Paulo Duarte Silva[1]
Desde meados do século XIX, nota-se o crescente interesse acadêmico e editorial nas “Histórias” da Igreja e, em específico, do papado medieval. No âmbito do Debate Público, a progressiva relevância desse tema pode ser parcialmente justificada pelo entendimento geral do medievo como a “Idade da Fé” e a Igreja, sobretudo a romana, como sua principal expressão política e social.
Assim, pelo menos até meados do século passado, muitos estudiosos consideravam o “milênio medieval” como o momento em que teria ocorrido a problemática confluência entre religião e política, a assombrar desde então o Ocidente e a própria modernidade. Por outro lado, a intelectualidade católica exaltava, em tom nostálgico, o medievo como a “época da fé”, em meio às sensíveis mudanças políticas e sociais vividas pela Igreja Apostólica Romana.
Ademais, tais estudos foram muito influenciados pela referência do bispado romano, tomado como indicador para se avaliar o grau de desenvolvimento litúrgico, teológico e mesmo institucional de outras sedes ocidentais – em especial, se os pares episcopais tivessem mais ou menos proximidade e vinculação com a Santa Sé.
Embora essas perspectivas antagônicas ainda possam ser consideradas predominantes, nas últimas décadas elas passaram a conviver com interpretações alternativas da instituição eclesiástica e papal e de seus líderes, situadas para além do filtro confessional ou moderno, dedicadas tanto aos primórdios medievais quanto aos séculos ditos “feudais”.
Também é seguro afirmar que, no campo dos estudos alto-medievais, estão consolidadas as reflexões atentas às especificidades e aos desafios clericais em contextos tão variados como os das Gálias, da Hispânia, da Britânia ou de África, por exemplo. Dessa forma, o filtro “romano”, ou seja, a valorização da influência romana junto às demais igrejas, parece menos decisivo nas pesquisas históricas, que passaram a enfatizar as dimensões regionais dos cristianismos.
Por outro lado, recentemente, mesmo considerando a importância da sede romana nos assuntos eclesiásticos ocidentais, diversas pesquisas colocaram em perspectiva sua liderança “papal”, avaliada como inconteste, unívoca, destinada, tijolo por tijolo, ao triunfo apostólico romano na Idade Média Central. Para citar apenas três destacados livros produzidos na década passada a respeito, Sessa (2012), Demacopoulos (2013) e Dunn (2015), lembramos que foram saudados como parte de uma literatura que vem buscando “desmantelar uma história ordeira da ascensão do poder papal” (HILNER, 2016, p. 373, tradução nossa), ao concluírem que esta não foi “tranquila, uniforme, ou inevitável” (CLARK, 2016, p. 386, tradução nossa).
Esta revisão se deu, a princípio, pela reavaliação dos governos daqueles considerados como os primeiros “papas”, como Leão (440-461) e Gelásio (492-496) ou pelo exame de outros bispos romanos, menos ilustres, como Zózimo (417-418). Revela-se, assim, uma liderança eclesiástica em construção, sujeita a contingências, reviravoltas e dificuldades muito variadas.
Outra mudança decisiva se deu com a reconsideração crítica do Liber Pontificalis (LP), obra que, hoje se sabe, teve importância crucial na construção da ideia de “papado” desde o século VI, quando da publicação de sua primeira versão. Até recentemente, o LP era tido como um testemunho seguro e isento de informações e evidências a respeito da organização da igreja romana, das crises, desastres e mesmo da topografia da cidade. Contudo, cada vez mais se destaca o empenho institucional dos próprios bispos romanos e seus correligionários em ‘fabricar’ memórias a respeito da cristianização da cidade e, por extensão, do Império: segundo McKitterick (2020, p. 1), foi, portanto, peça-chave na “invenção” do papado.
É a respeito do LP que discorremos no texto. Assim, após a apresentação geral deste documento e de como a historiografia o tem revisitado, analisamos como este registro demarcou e perpetuou a trajetória de um de seus bispos, Leão. Assinalamos que tal interesse se associa ao fato de que seus sermões foram tema de nossas investigações no doutorado e em projetos de investigação junto a órgãos de fomento, constituindo-se, desse modo, como objeto de pesquisa de particular afinidade.
Mas, afinal, do que se trata? Trata-se de uma coletânea de sucessivas biografias dos bispos romanos, a partir de Pedro. A coleção teve sua primeira versão publicada na primeira metade do século VI. Até 891, teve ao menos seis etapas de produção e atualização, e continuou a passar por recensões até o século XV. Por muito tempo, sua autoria foi atribuída a Jerônimo, que o teria redigido por encomenda do bispo Dâmaso (366-384), como consta em texto apócrifo que prefacia o compilado. Hoje, no entanto, avalia-se que os prováveis autores teriam sido funcionários da administração papal, com acesso aos arquivos e às finanças, sob orientação direta ou indireta dos pontífices.
