Joseph McAlhany[1]
Traduzido e adaptado por Luiz Guerra
Dedicado ao Prof. Lukas Grzybowski
Os cabelos têm significados, mas quais exatamente? Seria fácil produzir uma lista de qualidades associadas ao cabelo, mas tal lista, em que cada item teria que ser emparelhado com o seu oposto, apenas demonstraria a impossibilidade de se chegar a uma resposta definitiva – especialmente porque a própria ausência de cabelo também tem significado. Não só o mesmo formato de cabelo pode ter significados contraditórios (cabelo comprido é sinal de virilidade ou abundância, mas o cabelo comprido também é sinal de efeminação ou pobreza), o mesmo significado pode ser atribuído a formas opostas de cabelo (uma barba longa é um sinal de piedade, mas o mesmo se aplica a um rosto barbeado).
Mesmo que nos restrinjamos a um tempo e lugar específicos, como um mosteiro na França do século XII, a tarefa não é de forma alguma simplificada: o contexto social e histórico pode ser restrito, mas a gama de significados associados ao cabelo não é assim limitada. Qualquer pessoa que tente entender as conotações culturais do cabelo parece condenada a concluir com a palavra que é o desespero de todo pesquisador: “depende”. De fato, as afirmações mais confiantes sobre o que o cabelo significa não indicam certeza, mas ansiedade, e qualquer tentativa de fixar o significado dos cabelos revela, em vez disso, sua fluidez.
Mas a problemática multiplicidade de sentidos associados a qualquer forma particular de cabelo, incluindo a sua ausência, não escapou aos escritores medievais mais atenciosos que lhe dedicaram qualquer atenção. Eles se contendem tanto quanto qualquer escritor moderno com o assunto. Os regulamentos monásticos relativos ao cabelo e à barba, que se desenvolveram a partir do século VI, encontraram a sua justificativa nas escrituras, mas esta base não era mais estável do que os próprios cabelos. Há, de fato, um paralelo entre a interpretação dos cabelos e a exegese bíblica, e os escritos sobre o cabelo sugerem que este poderia fornecer uma analogia útil para as dificuldades hermenêuticas apresentadas pelas Escrituras. Assim como o significado literal do texto velava a verdade mais profunda, o cabelo também servia como um significante visível de uma natureza oculta.
O cabelo era natural, um elemento da natureza, mas ao mesmo tempo estava sujeito à intervenção humana: podia ser modelado, controlado e até eliminado. Assim, como as palavras empregadas na fala humana, ele poderia ser um falso significante, quando através da intervenção humana o cabelo, como um sinal exteriormente visível, recebia uma forma que não representava com precisão uma verdadeira natureza interna. Esse cenário cria dificuldades aparentemente intransponíveis na “leitura” de uma pessoa, espelhando as ânsias textuais de um leitor de textos, especialmente aqueles que se presume conterem a (divina) verdade. Se há algo universal no significado do cabelo, deve ser isso.
Três textos que traduzi recentemente em Beards & Baldness in the Middle Ages (“Barbas e Carecas na Idade Média”) (2024), embora de épocas e lugares diferentes, todos exemplificam essas ânsias, e o mais longo deles, que emerge do ambiente mais restritivo em relação aos cabelos, revela as maiores preocupações.
