Santiago Barreiro (CONICET)
Tradutor: João Cortes
O mundo literário do norte medieval ressona na cultura popular contemporânea. As vezes o eco óbvio: temos filmes sobre Thor, deus do trovão, séries sobre vikings, filmes sobre os homens do norte. As vezes é mais indireto. Assim, se deve conhecer algo sobre a língua nórdica antiga para saber que Hallbrand (“espada do salão”) é um nome próprio nórdico antigo, da mesma forma que Gandalf (“Elfo da vara mágica”) e Durin (“O que dorme”; os anões da Terra Media costumam levar nomes tomados da mitologia escandinava), por mencionar a dois personagens do mundo audiovisual tolkieniano que hoje circulam por nossas telas. 1
Esta popularidade e recorrência cotidiana deste norte medieval não costuma corresponder, no mundo Iberoamericano pelo menos, com um maior e melhor acesso al conhecimento sobre este universo literário, cultural, histórico. Isto é talvez menos notável em espanhol que em português, mas segue sendo muito mais evidente que no mundo anglo-saxônico, germânico, ou inclusive francês e italiano. É verdade que muitos colegas e especialistas tem feito um esforço notável para reverter esta situação, mas a imagem pública ainda é bastante confusa.2 Em boa parte do imaginário popular, os vikings seguem utilizando capacetes com chifres, seus barcos seguem chamando-se drakkars (uma notável aberração fonética e mais, as fontes costumam utilizar langskip ou knarr), e a religiosidade pré-cristã se apresenta como uma espécie de panteão estável onde Odin manda (Óðinn, “o extasiado”, com uma curiosa mutação do acento à sílaba final) desde seu trono em Asgard (Ásgarðr, aqui o acento sobreviveu), e os crentes buscam uma morte gloriosa para ir ao Valhala (deformação mais ou menos compreensível de Valhǫll), e resistem com virilidade e obstinação as tentativas de cristianiza-los. Tudo enquanto um skald recita sagas transmitidas oralmente e, preserva assim a memória do povo de uma geração à outra.
Todo este imaginário é insustentável historicamente e filosoficamente, vícios de interpretações entre imprecisas e improváveis. Resulta, no entanto inevitável para um historiador perguntar-se sobre a origem destas representações. As causas, como de costume, são complexas e múltiplas, mas aqui vou centrar-me na quela que me parece mais aproximada. E esta é a má compreensão do lugar histórico ao interpretar as fontes em língua vernácula, local, sobre as que descansam em última a instancia as leituras sobre o Medievo nórdico. É um universo de centos de textos de mais diversa extensã, entre os que destacam as famosas sagas e as não menos famosas obras chamadas Edda.3
Comecemos pelas sagas. São, literalmente, histórias. A palavra saga (o plural nominativo é sǫgur) provem de uma raiz associada ao verbo germânico para “dizer, relatar”, como em inglês say, em alemão sagen, ou em islandês segia. Mas as sagas que preservamos são obras literárias, e seu sentido é o mesmo que história em espanhol ou português: tanto relato como construção do passado, tanto story como history.
O importante é que não estão ditas mais que através da escrita. É verdade que também podem ter um contexto oral, tal como defendem alguns estudiosos. 4 Mas este contexto está irremediavelmente perdido e sua reconstrução é sempre especulativa: não parece nada provável que alguma vez passe a ser mais que uma possibilidade. Em vez disso, que na maioria dos casos estamos diante de obras construídas diretamente como literatura é uma certeza a oito décadas.
São obras compostas a partir de finais do século XII e por vários séculos por autores em sua maioria anônimos, mas algumas vezes nomeados e em alguns casos, muito conhecidos. São obras copiadas, alteradas, reescritas por outros tantos séculos por várias gerações de homens e mulheres, leigos e eclesiásticos. São obras fundamentalmente de prosa, ainda que em alguns casos incorporam versos, seja para dar legitimidade histórica ao narrado ou para fazer mais dramática a narrativa. E, finalmente, são obras que uniformemente foram criadas e modificadas quase dois séculos depois da cristianização da Islândia (de onde provem a imensa maioria delas), pelo que, naturalmente, sua imagem sobre o passado pré-cristão (incluindo grande parte da era viking, mas também o mundo das migrações tardias da antiguidade continental) deve ser entendida como um universo primeiramente literário, ficcional. Desde uma perspectiva científica, o razoável resulta sugerir que, em princípio, o que um texto do século XIV diga sobre o mundo do século X fala da imaginação do século XIV, não sobre a realidade do século X.
Dito de outra maneira, os vikings e os pagãos das sagas são somente os vikings e os pagãos que eram imaginados por pessoas de séculos posteriores que, por regra geral, nunca conheceram a um viking nem a um pagão. E que não conheciam a ninguém que os tivesse podido conhecer, por esta simples razão de que estavam ao menos a várias décadas mortos antes que qualquer de seus conterrâneos nascesse. Somemos ao fato de que na era viking, as pessoas eram centralmente ágrafas e, com alguma exceção como a poesia escáldica (a qual nos referimos abaixo) ou as breves inscrições rúnicas, não tinham métodos para transmitir de maneira confiável e fixa seus conhecimentos históricos.
