Texto Cifras, Tintas Invisíveis e Anjos Planetários: Por uma História do Segredo    

Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior[1]

 

Vivemos em uma época de superexposição: seja de ideias, seja de ações ou de imagens. As redes sociais tendem a criar um estado de aparente superpublicização social. Existe uma sensação de que aquilo que não é exposto não foi de fato vivenciado. É preciso que se saiba o que e como comemos, aonde e com quem fomos, compartilhar nossos momentos e pensamentos mais íntimos. Reativamente, a intimidade é igualmente supervalorizada. Estamos cercados por muralhas de senhas e firewalls, sempre temerosos que a publicização de nossas vidas saia de nosso controle. Contudo, não vivemos algo necessariamente novo, mas uma superlativização de uma relação social tão poderosa quanto antiga: as danças entre segredo e sigilo.

Ao defendermos uma história do segredo, não podemos deixar de apontar que se trata da história de um fracasso. Como já discuti anteriormente em outros trabalhos (MENDONÇA JÚNIOR, 2014; MENDONÇA JÚNIOR, 2017), só é possível tomarmos o segredo como objeto de estudo pois ele fracassou em seu intento original, isto é, manter-se fora do nosso alcance. Isso pode ser resultado de falha técnica, ou seja, o emprego equivocado de técnicas de sigilo; contudo, pode haver uma dimensão de intencionalidade. O segredo pode ter sido tornado público por uma traição daqueles a quem foi confiado ou vitimado pelas imprevisíveis ações de seus maiores inimigos: a Fortuna e a ânsia por glória. De toda forma, que não desapareça das vistas de quem se interessar em pesquisar a dimensão social do segredo que estará às voltas com um fracasso e suas consequências.

Uma preocupação igualmente central ao investigar tal temática lida diretamente com uma questão também presente em outras searas da pesquisa histórica, ou seja, como empregar o vocabulário enquanto ferramenta de análise. A maior parte da produção acadêmica sobre o tema ainda tem como língua de trabalho o inglês. Isso possibilita a tais investigadores adotar uma terminologia com o mesmo radical: secret, secrecy e secretiveness. Pode-se entender que secret é aquilo que se deseja manter secreto, secrecy como as ações para manter isso secreto e secretiveness como a qualidade de algo ou alguém em manifestar ou exercer secrecy. Quando temos como língua de trabalho o português, se ausenta a possibilidade de adotar termos com um mesmo radical originário. Assim sendo, a solução que utilizamos e propomos é empregar um conjunto de vocábulos que partilhem a mesma família etimológica. Portanto, para secret teríamos Segredo, para secrecy sigilo e para secretiveness adotaríamos secretismo (MENDONÇA JÚNIOR, 2017). É uma solução possível e que se mostrou útil; contudo, isso não implica que não se possa buscar por alternativas.

Ultrapassada, momentaneamente, a questão técnica do ferramental léxico, a próxima reflexão deve centrar-se sobre o motivo de segredo e sigilo poderem ser lidos como objetos de investigação historiográfica. Entendemos que isso é possível porque tanto segredo e sigilo são forças capazes de colocar a vida social em movimento e, além disso, de criar relações hierarquizantes de poder. Dialogando com o basilar trabalho de Georg Simmel sobre o segredo, Kippenberg e Stroumsa (1995, p. xiv) apontam que o segredo só existe na forma de relação, sendo que essa se daria entre pelo menos três sujeitos. Eles seriam os dois que compartilham o segredo e um terceiro ao qual se nega acesso ao mesmo por meio de práticas de sigilo. Assim, o poder do segredo reside justamente na tensão de ser conhecido e desconhecido, posto de outra forma, que se saiba que ele existe, mas não do que se trata.

Karma Lochrie (1999), dialogando com Michel de Certeau, aponta que o segredo é um ato social e como tal geraria uma divisão dos indivíduos entre “aqueles que sabem” e “aqueles que não sabem”. A questão é que se o segredo tiver sucesso, ou seja, permanecer desconhecido daqueles a quem é proibido sabê-lo, o mesmo não tem valor. Quando “aqueles que não sabem” se tornam cientes de que há algo a ser conhecido, “aqueles que sabem” podem tornar seu conhecimento até então exclusivo em elemento gerador de poder. O segredo é fonte de poder e de hierarquização social enquanto consegue manter a tensão entre conhecimento e ignorância.

