Texto: A Pervivência do Amor Cortês em Poemas de Fins da Idade Média Portuguesa

Geraldo Augusto Fernandes[1]

 

O amor cortês tem origem na Ars amatoria e nos Amores do poeta latino Ovídio (43 a.C.-17 d.C.). O manual de Ovídio ensina a arte da sedução, da infidelidade, do engano e da obtenção do máximo prazer sexual, tudo elaborado a partir de suas próprias experiências (que estão descritas em Amores).  Esse manual versa sobre as regras da procura e da escolha da/do amante, os códigos de beleza da mulher e do homem, o desejo da mulher, o ciúme, o domínio da linguagem, o poder do vinho como aliado na sedução, o fingimento, a lisonja, as promessas, como presentear, a técnica da carícia; a necessidade de concórdia, paciência e alternância entre insistir e ceder (Cf. OVÍDIO, 2013). Todo esse manual ovidiano serve de temática para os dois primeiros livros do Tratado do amor cortês de André Capelão (séc. XII, Provença). Para Capelão, o amor teria a virtude de ser a raiz da cortesia, a fonte de todo bem, conforme atesta Claude Buridant, introdutor do Tratado e seu tradutor do latim (BURIDANT, 2000, p. XXXVIII); e nas palavras de Capelão: “todos os homens sabem que nenhuma ação virtuosa ou cortês poderá ser realizada neste mundo se sua fonte não for o amor” (CAPELÃO, 2000, p. 30). São características desse amor: a mulher é equiparada a uma suserana, o amante mostra submissão total à mulher, exprime o desejo de ser aceito como seu vassalo e oferece-lhe seus serviços. (BURIDANT, 2000, p. XXXIX). Exigem-se do amante a mais profunda humildade e a obediência mais estrita. A mulher tem a liberdade de conceder ou não a seu servidor a recompensa que ele espera. O amor não pode ser obtido sem os penares, os sofrimentos e os tormentos que lhe dão valor, mas é ele que

“une o coração de dois seres por tal sentimento de afeição que eles não desejam as carícias de outros; ao contrário, cuidam de esquivar-se aos prazeres que poderiam gozar em outros braços, por acharem que são detestáveis, e reservar-se um para o outro” (CAPELÃO, 2000, p. 205-206).

O Amor é feito da tensão perpétua, do desejo sempre exacerbado que é fonte de aperfeiçoamento. Contudo, o amor conjugal está excluído do amor cortês (IDEM, 2000, p. 125; 219; DIAS, 1998, p. 259-260).

Também para os trovadores, a oposição entre fin’amors e amor conjugal é absoluta e irredutível. O amor conjugal é tranquilo e monótono; o corpo da mulher pertence a seu dono (essa mesma concepção prevalece nos séculos XV/XVI, como registrada no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, como se verá em seguida). Conforme Buridant, Alexander Joseph Denomy no estudo dedicado às origens do Tratado, diz que o amor cortês consiste em três coisas fundamentais: a posição elevada do ser amado, a elevação do amante em direção ao ser amado, o amor como desejo e anseio (BURIDANT, 2000, p. XLII). Em Lancelote de Chrétien de Troyes, por exemplo, este amor corresponde em tudo ao fin’amors dos trovadores. Os atos de Lancelote pelo amor à rainha foram ditados por esse amor (IDEM, p. XLIII). Capelão, então, assim define o amor:

“Amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza. Passamos a desejar, acima de tudo, estar nos braços do outro e a desejar que, nesse contato, sejam respeitados por vontade comum todos os mandamentos do amor” (CAPELÃO, 2000, p. 5-6).

Como o que pregou Ovídio, essas são as virtudes que um amante deve possuir: generosidade, prodigalidade, caridade (prova de cortesia), obediência aos superiores, respeito a Deus e seus santos, humildade, abstenção da maledicência, espírito de conciliação, moderação no rir, frequentação dos grandes, prática comedida do jogo de dados, coragem, fidelidade a uma só mulher, sobriedade no vestir, amabilidade, moderação nas promessas, sinceridade, distinção na linguagem, hospitalidade, deferência para com os ministros de Deus, religiosidade. Discrição e prudência são critérios dessa sapiência amatória. São esses os elementos basilares do amor cortês (Idem, 2000, p. 59-62; 212-213).