Os dois textos mais antigos, Encomium Calvitii (“Elogio à Calvície”), de Sinésio de Cirene, do século VI, norte da África grega, e Ecloga de Cavis (“Poema Sobre a Calvície”), de Hucbald de Santo Amando, do século IX, Europa latina, são cada um, à sua maneira lúdica, uma tentativa de subverter a percepção, assumida como a norma, de que a calvície natural é um defeito da natureza. Ambos os textos se esforçam para demonstrar o contrário, mas ao fazê-lo não revelam nada além de preocupações em relação ao cabelo e seu significado. Sinésio era um intelectual amplamente versado nos clássicos da Grécia antiga, e citações de Homero, Platão, Heródoto e outros escritores canônicos são combinadas com seu próprio cristianismo neoplatônico (ele relutantemente se tornou bispo, e seu compromisso com o que era considerado o cristianismo ortodoxo tem sido debatido). Formulado como resposta a uma obra perdida do orador grego Dio Crisóstomo, séc. I, o Elogio à Calvície defende a superioridade de uma cabeça sem cabelo, elevando-a a um estado de perfeição e concedendo-lhe uma divindade negada àqueles com cabelo. Sinésio começa narrando seu próprio incômodo quando seu cabelo começa a cair, descrevendo-o metaforicamente como uma derrota militar (um sentimento ainda compartilhado por muitos hoje em dia). Seu humor e profundo aprendizado proporcionam uma leitura agradável, mas os extremos a que ele leva seu argumento parecem, à primeira vista, contraproducentes: comparar uma cabeça careca a uma divindade enquanto degrada a posse de cabelo a um estado de bestialidade bruta, em vez de simplesmente enumerar as possíveis vantagens da calvície, mina quaisquer tentativas de que seus elogios sejam levados a sério. Mas, após uma reflexão mais aprofundada, o absurdo cómico do seu argumento demonstra um ponto sério: qualquer preocupação real com o cabelo e a calvície é absurda, porque tanto o cabelo como a sua ausência são sobredeterminados, ao ponto de serem esvaziados de significado.
O mesmo pode ser dito do Poema Sobre a Calvície, de Hucbald, embora surja de uma tradição diferente e seja apresentado de uma forma bem distinta. Em vez de compor um discurso filosófico, Hucbald expõe em 136 hexâmetros um catálogo de ocupações e posições “respeitáveis” para enfatizar a ideia bastante banal de que homens carecas alcançaram sucesso em todas elas – intelectuais, padres, médicos, guerreiros e até reis eram carecas (não por coincidência, o proêmio dedica o poema a Carlos, o Calvo). Como Sinésio, ele protesta demais, elevando a calvície, e, portanto, os homens calvos, a algo celestial. Sua ludicidade está menos no conteúdo do que na forma: cada palavra de seu poema começa com a letra C, em homenagem à palavra latina para careca (calvus), o que muitas vezes exige que ele estenda o sentido e a sintaxe ao ponto de ruptura (um efeito que tentei, um tanto tolamente, replicar em sua tradução). Na verdade, a própria forma da letra C, que circula de volta ao fim onde começa, não apenas simboliza o retorno de cada verso ao seu início, mas também significa a inutilidade de todo o esforço. O poema é um feito absurdo, e quanto maior o rigor com que Hucbald se esforça para defender a sua posição, mais fraco se torna o seu argumento. Afirmar que até um homem careca pode ser rei é apenas perpetuar uma distinção inútil.
Mas é no terceiro e mais longo texto, Apologia de Barbis (Uma Defesa das Barbas), de Burchard de Bellevaux, que as preocupações hermenêuticas vêm à tona. Composta em resposta às acusações de que Burchard, como abade, iria forçar os irmãos leigos, que não estavam sujeitos a regulamentos monásticos estritos, a removerem suas barbas. Esta apologia consiste em três sermões, oferecendo interpretações de quase todas as passagens bíblicas onde aparece uma barba, e também cobrindo a calvície por meio da tonsura monástica. É um exemplo notável de exegese bíblica medieval, mas talvez o mais notável seja como Burchard muda os fundamentos da exegese dos textos sobre barbas (e calvície) para as barbas (e calvície) em si. Ao contrário dos outros textos, que são obviamente humorísticos, é difícil decidir quão séria Burchard pretendia que fosse a sua barbilogia, como ele a chama. Mas há uma séria preocupação quanto à falta de confiabilidade das barbas como símbolos. Burchard frequentemente implora aos usuários de barba que se certifiquem de que sua “barba interna”, ou seja, suas virtudes, corresponda à sua “barba externa”, caso contrário a barba será um sinal enganoso. Em certo ponto ele chega a fazer uma analogia com um barril colocado em frente a uma taberna como sinal de que o vinho pode ser comprado lá dentro; se não houver, de fato, vinho dentro, então o barril é um sinal enganoso e os viajantes sedentos em busca de refresco ficam a ver navios.