No decorrer da Alta Idade Média, a coletânea alcançou grande circulação, mesmo fora da Itália e antes da conhecida associação entre o Império Carolíngio e o bispado romano; era intitulada, então, Liber episcopalis e acta (ou gesta) pontificium urbis Romae. O nome Liber Pontificalis foi alcunhado por Giovanni Vignolli em meados do século XVIII, mas só veio a ser reconhecido em definitivo pela historiografia por conta dos estudos de Louis Duschene (m. 1922).
Diversos escritos romanos e cristãos influenciaram a redação do LP. Dentre outros, pode-se destacar A Republica ciceroneana e sua percepção de uma cidade construída de forma gradativa, as biografias imperiais de Suetônio e outros autores romanos, bem como seu correlato cristão por Jerônimo (De viris illustribus), as listas cronográficas e os relatos cronísticos e históricos (do próprio Jerônimo), as narrativas de martírios da cidade e o dossiê de cartas e escritos papais De Avellana.
De qualquer modo, nenhuma dessas contribuições foi recebida de forma passiva. De fato, estiveram sujeitas a um projeto intelectual criativo, que resultou em um tipo de escrito inédito, de perfil bastante diferente dos documentos produzidos pela sede romana. Ao contrário de outros “eloquentes” documentos então preservados nos scriptoria locais, como epístolas, tratados e sermões, o LP era lacônico e formulaico, permeado de omissões e silenciamentos preenchidos, de modo parcial, pelo cotejo com os outros escritos. Ademais, inovou ao reformular por completo o gênero biográfico imperial e colocar os bispos romanos, e os não imperadores, como protagonistas da longa história de cristianização da cidade.
Assim, no LP cada bispo romano é apresentado, em geral, na seguinte ordem: nome e origem; carreira prévia à eleição; eleição, incluindo eventuais disputas; carreira papal, incluindo eventuais atritos com outras autoridades (em particular, imperadores) e ações legislativas, edilícias, de patronato e de observância religiosa; morte e sepultamento; duração do bispado.
De fato, o LP não testemunha o primeiro empenho do bispado romano em sistematizar seus escritos em um contexto de crise: este processo já remontava, por exemplo, às coleções produzidas por conta de controvérsias precedentes, como o ‘cisma acaciano’. Contudo, diferente destes, a coletânea possuía uma narrativa específica, e teve uma circulação bem maior.
Publicado por volta de 536, o LP teve sua produção associada ao recrudescimento das campanhas militares bizantinas e godas que então assolavam a península itálica, e que ameaçavam subjugar a relativa autonomia pontifícia aos soberanos “bárbaros” ou, o que parecia ainda pior, de Constantinopla. Assim, seu projeto intelectual e político deve ser visto como uma “resposta papal e romana à crise política envolvendo toda a Itália, com a súbita invasão de um exército hostil desafiando o regime que tinha governado pacificamente a Itália por duas gerações” (MCKITTERICK, 2020, p. 32, tradução nossa).
Com isso, reconhecendo que, em suas origens, o LP esteve diretamente articulado a um reclame do bispado por autoridade e legitimidade em um contexto problemático – e que, ao que parece, teve as outras etapas de produção também articuladas a crises de maior ou menor relevo –, cabe examinarmos como um dos mais conhecidos bispos foi retratado. Passemos, assim, ao caso de Leão.
Quadragésimo sétimo bispo na sucessão petrina, Leão é louvado, de início, como campeão da ortodoxia, por ter descoberto as heresias de Eutiques e de Nestório, isto é, o monofisismo e o nestorianismo. O combate aos hereges se deu sobretudo, pelo apoio do “príncipe católico” (LP.47.2, tradução nossa) Marciano e de sua esposa, a Imperatriz Pulquéria, pela coleta de assinaturas e pelo envio de delegações de centenas de correligionários para a participação no concílio de Calcedônia (451). Este sínodo teria apoiado a declaração de fé redigida pela sé romana, então conhecida como ‘Tomo Flaviano’ (LP.47.2-3). O sucesso de Leão seria confirmado por uma série de epístolas trocadas com Marciano (LP.46.4), com Flaviano de Constantinopla e outros bispos orientais, ocasiões em que era reafirmada a declaração de fé de Calcedônia.
Em seguida, destaca-se um conjunto de medidas edilícias, destinadas à restauração ou construção de basílicas, como as de Constantino, São Pedro, São Paulo e São Cornélio e à restituição de vasos sagrados das igrejas menores (LP.47.6), incluindo-se a construção de um mosteiro anexo à basílica de São Pedro e o estabelecimento de uma guarda para proteção da tumba dos apóstolos (LP.47.7). A seguir, e de modo lacônico, destaca-se sua atuação diplomática perante Átila que, “pelo bem do nome romano” (LP.47.6, tradução nossa), teria levado a embaixada de Leão a libertar toda a Itália do perigo inimigo. Por fim, registra-se uma determinação litúrgica e uma disciplinar (LP.47.8), a soma de clérigos ordenados em seu governo (LP.47.9), o local e data de seu enterro e o tempo de vacância, de uma semana.