Outro grande poeta que cultivou o amor cortês foi Petrarca, para quem amar é uma prisão em que a figura amada detém a chave da libertação do amante, mas como não há correspondência, ele viverá preso eternamente. Petrarca criou vários lugares comuns sobre o amor: a dor de amar faz o amante chorar a noite inteira sem encontrar paz e a musa amada, virgem, que é sempre inacessível e inalcançável seja no céu, seja na terra, apenas mais perto do poeta depois da morte ou através do sonho. O amor suplicado e não atendido, a dor que se iguala a uma morte em vida, leva o poeta a confrontar tendências opostas, nas quais se eleva um desejo de superação das oposições para transformá-las em imagem e sonho indo além das aparências (Cf. MORELATO, 2011, online).

Essa poesia trovadoresca brevemente descrita até agora começa a declinar durante o reinado de D. Dinis, conhecido como último trovador. Os poetas, a partir de então, começam a ser seduzidos por novas formas literárias. Assim afirma Aida Fernanda Dias sobre estas novidades do século:

“Como a época que se vive é de novidades, como se manifesta outra mentalidade, como os espíritos se mostram receptivos a novas formas de arte – sejam as visuais, as auditivas ou as letras –, no campo da escrita são os ditames e os modelos do Humanismo e do Renascimento italianos que vão também imperar” (DIAS, 1998, p. 42).

A poesia do fin’amors trovadoresco era compor letra e som; agora, a música não mais deveria ser obrigatória nas composições; era para ser dita, explanando doutrinas religiosas, morais, amorosas, em trovas, perguntas e respostas, cantigas, esparsas e vilancetes.

A poesia nesta época é complemento da galanteria em que o centro é a mulher. Requisitos que devem responder os enamorados: não serem muito moços nem passarem dos 36 anos; descenderem de boa estirpe; serem virtuosos, discretos, de gentil condição; possuírem suas divisas; serem graciosos em perguntas e respostas; serem bem falantes; motejarem ligeiramente; vestirem-se de acordo com o tempo, corpo e idade. (DIAS, 1998, p. 248). Note-se que esses requisitos têm por base os conselhos de Ovídio, André Capelão e Petrarca, como dito acima.

Mas um galã só o será se for um perfeito amador, confessar ser servidor de uma dama, a qual poderá ser sua inimiga e senhora (como canta Fernão da Silveira na cantiga 56, I: Que de tal troca se siga / ser de todo meu bem fora, / pois me vejo em tanta briga / quero vos trocar d’amiga / por immiga e por senhora). A dama é sua vida e sua morte, como era na fin’amors. A perfeição, o poeta a alcançará se seu coração for nobre e generoso, o que faz com que ele ame dentro dos princípios do amor cortesanesco. A dama do século XV continua sendo a dame sans merci cantada pelos provençais, pelos trovadores galego-portugueses e por Petrarca e que continuará a ser cantada por Camões, Cervantes, Garcilaso e outros (Cf. DIAS, 1998, p. 250). No CGGR quase todas as composições de amor são inspiradas por damas do mesmo nível social do poeta, diferente do amor trovadoresco e celebrá-las era o uso (IDEM, p. 252), como no excerto de João Barbato (I, 182): “Se quiseres servir amores, / tu sabe tomar aqui / tua ventagem, / esta dama que servires / nam valha menos que ti / por linhagem.”

O tema da partida (chegar e partir, tema medieval por excelência) ressurge no CGGR; é uma partida que separa dois seres que se amam ou que corta a sequência do servir. Partida é fonte de desalento e de tristeza, refletidos nos olhos e no coração de quem a experimenta. No compêndio de Resende, há composições bem sentidas como a antológica cantiga de João Ruiz de Castel Branco (CGGR, 396/324/II).

CANTIGA SUA, PARTINDO-SE.

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.

Outro leitmotiv da lírica amorosa é o morrer de amor, o viver-morrendo, tudo porque a dama é cruel, altiva, desdenhosa. Os poetas da língua d’oc e da língua d’oïl, os trovadores galego-portugueses, os do Cancionero de Baena e os poetas do dolce stil nuovo também refletem esse morrer-vivendo, assim como os autores do CGGR, prosseguindo esta tradição de séculos falando da sua morte, provocada pela alegria de haver contemplado a amada, ou pelo fato de não haverem gozado da sua presença. A doce inimiga se deleita com as penas de seu servidor, então é a morte que poderá dar prazer ao amante, como no excerto dum poema de João de Meneses (CGGR, 10, I):

E pois vejo que em morrer
levais groria nom pequena,
antes nam quero viver
que vive[r]des vós em pena.
Quero triste sepultura,
quero fim sem mais tardança,
pois nunca tive esperança
que nam fosse de trestura.