Um exemplo pode esclarecer o entendimento do segredo enquanto motor de dinâmicas históricas. Para tal recorreremos às relações entre mestre e discípulo. Pensamos tais categorias a partir do esforço de Antoine Faivre (1994) em apontar características que poderiam indicar ou não se um fenômeno seria esotérico. Para tal autor haveria quatro intrínsecas (Correspondência, Natureza Viva, Imaginação e Mediações, Transmutação) e duas relativas (Prática da Concordância e Transmissão). Essa última seria a necessidade e importância da transmissão desse saber esotérico entre um iniciado e um não-iniciado, ou seja, entre mestre e discípulo. Isto posto, para recorrer a categorias já apresentadas, podemos alocar o mestre entre “aqueles que sabem” e o discípulo em meio “aqueles que não sabem”. Essa relação surge e é pautada não apenas pela tensão entre ignorância e conhecimento, mas também pela promessa de transição entre os grupos.

O mestre depende de reconhecimento social para o sê-lo, ou seja, deve ser sabido que ele sabe algo que os outros desconhecem. Se a sua posse de um dado conhecimento for absolutamente secreta, não há condição social para que seja percebido como mestre. Dito de outra forma, sem discípulo não há mestre. A relação entre ambos é hierarquizada por práticas de sigilo em torno de um dado segredo. Ao mestre compete ensinar e testar o discípulo a fim de que se possa aferir se este é merecedor de ver além dos véus do secretismo.

A relação social gerada pelo segredo deve ser compreendida como uma relação de poder nos moldes foucaltianos. Assim, não existe um polo absoluto de força. O poder do mestre sobre o discípulo reside justamente naquilo que será a ruína dessa hierarquia: a promessa de que o bom discípulo se tornará mestre um dia. Sem a certeza de que atingir esse objetivo é uma possibilidade concreta, a autoridade do mestre sobre o discípulo se esvazia. Essa relação, portanto, se pauta em delicado equilíbrio entre desafio e promessa, aonde o mestre pode complexificar a trajetória que separa o seu discípulo de igualar-lhe, mas não pode criar impedimentos. Os véus de sigilo que o mestre lança sobre o segredo podem apenas turvar a visão do discípulo, o vulto que se vê através deles é a base dessa relação social de poder.

Tenhamos com clareza que o segredo não é um dado natural, sendo assim uma criação, o que lhe dá historicidade. Portanto, as relações hierarquizantes de poder oriundas das interações entre segredo e sigilo só são adequadamente compreensíveis ao serem situadas no tempo e no espaço. Não basta, no entanto, apontar que o segredo é uma construção cultural, há de se pensar que tipo de produto é esse. Algo é tornado secreto através de discursos que assim o qualificam, conjuntamente com práticas de sigilo que buscam envolve-lo em secretismo. Um bom exemplo disso foi o Secretum Secretorum.

Trata-se de um livro muito popular no medievo, como apontam os mais de seiscentos manuscritos disponíveis, traduzidos em várias línguas (LOCHRIE, 1999). Popular nas cortes papal e imperial do século XIII, tendo como um dos seus principais comentadores Roger Bacon (1214-1294), o Secretum Secretorum, o Segredo dos Segredos, em uma tradução livre, era entendido como uma compilação de conhecimentos secretos transmitidos por meio de um diálogo entre Aristóteles e Alexandre, o Grande. A promessa é de que ele fornecia as ferramentas tidas como fundamentais para o bom governo, portanto conferindo poder a quem lhe fosse bom discípulo. Contudo, os assuntos tratados pela obra eram, de forma geral, de conhecimento de um número considerável de pessoas. Ele tratava de temas relativos a práticas de cura, conselhos políticos sobre realeza, justiça e o bom governo, além de alquimia, fisiognomia, magia e astrologia. Assim, como acontece diversas vezes com o segredo, o que o torna fonte de poder é muito menos a matéria que o constitui e muito mais a promessa construída a partir dele. Como motor social, importa muito menos o que é de fato o segredo e muito mais sua capacidade de separar os indivíduos entre “aqueles que sabem” e “aqueles que não sabem” (MENDONÇA JÚNIOR, 2017).

Conjuntamente com sua dimensão discursiva, segredo e sigilo incitam diversas práticas ao redor de si. Desde a Antiguidade foram desenvolvidas variadas técnicas de comunicação secreta, como apontou o humanista napolitano Giambattista della Porta (c.1535-1615) em seu De Furtivis Literarum Notis vulgo De Ziferis – Libri III, publicado em 1563. Dedicado a Felipe II (1527-1598), essa obra aprofundaria uma temática que já havia aparecido em um trabalho anterior de della Porta, o Magia Naturalis (1562): a comunicação secreta. Se na primeira obra a questão resumiu-se a tintas especiais, por exemplo aquelas visíveis apenas através da ação do calor, agora a discussão se pretendia mais sofisticada. No De Ziferis, della Porta tratou de distintas técnicas de comunicação cifrada: métodos substitutivos, criação de alfabetos cifrados, uso de discos criptográficos e mais. Della Porta também apresenta algumas justificativas para empregar tais artifícios de sigilo. Pode-se pensar em termos mágicos:

os Magi inventaram e moldaram certos caracteres para salvar seu conhecimento do uso ou da leitura da ralé, como qualquer leitor pode ver por si mesmo em Honório Tebano e outros (Giambattista DELLA PORTA, 1563, p. 3-4, tradução nossa).