Ao nos ampararmos nas pesquisas mais recentes sobre o bispado de Leão e no próprio exame de sua documentação, isto é, nos seus sermões e, sobretudo, sua correspondência, fica nítido o empenho dos autores em construir uma certa imagem de seu governo, a começar realçando seu legado ortodoxo e conciliar. Tal esforço se fez tanto, a princípio, pela menção a Marciano, Pulquéria e Leão, embora o bispo tenha trocado cartas com outros governantes, como Teodósio II. Da mesma maneira, a intensa troca de cartas relacionadas às “heresias” é mencionada de modo bastante abreviado, omitindo o contato direto com o “heresiarca” Eutiques e outros protagonistas, como os arquimandritas de Constantinopla e Dióscoro, bispo de Alexandria.
Não surpreende também que o LP silencie a participação da sede romana no desastroso II concílio de Éfeso (449), repudiado por sua presumida violência excessiva, anos depois, no sínodo de 451 – em que, vale dizer, Leão não esteve presente, por refutar um dos cânones em debate. Constrói-se, assim, a imagem de um campeão da fé a partir do concílio de Calcedônia, deixando de lado a intensa negociação e as súbitas reviravoltas eclesiásticas ocorridas antes do sínodo, e o próprio fato de que seu resultado não foi tão duradouro. Ademais, tendo sido parcialmente recenseados pelo próprio bispo, seus sermões revelam mudanças de posição e hesitação no momento de expressar suas posições acerca da natureza de Cristo.
Outro ponto a destacar é o constrangimento com que os autores lidaram ao tratar dos “bárbaros” hunos e vândalos: se, no caso dos primeiros, ao menos se menciona a embaixada, o infame saque de 455 à cidade é citado tão somente como “desastre vândalo” (LP.47.6, tradução nossa), no bojo da referência à restituição dos vasos sagrados. Nada aqui nos remete a Leão alcunhado “Magno” ao menos desde os bispados de Sérgio (688) e de Nicolas de Roma (865), e caracterizado como defensor da cidade e dos seus muros. Também não há alusão ao amparo dos apóstolos, tal como perpetuado nas imagens medievais e, sobretudo, pelo afresco de Raffaelo Sanzio (1514), ou na escultura homônima de mármore de Alessandro Algardi (1643-1653).
Considerado por McKitterick como um “notável exemplo de autorrepresentação de uma instituição específica na forma de uma narrativa histórica” (2020, p. 1, tradução nossa), o LP é um documento cuja análise é, de fato, desafiadora. Pelo exame específico de um bispado afortunadamente bem documentado por outros meios, é possível realizar uma leitura a contrapelo, que expõe algumas das escolhas e omissões que envolveram a caracterização de um dos seus mais relevantes predecessores na sede romana. Fica o convite à investigação da “invenção” de outros “papas”, obscuros ou notórios.
Bibliografia:
The Book of Pontiffs (Liber Pontificalis): The Ancient Biographies of First Ninety Roman Bishops to AD 715. Ed. Raymond Davis. Liverpool: Liverpool University, 2010.
CLARK, Gillian. The bishop of Rome in late antiquity. Edited by Geoffrey D. Dunn. Journal of Ecclesiastical History, v. 76, n. 2, p. 384-386, 2016.
DEMACOPOULOS, George. The invention of Peter: Apostolic discourse and Papal authority in Late Antiquity. Filadélfia: University of Pennsylvania, 2013.
DUNN, Geoffrey (Ed.). The bishop of Rome in late antiquity. Farnham-Burlington: Ashgate, 2015.
HILLNER, Julia. G. E. Demacopoulos, The Invention of Peter: Apostolic Discourse and Papal Authority in Late Antiquity. The Journal of Roman Studies, v. 106, p. 373-4, 2016.
MCKITTERICK, Rosamond. Rome and the Invention of the Papacy: the Liber Pontificalis. Cambridge: Cambridge University, 2020.
RUST, Leandro. O Cristianismo Primitivo, Constantino e a utopia do público. In: ______. Mitos Papais: Política e Imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 75-110.
SESSA, Kristina. The Formation of Papal Authority in Late Antique Italy: Roman Bishops and the Domestic Sphere. Nova York: Cambridge University, 2012.
Figura 1: O encontro de Leão I e Átila. Disponível em: https://www.wga.hu/frames e.html?/html/a/algardi/3/meeting.html. Acesso 23 ago. 2022.
[1] Doutor (PPGHC-UFRJ). Professor Adjunto de História Medieval da UFRJ (pauloduartexxi@hotmail.com). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5454374839045818
Publicado em 13 de Outubro de 2022.
Como citar: SILVA, Paulo Duarte. O Liber Pontificalis e a “Invenção” do Papado: O Caso de Leão de Roma (Ca. 536). Blog do POIEMA. Pelotas: 13 out. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-liber-pontificalis-e-a-invencao-do-papado-o-caso-de-leao-de-roma-ca-536/. Acessado em: data em que você acessou.