Na quase totalidade, os poetas celebram a mulher solteira que leva a composições satíricas ou sentimentos lamentosos, quando privados da sua presença e terem de continuar a vassalagem amorosa. O amor verdadeiro não pode existir entre os esposos, seguindo as normas do tratado de André Capelão, como dito supra. Mas aparece uma novidade: o amor conjugal é exaltado e o marido tem por senhora aquela com quem se casou, numa identificação perfeita de dois seres, que Camões definiu no soneto “Transforma-se o amador na cousa amada”. Essa identificação perfeita aparece na cantiga de Nuno Pereira que escreve:

-95-     (Nuno Pereira)          -295/ I

OUTRA SUA A ESTA SENHORA.

Somos ũa cousa nós,
em ambos ũa soo fim,
eu nam sam em mim sem vós,
nem vós nam estais sem mim

Em ambos ũa soo vida
a como cahir em soorte,
que nam pode ser partida
antre nós vida nem morte.
Todo o ser que for de nós
de qualquer cousa em fim,
eu nam sam em mi sem vós,
nem vós nunca soo sem mim

Nota-se, também, que a casuística amorosa adquiriu, no fim da Idade Média, um tom mais melancólico, próprio da alma portuguesa, o que já se sentia nas antigas cantigas de amor e de amigo, e que se depurou pelas sutilezas e pelo requinte formal. A expressão amorosa apresenta-se, no CGGR, em formas poéticas musicais, em comparação com seus vizinhos castelhanos, e essa musicalidade vem renovada do lirismo galego, reproduzindo um certo romantismo melancólico, parte do ethos português. Isso está, de certa forma, presente nos dominantes do Cancioneiro individual de Duarte de Brito, em que as expressões remetem a um amor que mata. À forma inovadora, são acrescidos elementos de individualidade, sinceridade e espiritualidade, pois a língua, agora, permite ao poeta expandir sua sentimentalidade, aliada ao exercício do poietes, por meio de muitos artifícios retóricos.

Em poemas dos fins da Idade Média portuguesa, nomeadamente alguns que aparecem no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, observa-se que, de um conceito de amor em que o poeta é ainda submisso à dama servida, surgem outros casos, um sentimento mais realista, já com germes das novidades que serão cantadas no Renascimento. Por exemplo, aqueles em que, abandonando o ideal da cortesia amorosa, da coita de amor especialmente, o poeta se confessa livre da crueldade da dama que deveria servir, como no vilancete 687 de Jorge de Resende, ícone de toda a mudança que perpassou a poética à época do CGGR, com germes das futuras estéticas.

VILANCETE, DESAVINDO-SE DE ŨA MOLHER QUE SERVIA.

Vós me quisestes perder,
eu, senhora, me guanhei,
pos de voss me livre.

Eu cumpri quanto abastasse
como quem vos muito amava,
vós quisestes que cuidasse
quanto contra mim errava.
Contudo nam me pesava,
mas agora qu’acordei,
conheço que me salvei.

Referências:

CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias. Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-1993. Volumes I a IV.

CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DIAS, Aida Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. Volume V.

MORELATO. Adrienne Kátia Savazoni. A invenção do amor em Petrarca. 2011. Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-literatura/3162590#:~:text=O%20ser%20%E2%80%93%20humano%20como%20centro,sentimentos%20mais%20profundos%20do%20ser. Acesso em 10 mar., 2023.

OVÍDIO. A arte de amar. Trad. Dúnia Marinho da Silva. Porto Alegra: L&PM Pocket, 2013.

[1] Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Federal do Ceará (UFC). geraldoaugust@uol.com.br Lattes: https://lattes.cnpq.br/3081836249489094


Publicado em 13 de junho de 2023.

Como citar: FERNANDES, Geraldo Augusto. A Pervivência do Amor Cortês em Poemas de Fins da Idade Média Portuguesa. Blog do Poiema. Pelotas, 13 jun 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/a-pervivencia-do-amor-cortes-em-poemas-de-fins-da-idade-media-portuguesa/ Acessado em: data em que você acessou o artigo.