Texto: E o que Acontece com os Bárbaros?[1]

Fernando Ruchesi[2]

As pessoas muitas vezes me perguntam pelos bárbaros, mas não usam esta palavra para se referir a eles. Estudantes e pessoas que possuem interesse geral em história se aproximam de mim me falando dos “germanos”. Eu somente respondo com uma pergunta provocadora: “Os germanos? Quem eram esses?”. É uma resposta com um pouco de trapaça, sim, mas tem o objetivo de motivar uma reflexão geral. Normalmente, associamos a estes “bárbaros” vários conceitos ou imagens: em primeiro lugar, os germanos – ou seja, que todos eram germanos e que, consequentemente, falavam algo parecido com o alemão –. Em segundo lugar, as invasões e, finalmente, a “destruição” de Roma. Não foi por acaso que a cultura popular ajudou a difundir estas imagens ao longo do século XX, algo que continua na atualidade. Pensemos em Conan, o Bárbaro ou nos muitos filmes de aventura e ação na gloriosa década dos anos 1980, os filmes pouco conhecidos do gênero “sword & sorcery”, por exemplo. É um fenômeno que tomou forças nas últimas décadas, graças à aparição de séries de televisão (e, na atualidade, principalmente por streaming). Mas ele foi também impulsionado pelo surgimento de grupos de hard rock ou heavy metal, que adotam temáticas líricas baseadas nas histórias e mitos destas comunidades, junto com elementos estéticos também baseados vagamente em como teriam se parecido esses indivíduos (os selvagens vestidos com peles de lobos ou ursos… ou de roedores dos bosques, como a caracterização que fez Amiano Marcelino sobre os hunos, no fim do século IV). Claro, circulam outros pressupostos e crenças sobre estas comunidades, mas acredito que, para começar, podemos nos concentrar nestes pontos.

Iniciaremos abordando o primeiro aspecto, o dos “germanos” que, ademais, nos possibilitará adentrarmos um pouco nas questões identitárias. O termo não está sendo utilizado de maneira errônea, pois ainda se encontra em uso por uma parte importante da comunidade acadêmica e de docentes universitários (especialmente, os hispanófonos). Mas, apesar disso, temos de nos perguntar: se eram “germanos”, então por que não nos deparamos com praticamente nenhum testemunho, da parte deles, que nos prove que se consideravam a si mesmos como germanos? Claro, a exceção poderia ser a inscrição do século IV encontrada na Panônia, um epitáfio daquele soldado franco que disse Francus ego cives romanus miles in armis e que se poderia traduzir literalmente como “sou um cidadão franco [mas] quando [tenho] as armas, sou um soldado romano”. Contudo, utiliza o termo Francus e não o termo germanus. Assim, podemos começar a entender que se tratou de um termo utilizado pelos romanos para designar a um conjunto muito amplo de povos que, digamos, falavam línguas similares entre si. Os germanos não escreveram, não nos deixaram textos, e o pouco que sabemos sobre eles e que, em seu turno, nos dá pé para dizer quem eram os germanos, são alguns de seus nomes que, claramente, tem relação com línguas germânicas antigas. Bem, vejamos, também contamos com cópias do século VI da Bíblia Gótica: a tradução da Bíblia que o bispo ariano Ulfila e seus seguidores realizaram a fim de cristianizar os godos durante o século IV. Mas, apesar disso, nós não podemos conhecer como se auto-identificavam estes grupos. O termo germano é um “termo guarda-chuva” (umbrella term) utilizado pelos romanos para generalizar a todas aquelas comunidades situadas ao norte da fronteira natural que constituíam os rios Reno e Danúbio. Se trata de um vocábulo que aparece já na época de Júlio César, mais precisamente em seu Comentário da Guerra Gálica. César diferenciava, por exemplo, os germanos dos celtas. Assim, podíamos dizer que germano é uma construção historiográfica para nos facilitar a compreensão e o estudo destes temas (como ocorria, de maneira similar, com o termo bizantino). De qualquer forma, nem todos seremos ou termos que ser experts em História da Antiguidade Tardia ou da Alta Idade Média. Apesar deste último, creio que refletir sobre estas questões pode nos ser útil para compreender como funcionam as construções identitárias e o uso de estereótipos em nosso presente pois, afinal de contas, se tratam de mecanismos ideológicos utilizados pelos círculos hegemônicos da vez para designar ao “outro” e a todo aquele que não se encaixa em sua esfera cultural ou de interesse. Temos que considerar que as identidades são fluidas e variáveis. E também o eram na Antiguidade Tardia e na Alta Idade Média, como muitos dos trabalhos da Escola de Viena já o demonstraram. As identidades formam parte da cultura e, por isso, assim como se sucede com as línguas, se encontram em constante modificação. Por isso temos este epitáfio do soldado franco que dizia ser franco, mas que se convertia em um romano quando portava armas. Não conhecemos o nome deste indivíduo, mas sabemos de outros personagens por seus nomes, graças aos trabalhos de prosopografia, especialmente a Prosopography of Later Roman Empire (1980) (que, quero acreditar, é uma das mais conhecidas e citadas). Os nomes são importantes, pois podem nos dar a entender, com uma primeira impressão, que algum personagem havia sido romano, ou germano, ou bárbaro. No entanto, Guy Halsall (2007) já deu a entender que a onomástica não é um caminho completamente válido e desprovido de problemas para reconstruir ou compreender as identidades e filiações ideológicas destas pessoas. Um indivíduo poderia ter um nome não-romano, mas atuar como um romano e ser parte desse sistema sócio-cultural e de valores.

