigo.