Texto: Distante da Paróquia: Comparando a expansão do cristianismo no meio rural Visigodo e Axumita (Séculos VI e VII)

Eduardo Cardoso Daflon[1]

 

Olá, querida(o) leitor(a) do blog do POIEMA! Se você está lendo esse texto, provavelmente é parte da comunidade dos países lusófonos e, portanto, é possível que o lugar onde você mora experimentou alguns séculos de colonização portuguesa. Algo que foi inseparável da ação da Igreja Católica (Boxer, 2007) que continuou forte nos países mesmo após suas independências. Esse certamente é o caso do Brasil onde – em que pese do crescimento dos evangélicos – a população ainda é predominante de católicos e o peso dessa instituição é muito evidente em nossa história (Freston, 2010; Oro, 2020). Esse passado colonial e a influência do catolicismo conformaram certa ideia de como são organizadas as cidades, especialmente aquelas consideradas históricas.

Vamos lá… Feche os olhos e imagine-se turistando por um município do chamado ciclo do ouro mineiro, ou talvez, no interior do Mato Grosso – como Cáceres – ou mesmo a pacata Bom Jesus do Itabapoana, na fronteira entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo… Fez isso? Maravilha! Como era o centro dessa cidadezinha?

Suponho que o cenário que você imaginou foi um largo com algum comércio em volta, talvez uns bares com pessoas tomando cerveja enquanto crianças brincam e, quem sabe, um prédio administrativo tombado pelo patrimônio. A única coisa que eu tenho certeza que não faltou nessa sua imagem mental foi um edifício religioso católico – basílica, mosteiro, catedral, etc. – numa posição de destaque na frente dessa praça. Não que você tenha refletido muito sobre o paisagismo colonial português, mas suas muitas experiências moldaram as percepções que você tem sobre como se organizam os espaços.

Contudo, como historiadoras(es) precisamos controlar as expectativas que nosso presente nos impõe ao olharmos para o passado. Afinal, a Igreja Católica nem sempre foi a instituição milenar que é hoje e essa conformação da paisagem foi mutável com o tempo. Apesar desse cuidado ser ensinado desde muito cedo aos que aspiram ser profissionais da História, chama a atenção o quanto que é possível escorregar… Por exemplo, vejamos o caso da cristianização do Reino de Axum e como é tratada justamente essa questão das igrejas e sua localização espacial.

Antes disso, um contexto mínimo se faz necessário (Munro-Hay, 1991). Esse reino que me refiro se localizava na parte oriental do continente africano às margens do Mar Vermelho – correspondendo à parte da atual Etiópia e Eritreia – e teve desde muito cedo a presença do cristianismo. Tal foi a influência dessa religião que, já no século IV, um de seus soberanos se converteu à fé cristã (Appleyard, 2007). Essa nova expressão religiosa teve um impacto inicial maior nos meios urbanos e apenas mais tarde – por volta do século VI – passa a ter uma presença efetiva no campo (Insoll, 2021).

Nas análises mais recentes sobre essa realidade histórica, é notável uma certa “surpresa” com que alguns pesquisadores trataram a existência de núcleos habitacionais do campo isolados de uma igreja paroquial. Num dos textos mais recentes sobre o assunto temos a seguinte referência:

No contexto rural [axumita], as igrejas muitas vezes parecem estar localizadas longe dos assentamentos que, como igrejas paroquiais, parecem servir. A noção de uma longa viagem de casa para frequentar uma igreja não é incomum. As igrejas paroquiais etíopes fora dos centros urbanos muitas vezes parecem divorciadas de seus paroquianos, mas aos olhos ocidentais esta parece ser uma situação estranha (Finneran, 2012, 251-252).

Essa “aparente estranheza” na comparação com o quadro “ocidental” pode estar revelando algo interessante. Afinal, o que se tem em mente ao fazer essa afirmação, sem dúvidas, é esse enquadramento mental que comentei anteriormente. Essa imagem difundida que posiciona o templo cristão no centro e em destaque nos vários territórios. Ou seja, havia por parte do pesquisador uma retroprojeção enviesada de que a igreja “deveria estar” dentro das aldeias rurais. Contudo, faltou combinar com os russos… digo… com os camponeses axumitas.

Aqui gostaria de fazer um comentário sobre a historiografia que se dedica ao Reino de Axum, ao menos aquela produção mais acessível e escrita em inglês. Em geral, opera-se dentro de um enquadramento que, por vezes, se chama de nacionalismo metodológico. Em outras palavras, estuda-se Axum como uma unidade de análise sem muita atenção ao significado das conexões ou aos contextos mais amplos. Frequentemente também a história do reino é tomada como uma espécie de “passado pátrio” dos atuais etíopes. Isso não chega a ser uma surpresa já que essa é uma questão que aflige parte considerável da produção historiográfica (Conrad, 2016).