Um dos momentos mais interessantes do texto de Burchard abrange múltiplas preocupações. Não passa despercebido que o discurso sobre barbas e calvície é quase exclusivamente da perspectiva masculina, e muitas das virtudes associadas ao cabelo são qualidades “masculinas”, como coragem, uma conexão promovida pela etimologia: a raiz da palavra latina para virtude, virtus, é vir, homem, e assim uma “virtude” é uma qualidade adequada a um homem “verdadeiro”. Dentro de seu contexto monástico, Burchard demonstra uma preocupação particular com a masculinidade, comparando jovens naturalmente sem barba e homens artificialmente sem barba com efeminação (e, portanto, uma atração sexual perigosa). Ele expressa horror aos homens que, ao se barbearem, se transformam em mulheres, contrariando a sua “natureza própria”. Por isso, é notável que Burchard dedique um capítulo inteiro a uma mulher, embora ela seja a exceção que confirma a regra. Numa história extraída dos Diálogos de Gregório, o Grande, ele fala de uma mulher virtuosa (!) chamada Galla, que devido ao acúmulo excessivo de calor corporal natural (isto é, paixão sexual) cresce uma barba. A cura, claro, é acolher os confortos sexuais de um marido, mas Galla, em vez disso, supera a vergonha da sua barba natural, mas não natural, através de uma dedicação determinada à castidade cristã. Sua barba, que numa leitura direta seria um sinal falso, já que na ordem regular da criação nenhuma mulher deveria ter barba, torna-se um verdadeiro sinal de sua virtude. Esta marca óbvia de masculinidade prova que ela é uma mulher virtuosa (ou seja, viril), uma condição que ela só pode alcançar através da negação do seu papel “natural” como esposa e mãe.
O papel de Galla no texto exemplifica preocupações sobre masculinidade e sexualidade, mas também, ironicamente, contribui para a exclusão do feminino do discurso sobre barbas e calvície. Ela também se torna um exemplo das ânsias do significante e do significado que atormentam cabelo e texto. A interpretação de sua barba, de fato, começa com o que já se sabe que significa (suas virtudes), em vez de partir do significante para chegar ao que é significado. Sem o conhecimento, ou pelo menos a crença, na virtude de Galla, sua barba não faria sentido. É uma condição paradoxal, uma inversão da ordem “natural” do significante e do significado: o significado revela o significado do significante. Mas também ilustra a relação paradoxal entre fé e exegese: a crença deve preceder uma leitura dos sinais que levam à crença. Em outras palavras, a fé vem primeiro e a fé vem por último; é o alfa e o ômega, e sem ela o mundo não tem sentido. Nesse sentido, é notável que Burchard, próximo ao final de seu texto, interpreta a barba e a tonsura a partir de sua semelhança com as letras C e O, oferecendo uma multiplicidade de significados associados a cada letra.
Pode parecer anacrônico impor a estes diferentes escritores ânsias hermenêuticas que parecerão a muitos singularmente modernas, se não pós-modernas, mesmo que as suas preocupações sejam qualificadas como inconscientes. No entanto, não há dúvida de que esses escritores, cada um à sua maneira, encontraram nas barbas e nos cabelos um caminho para preocupações maiores e mais profundas, e os textos, muitas vezes enlouquecedores, dos sermões de Burchard, da poesia de Hucbald e do discurso de Sinésio – sérios ou não, intencionais ou não – demonstram por que algo tão insignificante como o cabelo merece um estudo mais atento. Esses escritos refletem o impulso acadêmico moderno de elevar assuntos aparentemente triviais e sem importância a um significado histórico, até mesmo cósmico, embora talvez tenham a vantagem de não se levarem tão a sério.
Referências
McAlhany, Joseph. Beards & Baldness in the Middle Ages: Three Texts. Brooklyn: Leverhill, 2024.
[1] PhD em Estudos Clássicos pela Columbia University: <https://uconn.academia.edu/JosephMcAlhany/CurriculumVitae>.
Publicado em 10 de Setembro de 2024.
Como citar: MCALHANY, Joseph. Cabelos e sentidos na Idade Média. Tradução: Luiz Guerra. Blog do POIEMA. Pelotas: 10 set. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/cabelos-e-sentidos-na-idade-media. Acesso em: data em que você acessou o artigo.