Como também para o palco da política. Conforme della Porta (1563, p. 2, tradução nossa), se vivia “em tempos quando a mais completa licença prevalece, e quando ninguém ousa proibir crimes”. Portanto,

É claro a partir desses exemplos que isto é de grande vantagem para o escritor, e também para a pessoa a quem ele está escrevendo, que os segredos seriam confiados para a escrita com as devidas salvaguardas, pois várias chances e aberrações da fortuna são prováveis que aconteçam por meio das quais planos secretos talvez caiam nas mãos dos inimigos, e nesse caminho não apenas fazer os projetos falhar do resultado desejado, mas os autores não escapam impunes. […] Mas tomaria muito tempo recapitular toda a lista de exemplos espalhados através das incontáveis páginas da história, que claramente anunciam quanto dano cartas escritas sem astúcia tem feito para os escritores e, por outro lado, quanto isto tem beneficiado pelas cartas [que] têm sido escondidas. Nós, também, que escrevemos estas linhas, temos com frequência feito a boa fortuna em fazer um serviço aceitável para amigos neste particular. Ao interceptar e interpretar missivas traiçoeiras deste tipo, nós temos salvado nossos amigos de atos de traição, os quais foram preparados, e nos quais eles teriam de outro modo facilmente caído (Giambattista DELLA PORTA, 1563, p. 3-4, tradução nossa).

O napolitano também recapitulou as técnicas de comunicação cifrada apresentadas por Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535) em seu De Occulta Philosophia Libri III e pelo abade alemão Johannes Trithemius (1462-1512). O religioso beneditino merece atenção especial.

Johannes Trithemius construiu longa e importante carreira como abade na Ordem de São Bento, além de ocupar relevante papel no movimento humanista germânico. Para além de exortador da reforma monástica, defensor dos livros – acima de tudo aqueles fruto do scriptorium –, o abade ficou conhecido pelo envolvimento com duas temáticas: a magia e as cifras. Sua primeira obra que interconectava esses dois campos foi a Steganographie: Ars per occultam Scripturam animi sui voluntatem absentibus aperiendi certu, escrita por volta de 1499 e publicada posteriormente, a qual ele definiu como

todos os métodos, maneiras, diferenças, qualidades e métodos desta nossa arte, à qual chamamos steganographia, (contendo segredos, enigmas mistérios completamente claros para nenhum homem mortal, por mais erudito ou sábio) que nunca pode ser completamente descoberta (Johannes TRITHEMIUS, 1621, p. 6, tradução nossa).

A Steganographia misturava técnicas de comunicação cifrada por substituição e magia cerimonial, dialogando com o hermetismo e a tradição salomônica, como fica explícito a partir de seu segundo livro. O abade assim construiu práticas de sigilo envolvendo cifras, anjos planetários e magia cerimonial com o intuito de ofertar aos príncipes palatinos e ao próprio imperador Maximiliano I (1459-1459) meios de proteger seus segredos dos olhares “daqueles que não podem saber”.

A Steganographia de Trithemius é um bom exemplo de como a Fortuna e a sede de Fama são inimigas do segredo. Ainda que afirmasse escrever apenas para os olhos “daqueles que podem saber”, Trithemius não perdeu a chance de publicizar ser um mestre de segredos. Enviou uma carta a um amigo carmelita para se gabar de sua obra, contudo a mesma acabou caindo nas mãos do prior de seu destinatário, dado que esse havia falecido. Ao receber o francês Carolus Bovillus (c.1470-c.1553) em sua abadia em Sponheim, não exitou de apresentar-lhe a obra e vangloriar-se da mesma. O resultado de ambos os casos foi o mesmo: acusações públicas de que o abade estava envolvido com demonomagia, que apenas conseguiram ferir o orgulho de Trithemius. Contudo, mesmo quando escreveu sua resposta a tais acusações, a Polygraphia, obra de comunicação cifrada que o abade beneditino definiu como “livre dos erros da superstição”, ele recorreu a ideias oriundas da cabala prática e mesmo alfabetos mágicos, como o atribuído a Honório de Tebas (MENDONÇA JUNIOR, 2014).