Assim, isso colocaria para nós a questão de que uma análise do caso axumita em muito se beneficiaria de uma abordagem global da expansão cristã. Uma globalidade que supere a mera “ascensão do cristianismo no ocidente” (Brown, 1999) e demonstre o quanto se tratou de um processo afro-euroasiático. Enquanto uma nova narrativa integrada desse passado ainda está distante no horizonte historiográfico, é mais do que bem-vinda a aplicação de uma metodologia de História Comparada. Afinal, permitirá romper – ao menos parcialmente – com essas leituras isoladas, possibilitará reflexões mais controladas ao perceber as semelhanças e contrastes e até apresentar explicações causais para certos fenômenos (Kocka, 2003).

Vejamos esse aspecto da posição das igrejas no meio rural. Uma abordagem comparativa demonstraria sem grande dificuldade que mesmo na Europa isso se conforma mais tardiamente. O chamado fenômeno da paroquialização se dá já bem avançada a Idade Média, quando passou a existir em cada aldeia ao menos uma igreja com funções paroquiais (Martín Viso, 2016). Ou seja, o quadro geral europeu coetâneo à expansão do cristianismo pelo campo axumita entre os séculos VI e VII também não tem igrejas no interior das aldeias.

Tomemos, como exemplo, o contexto do Reino Visigodo que existia nessa mesma época na Península Ibérica (Chavarria Arnau, 2010). Lá também é interessante notar como o fenômeno da cristianização foi mais precoce nas cidades (Diarte Blasco, 2018), somada a uma mais tardia e gradual expansão para o campo (Castellanos, 2018). Ou seja, já nesse ponto podemos observar níveis de correspondência bastante interessantes.

Vejamos o que diz um estudo lançado há não muito tempo sobre as igrejas rurais visigodas:

Raramente (…) [elas] podem ser enquadradas num contexto populacional preciso, isto é, se estão localizadas num ponto estratégico do território (por exemplo, em relação a vias de comunicação) ou se existia nas proximidades de residência ou centro de exploração rural, ou se a igreja é construída em relação a um centro menor (…) ou a uma aldeia. (Chavarria Arnau, 2015, 33)

 

Em outras palavras, nesse reino ibérico temos uma configuração bastante semelhante àquela de Axum com as igrejas rurais localizando-se distante dos núcleos populacionais do campo. Nesse sentido, algumas hipóteses para o caso visigodo podem também ter alguma validade para o caso axumita e podem ser caminhos para desenvolvimentos de pesquisas posteriores. Em um capítulo de livro recém-saído das gráficas, sugere-se que as igrejas rurais no mundo ibérico dos séculos VI e VII:

(…) fizeram parte das estratégias de controle territorial de algumas elites cujas iniciativas se desdobraram no marco de um processo de construção do Estado em que o cristianismo, como ideologia, a Igreja, como instituição, e as igrejas rurais, como materialização de ambas, desempenharam um papel fundamental. No entanto, dado que se tratou de um período em que os grupos camponeses puderam gozar de maior autonomia (…), há que ter em conta que tal implantação ocorreu num contexto em que a permanência de outras formas de ritualidade não-cristã, mas também de territorialidade e identidade ao nível local e supralocal, teria condicionado e mesmo limitado – na medida em que poderia gerar rejeição – estas iniciativas, que devem por isso situar-se na dinâmica mais ampla da relação – e conflito – entre diferentes classes sociais. O relativo isolamento desses centros em relação aos assentamentos camponeses pode ser uma expressão disso (Carvajal Castro e Tejerizo García, 2023, 68, grifo meu).

Ou seja, a própria configuração das igrejas paroquiais no campo pode ser um indício de tensões sociais mais amplas. Se aplicarmos a hipótese do caso ibérico poderíamos imaginar que as igrejas rurais no Reino de Axum – dada sua relação com as elites e monarquia – seriam expressão da tentativa aristocrática e régia de inserir-se no meio rural. Elas poderiam verticalizar as relações com o espaço – e, logicamente, com o sagrado – fazendo convergir as localidades e seus excedentes para o seio da classe dominante, subsumindo comunidades camponesas.

Processo bastante semelhante àquele encontrado entre os visigodos. Realidade onde o cristianismo propagado por bispos e senhores laicos encapsulava uma visão de mundo desigual que fazia convergir para a classe aristocrática – e em última instância para o monarca – os laços de dependência servil e as rendas extraídas do campesinato (Bastos, 2013).