Agora, bem, o segundo ponto, como dissemos, tem a ver com as mencionadas invasões germânicas. Em muitos dos programas de História da Idade Média nas universidades latino-americanas ainda se fala da “primeira onda” de invasões. O termo invasões, então, pode nos fazer pensar – ou não – em duas coisas. Em primeiro lugar, que existia uma unidade absoluta entre todas as comunidades e que, ademais, haviam planejado estas incursões e invasões, pois se trata disso: uma ação estratégica planejada em conjunto para tomar um território à força. Se olharmos para trás no tempo, esta proposta não é desprovida de sentido, posto que foi sustentada por historiadores pós-Segunda Guerra Mundial que viam os germanos nos invasores nazistas, sua expansão por meio da guerra e as atrocidades bem conhecidas que cometeram. Isto tão pouco era difícil de considerar se termos em conta que o nacional-socialismo alemão utilizou o antigo passado germânico para alicerçar o presente e as ações do Terceiro Reich como forma de propaganda ideológica. Neste processo, o Reich afundava suas raízes no passado remoto e seus cidadãos eram os descendentes diretos dos germanos que Tácito havia descrito em sua Germania (e a Arqueologia, sendo má utilizada, cumpriu, lamentavelmente, um papel fundamental deste processo.)

Mas, voltando à questão das invasões, dentro desta perspectiva historiográfica os germanos destruíram a civilização romana, que tanto proveito havia trazido ao bem-estar da humanidade graças aos avanços em engenharia e literatura que esta “civilização” havia contribuído ao mundo conhecido. Após a morte de Roma, o mundo mergulhou na tenebrosa Idade Média, cheia de superstição, obscurantismo, selvageria, violência absoluta e cores cinzentas que já conhecemos todos graças à Hollywood. E isto ocorreu de maneira tão rápida e simples como alguém pode acender o interruptor da iluminação de uma casa. Assim, pelo menos, só o compreendem a maioria dos estudantes iniciantes no estudo da Idade Média, para quem os processos ainda são difíceis de compreender. E não nos enganemos, processo é uma das palavras mais recorrentes e utilizadas no jargão dos historiadores. Ademais, quem pode definir processo de maneira simples, efetiva e rápida? Seria tão difícil quanto definir homem ou humano (faremos exceção aqui a clássica frase que afirma que um homem é “uma miserável e pequena pilha de segredos”). E o fato é que, neste âmbito, qualquer processo é facilmente deslocado por nosso interruptor da iluminação que, neste caso, não é outro que uma grande data para conhecer a morte de Roma: 476, mais precisamente, 4 de setembro.