 Assim como della Porta, Trithemius viu um fim político no instrumento de sigilo que oferecia. Em um mundo que o abade via como profundamente perigoso, o segredo se tornaria arma fundamental.

Porque outrora, não obstante, muitos reis, tiranos e príncipes antigos inventaram para si um modo comum entre eles [para] o que deve ser escrito, a suspeita dos outros tratando [de] pouca coisa, de modo [a] não ser percebido o que desejavam permanecer secreto (Johannes TRITHEMIUS, 1518, p. 488, tradução nossa).

Trouxemos Giambattista della porta e Johannes Trithemius como forma, não apenas de historicizar a presente reflexão, mas também de demonstrar como as relações entre segredo e sigilo vão além da dimensão discursiva, desdobrando-se em práticas que afetaram a vida dos indivíduos.

Esperamos ter demonstrado que as relações entre segredo e sigilo são elementos importantes da experiência humana em sociedade. O próprio Estado moderno tem nessas dimensões da vida um dos seus pilares fundamentais, basta que lembremos as discussões de Nicolau Maquiavel sobre a importância de o príncipe saber dissimular o que é e simular o que não é. Vivemos em tempos em que o sigilo lançado em uma carteira de vacinação pode se tornar centro de acaloradas disputas políticas. Entendemos que há muito que se discutir sobre sigilo, segredo e secretismo tanto para o medievo quanto para a primeira modernidade, ainda mais a partir de olhares latino-americanos, mais isentos dos compromissos nacionalistas de outras paragens, por exemplo. Encerramos com o conselho que um envelhecido Trithemius deu a um jovem Agrippa, quando este pediu a opinião do abade sobre seu De Occulta Philosophia.

Ainda eu aconselho que você observe esta regra, que você comunique segredos vulgares para amigos vulgares, mas segredos importantes apenas para amigos importantes. Dê feno ao boi, e açúcar para um papagaio apenas (Heinrich Cornelius AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, não paginado, tradução nossa).

 Bibliografia

Giambattista DELLA PORTA. De Furtivis Literarum Notis vulgo De Ziferis – Libri III. Neapoli: Apud Ioa Mariam Scotum, 1563.

Heinrich Cornelius AGRIPPA VON NETTESHEIM. De occulta philosphia, Libri III. Lugduni: apud Godefridum & Marcellu, fratres, 1550

Johannes TRITHEMIUS. Polygraphiae libri sex, Ioannis Trithemii Abbatis Peapolitani, quondam Spanheimensis, ad Maximilianum Caesarem. Oppenheim: Haselberg, 1518.

Johannes TRITHEMIUS. Steganographie: Ars per occultam Scripturam animi sui voluntatem absentibus aperiendi certu, 4to, Darmst. 1621

FAIVRE, A . O Esoterismo. Campinas: Papirus, 1994.

JUCKER, M. Secrets and politics: methodological and communicational aspects of late medieval diplomacy. Micrologus: Natura, Scienze e Società Medievali. Florença, SISMEL – Del Galluzo, 2006, nº XIV.

KIPPENGER, H. G. e STROUMSA, G. G. Introduction. Secrecy and its benefits, In: Secrecy and concealment: studies in the history of Mediterranean and Near Eastern religions. Leiden – New York – Köln: Brill, 1995.

LOCHRIE, K. Covert operations: medieval uses of secrecy. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

MENDONÇA JUNIOR, F. de P. S. Secretum Secretorum: o lugar do esoterismo nas cortes papal e imperial no medievo. História Revista, Goiânia, v. 22, n. 1, p. 4–18, 2017.

MENDONÇA JÚNIOR, Francisco de Paula. A Arte do Segredo: esoterismo, segredo, sigilo e dissimulação política nos séculos XV e XVI. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas; UFMG, 2014.

MENDONÇA JÚNIOR, Francisco de Paula. Esoterismo, sigilo e segredo: Algumas reflexões metodológicas. In     : BUBELLO, Juan Pablo; CHAVES, José Ricardo; MENDONÇA JÚNIOR, Francisco de Paula. Estudios sobre la historia del esoterismo occidental en América Latina: enfoques, aportes, problemas y debates. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras Universidad de Buenos Aires, 2017.

[1] Doutor em História e Culturas Políticas pela UFMG. Email: kirijy@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6177272366272480


Publicado em 21 de março de 2023.

 

Como citar: MENDONÇA JÚNIOR, Francisco de Paula Souza de. Cifras, Tintas Invisíveis e Anjos Planetários: Por uma História do Segredo. Blog do POIEMA. Pelotas: 21 mar. 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-cifras-tintas-invisiveis-e-anjos-planetarios-por-uma-historia-do-segredo/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.