Olhando por esse ângulo talvez seja possível ter uma outra dimensão do processo de cristianização na África Subsaariana. Sendo possível ver não apenas um avanço “natural” de uma religião que se expandiu autonomamente por rotas de comércio. Mas, como uma fé que foi incorporada pela aristocracia axumita que passou a operar dentro desse modelo religioso como forma de consolidar e ampliar hierarquias internas e a capacidade de projeção régia.

De tal modo que o adensamento da malha de igrejas rurais seria parte de um projeto dessas aristocracias. E, por sua vez, a não construção desses edifícios de culto associados às aldeias talvez seja evidência da rejeição de comunidades camponesas que buscavam manter algum grau de autonomia e uma relação mais horizontal com o sagrado.

Evidentemente que para isso ficar mais objetivamente demonstrado seria necessário ampliar as escavações de forma que determinassem mais claramente a relação das igrejas rurais no Reino de Axum e no Visigodo com a paisagem do entorno. Ainda assim, essa proposta interpretativa poderia apontar interessantes direcionamentos futuros de pesquisas. Sobretudo porque talvez ajude a explicar a contumácia de certas manifestações não-cristãs num território que os setores dominantes – sob condução régia – tão precocemente se converteram ao cristianismo.

A vitalidade das comunidades refratárias à fé cristã foi tamanha que mesmo muitos séculos após o fim da vigência do Reino de Axum, já sob a dinastia salomônida, os reis etíopes ainda faziam esforços de expansão da igreja. Os próprios portugueses, quando chegaram à Etiópia séculos mais tarde durante as Grandes Navegações, notaram o uso de fórmulas mágicas para expulsar demônios com elementos cristãos, somados a uma série de práticas estranhas como rebatismo ou a circuncisão.

Esse uso de magia e práticas heterodoxas não raro é lido como um processo de “degeneração” da fé cristã na Etiópia (Tamrat, 1972). Entretanto, ao menos do modo como vejo, a forma como essa religiosidade se apresenta difere pouco de elementos ditos heréticos do cristianismo europeu medieval (Zerner, 2017), daqueles encontrados e combatidos pela Igreja Católica no contexto da Reforma Protestante (Ginzburg, 2010), ou ainda, em última instância, nas práticas populares no Brasil colonial (Souza, 1986). A própria religião se constitui, então, como o aspecto mais visível das concepções culturais e, portanto, campo de disputas de classe que devem ser apreendidas e historicamente explicadas (Bellotti, 2011).

A posição das igrejas em relação às aldeias nesses dois casos parece apontar na direção dessas tensões culturais que demandam uma elucidação e que, como sugeri, estão relacionadas a diferentes leituras do sobrenatural: uma hegemônica aristocrática/senhorial e outra contra hegemônica dos grupos subalternos, em particular dos camponeses. A cultura – como forma de representação e interpretação do real (Godelier, 1986) – tem na religiosidade popular uma vitalidade extraordinária que é produto das leituras e releituras que as pessoas fazem do mundo mediante suas experiências cotidianas.

De tal maneira que seria importante entender as resistências à expansão cristã como uma forma de tentar preservar as autonomias locais frente a uma monarquia e aristocracia com pretensões de ampliação das suas bases territoriais e econômicas. Apesar disso, os subalternos – visigodos e axumitas, europeus e africanos –, uma vez incorporados (frequentemente de forma violenta) por um sistema cristão, tampouco assumiram acriticamente a nova fé assim como proposta pela classe aristocrática. Ao contrário, passaram a interpretar o cristianismo a partir de seu enquadramento nas relações sociais.

Por fim, não é apenas o caso axumita que se beneficia de uma análise ao lado do caso visigodo. Igualmente existe para historiografia dos contextos referidos como “ocidentais” um potencial enorme ainda pouco explorado ao promover uma História em perspectiva comparada do avanço do cristianismo entre os séculos VI e VII. Deseurocentrizando e aprimorando nossa compreensão do mundo medieval. Um mundo medieval marcado por contatos e conexões que incorporam zonas europeias e africanas e que, quando analisadas de forma comparativa, iluminam-se mutuamente.

Bibliografia

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[1] Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, docente de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Mato Grosso (ec.daflon@gmail.com). Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2731785116711749


Publicado em 17 de outubro de 2023.

Como citar: DAFLON, Eduardo Cardoso. Distante da Paróquia: Comparando a expansão do cristianismo no meio rural Visigodo e Axumita (Séculos VI e VII). Blog do POIEMA. Pelotas 17 out 2023. Disponível em: Acessado em: data em que você acessou o artigo.