Bem, mas além do fato de que a prosa que estou levando está carregada de ironia (e na verdade estou me divertindo bastante com ela), então vamos nos perguntar: o que aconteceu em 476? Normalmente, uma grande parte dos estudantes que estão cursando História Medieval ou que iniciam a carreira na História diriam que Roma caiu pois, ao menos em (muitas partes da) Argentina, é isso o que se ensina na escola secundária. O processo é, obviamente, muito mais complexo e o século V é um período grande e apaixonante de estudar-se profundamente. E está carregado de eventos e sutilezas que, lamentavelmente, não costumam ser abordadas em profundidade nas cátedras universitárias devido à perpétua carência de tempo. 476 representa a deposição do último “imperador” romano, um jovem conhecido como Rômulo Augústulo, nome que foi traduzido como Rômulo, o pequeno imperador, ou o “imperadorzinho”, por alguns autores. Era o filho de um militar chamado Orestes, que tinha o cargo de magister militum (algo como comandante-geral do exército) e que não possuía muita legitimidade (Augústulo, por exemplo, nao foi reconhecido pelo imperador da Pars Orientalis). Temos de levar em conta que, pela segunda metade do século V, a parte ocidental do Império se limitava à Itália e algumas possessões ao sul da Gália. O resto dos territórios foi ocupado paulatinamente pelos germanos. O irônico é que, atualmente, já temos teorias bem sólidas que provam que estes invasores foram estabelecidos nestas jurisdições pelas mesmas autoridades romanas, muitas vezes através de mecanismos fiscais (como já o havia estudado em profundidade Walter Goffart (1980), há bastante tempo). Obviamente, as fontes também descrevem episódios que podem ser categorizados como “incursões” ou “invasões” e, se somos cuidadosos, podemos utilizar esta terminologia. Se tratam dos eventos que envolvem Odoteu, no século IV, e aos suevos, vândalos, alanos e burgúndios na conhecida travessia do Reno, em 405. Podemos incluir, igualmente, a conhecida marcha de Radagaiso (“que era cita e pagão”, como Orósio o caracterizou) rumo à Itália com seus godos. Também houveram incursões violentas, saques, e enfrentamentos com os exérctiso romanos. E com os exércitos “bárbaros” que os romanos utilizavam (principalmente o visigodo), na qualidade de foederati, para combater a estes outros “bárbaros”. Em outras palavras, nem tudo foi cor-de-rosa, tampouco este tipo de situações violentas não são algo exclusivo da história do século V. O que devemos ter em conta é que, ao longo deste século, o Império do Ocidente foi cedendo territórios e estabelecendo neles estas gentes em troca da ajuda militar que proporcionavam ao Estado romano. E a partir de tudo isso, Halstall (2007) indicou que as migrações bárbaras ocorreram em virtude da crise do Império romano tardio, e não o contrário. E ambas partes se beneficiaram mutuamente, em certo sentido: o Império utilizou à muitos destes grupos como mão-de-obra militar, para desfazer-se de opositores e contendentes romanos ao trono ou outros grupos bárbaros e, por sua vez, os bárbaros lograram adquirir terras para assentar-se nos territórios do Império, escapando das ameaças dos hunos e imbuindo-se da cultura mediterrânea que tanto fascínio os havia provocado. Não por acaso, Patrick Geary (1988, p. vi) cunhou a lendária frase: “o mundo germânico foi quem sabe a maior e mais perdurável criação do gênio político e militar romano” (“The Germanic world was perhaps the greatest and most enduring creation of the Roman political end military genius”). Creio que, mais de três décadas depois, é uma afirmação que ainda dá pra ser pensada.

Assim, para concluir, podemos voltar a perguntarmos então: o que acontece com os bárbaros? Por que encontramos tanta curiosidade e atrativo por estas comunidades que, muitas vezes, se encontram cercadas pela névoa dos tempos e da escassez de documentação? Será pela aura de liberdade que os rodeia? A ideia de que lutavam por seus valores e costumes (algo que não podemos provar)? Devido a que representam uma parte épica do passado da humanidade (ou assim queremos entendê-la muitas vezes)? São perguntas que, em muitas ocasiões, não possuem respostas lógicas. No entanto, podemos ser capazes de construir uma lógica que nos permite compreender quem haviam sido estes bárbaros e que papel tiveram no século V. E, para isso, creio, não temos outro remédio que tentar conhecer e ler as fontes, os testemunhos desta época, junto com a bibliografia atualizada sobre o tema. Não é uma tarefa simples e muitos não estarão dispostos a levá-la a cabo. E isso tampouco é ruim, posto que não é uma obrigação. Na atualidade, com a quantidade de recursos que dispomos, graças à internet, tampouco é uma coisa impossível. Neste ponto, havíamos de advogar por tentar ler e entender o passado sem recorrer às estruturas e imaginários de nosso presente (algo que tampouco é simples). E limpar os estereótipos e treinar para compreender como funcionam os processos deveria ser outra meta que nós, os docentes, haveríamos de propor a nossos estudantes com mais frequência (ou, ao menos, com mais tenacidade). O imaginário antigo e atual sobre os bárbaros e a conseguinte queda de Roma são uma prova eloquente de que estas medidas são necessárias.

Referências

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[1] Tradução de Gregory Ramos Oliveira (IFSUL), bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

[2] Universitat de Lleida / Universidad Nacional del Nordeste.


Publicado em 10 de Novembro de 2022.

 

Como citar: RUCHESI, Fernando. E o que Acontece com os Bárbaros. Tradução: Gregory Oliveira. Blog do POIEMA. Pelotas: 10 nov. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/y-que-pasa-con-los-barbaros/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.