Mas os homens e mulheres letrados dos séculos da Idade Média central e tardia, em qualquer caso, desejavam falar sobre estes vikings e pagãos, em parte porque os imaginavam como seus ancestrais, o que explica a tendencia desta literatura em idealizar os personagens do passado, ou ao menos tolerar o que seus autores viam como evidentes falhas de caráter ou crença. Para isto, desde já, recorreram a várias ferramentas: reutilizar material da documentação jurídica anterior, hagiográfica e genealógica, que antecedem em um século às sagas, aos poemas escáldicos (sobre os que falaremos mais abaixo), à toponímia, ou a adaptar motivos e temas de outras literaturas de sua época, desde a Bíblia à literatura cavalheiresca francesa.6 Principalmente, no entanto, recorreram a sua imaginação e a seu conhecimento de seu próprio contexto ( que em ocasiões sem muito fingimento, transportavam ao passado de suas narrativas); e provavelmente (mas é impossível determinar em que medida) à tradição oral ou à memória popular.
A mesma lógica, com algumas reservas, se pode aplicar às Eddas. Estas são duas obras muito diferentes e que agrupamos mais por conta da tradição intelectual que por rigor cientifico. Formalmente falando, há somente uma Edda, que hoje chamamos Edda de Snorri, Edda en prosa, o Edda menor.[1] Composta nas primeiras décadas do século XIII pelo magnata e erudito islandês Snorri Sturluson, editada (com recortes) como uma espécie de tratado de mitologia. Mas isto não é completamente certo. Snorri, certamente, recupera, ordena, sistematiza, interpreta, e quase com segurança inventa toda uma série de mitos sobre os deuses pré-cristãos, as famílias chamadas Æsir e Vanir, e sobre seus antagonistas e subordinados, os Jǫtnar.
Essa criação de uma mitologia ordenada com Óðinn indiscutivelmente à cabeça ( o que seguramente não coincide com o mundo heterogéneo da prática pré-cristã: por exemplo, temos quase certeza de que no lugar que hoje é Suécia, Freyr deve ter dominado o culto e o mito) não responde a uma busca por recriar a mitologia, mas por dar ferramentas para produzir poesia. Sua Edda é um Ars poética, uma “arte da poesia” como as que eram usuais no mundo medieval latino, mas desenhado para os gêneros locais, o que hoje chamamos poesia “escáldica” (quer dizer, “poética”, em uma curiosa redundância), para o qual é necessário entender com algum detalhe as imagens e historias presentes nos mitos. À Snorri, profundamente cristão e letrado, não lhe interessam os mitos da era pagã por si mesmos, mas porque ajudam a compreender e compor poemas de um estilo que tentava reviver e popularizar. Seu objetivo era ganhar os favores do rei na corte norueguesa, onde desejava ser ungido como governante da Islândia, e todo sua obra literária deve entender-se desta maneira, começando por sua obra principal, a compilação de sagas sobre reis noruegueses chamada Heimskringla..
Entre as fontes de Snorri existe uma série de poemas que, felizmente, conservamos, principalmente em um manuscrito criado na Islândia no último terço do século XIII, um dos tantos códices conhecidos como Codex Regius. Por uma confusão posterior, esta coleção é conhecida hoje como Edda poética o Edda maior, o nome mais antigo, Edda de Sæmundr, está felizmente em desuso: ninguém alude mais a obra a este erudito islandês, Sæmundr Sígfusson o sábio.
É certo que boa parte destes poemas, em uma versão ligeiramente diferente, serviram de fonte à Snorri, mas não há razão para supor que o magnata tivesse exatamente acesso a todos eles, em particular porque existem fontes suspeitas de que vários destes poemas são invenções aproximadas ao autor do códice, compilado ao menos vinte anos depois da morte de Snorri. Mas, por outro lado, boa parte dos poemas parecem ser versões de versos arcaicos, que em alguns casos remontam a princípios da era viking ou inclusive antes. Datar poemas “éddicos” (como costumamos chamá-los) é uma tarefa extremamente complexa e possivelmente sem solução, em boa medida porque são facilmente alteráveis, e, portanto, cada poema pode incorporar várias capas de intervenções, orais e escritas.
Embora ambas Eddas foram utilizadas tradicionalmente como fontes principais para reconstruir a “mitologia nórdica” e a partir daí o “paganismo nórdico” ou inclusive um “paganismo germânico”, a tendencia atual é inversa. Muitos estudos recentes preferem evitar o pântano interpretativo tanto da Edda de Snorri como dos poemas éddicos que, terminantemente, são mais uteis para entender a época em que foram escritos, que para entender esta época previa. Obviamente, são fontes muito ricas para prescindir totalmente delas, mas os especialistas atuais costumam tratar com um cuidado inusual e um olhar profundamente crítico. Se apoiam, por outro lado, nos crescentes achados da arqueologia e nos poemas “escáldicos”, já que estes resultam mais confiáveis como fonte histórica, dado a sua rigidez e complexidade compositiva (o que faz com que seja complexo modificá-los) e sua atribuição regular a personagens que historicamente são possíveis de datar.
Estes avanços e perspectivas, hoje dominantes entre os estudiosos do mundo medieval nórdico que se centram nas fontes escritas em língua local, nos mostram um certo paradoxo. O passado é muito mais complexo, incerto e heterogêneo que aquele apresentado pela leitura de décadas passadas (e que vemos perdurar na cultura popular). Mas ao mesmo tempo, nos apresentam um passado mais rico, mais vital e mais interessante que o tedioso monolito cultural dos (vikings pagãos do norte”, que hoje, felizmente, vemos com uma curiosidade obsoleta. O desafio para os especialistas, no entanto, é transferir as interpretações e leituras atuais à percepção ampla do público.
Publicado em 24 de novembro de 2022.
Como citar: BARREIRO, Santiago. Entre Eddas e Sagas: O mundo literário medieval. Tradução: João Cortes. Blog do POIEMA. Pelotas: 24 nov. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-entre-eddas-y-sagas-el-mundo-literario-del-norte-medieval/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.