Texto: Humores, Climas e Cores: Reflexões Médico-Fisiognômicas Medievais sobre os Negros Etíopes

Bruno Uchoa Borgongino (LEOM)[1]

 

            Durante a Idade Média, a Etiópia consistia, para os cristãos latinos, num vasto lugar do mundo onde habitariam os mais remotos e mais negros dentre os homens. Sua localização era vaga; suas fronteiras, imprecisas. A distância dessa terra e a negrura de sua gente fazia dos etíopes um tropo de diferença para fins intelectuais, literários e artísticos. Alguns escritores do período produziram saberes a respeito da diversidade fisionômica das sociedades humanas em que estabeleciam, dentre outros aspectos, explicações e significados para a corporeidade etíope. Para compreender a perspectiva medieval sobre a questão, recuemos no tempo.

No século V a.E.C., na ilha de Cós, Hipócrates e seus seguidores compuseram um conjunto de tratados sobre os cuidados necessários à manutenção e restabelecimento da saúde. De acordo com a teoria que propunham, a debilidade física resultaria do desequilíbrio dos humores constituintes do corpo – sangue, fleuma, melancolia e bílis. Para se precaver dos males, caberia adequar o regime de vida às condições físicas específicas do indivíduo e aos fatores ambientais. O texto hipocrático Dos ares, águas e lugares descrevia as relações entre as circunstâncias climáticas e geográficas e a constituição corpórea. Conforme se lê, as propriedades das águas disponíveis, os ventos que soprariam, as variações das estações do ano e a posição em relação ao sol de uma região influenciariam na saúde e na compleição de seus habitantes. Ou seja, a natureza intervinha diretamente no corpo, definindo o biótipo da comunidade.

            As reflexões desenvolvidas no corpus hipocrático serviram de base à literatura médica mediterrânica nos séculos subsequentes. Do paradigma que conjugava ambiente e fisionomia derivaram esquemas de classificação dos grupos humanos em que as condições climáticas do local de procedência explicariam características físicas compartilhadas pelos seus habitantes. Todavia, como os elementos externos às pessoas também incidiriam sobre suas inclinações morais, o biotipo moldado pelo meio seria um indício do caráter intrínseco aos que provinham de uma mesma região. Tal princípio ficaria claro nos tratados fisiognômicos, que propunham a interpretação da esfera interior da pessoa a partir de seus traços físicos. Num documento erroneamente atribuído à Aristóteles, O Livro da Fisiognomia, os muitos escuros, como egípcios e negros, seriam covardes, assim como os muito brancos. A cor que conferiria virilidade seria o meio entre os extremos, isso é, aquela dos homens que não habitariam os extremos do mundo.

            Com o advento do cristianismo, os saberes médicos herdados da Antiguidade prosseguiram válidos para os autores da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, ainda que muitos dos textos em gregos já não circulassem no mundo latino daquele momento. Como demonstrou Owsei Tenkim, a aceitação de Hipócrates ocorreu mediante sua adequação a princípios cristãos (TEMKIN, 1995). Assim, a ideia de vínculo entre ambiente e fisionomia era somada às noções de enegrecimento pelo pecado e de ancestralidade dos etíopes no personagem bíblico Cush, filho de Cam e neto de Noé. A epiderme enegrecida dos descendentes de Cush estaria atrelada à própria malignidade da estirpe. Nos relatos hagiográficos, a pele negra e a procedência etíope evidenciavam um personagem demoníaco a confrontar o santo. Ou seja, às teorias já correntes se somaram a paradigmas cristãos emergentes, conferindo maior negatividade à negritude.

             Isidoro de Sevilha (560 – 636) foi um dos autores engajados nesse esforço de sistematização dos saberes clássicos numa perspectiva cristã. A cor dos etíopes era explicada tanto nas Etimologias, compêndio em vinte livros dos conhecimentos então disponíveis, quanto no Da natureza das coisas, tratado astronômico. Em ambos os documentos, repercutia a tradição ao afirmar que a natureza influenciaria no rosto e suas cores e no tamanho do corpo. No caso dos etíopes, sua proximidade com o sol faria suas peles queimarem, adicionando um eventual comentário de que teriam faces amedrontadoras. O autor reconhecia as consequências morais dos fatores ambientais: os romanos seriam circunspectos, os gregos seriam volúveis, os africanos seriam arteiros, os galos seriam ferozes e engenhosos e os germanos seriam brutos porque o clima os fez assim. Apesar de descritos como bárbaros que habitariam numa região desértica, os dados não foram articulados pelo autor.

            O historiador norte-americano Peter Biller nos informa a respeito dos principais textos que serviram de base à formação médica “ocidental” a partir de meados do século XI. De acordo com o que nos esclarece, em sua maioria consistiam em textos gregos e árabes traduzidos para o latim, como o já mencionado tratado hipocrático Dos ares, águas e lugares, a Política de Aristóteles, os Problemas de Pseudo-Aristóteles, Das Complexões de Galeno de Pérgamo, o compêndio médico Pantegni, o Cânon de Avicena e as Questões de Ibn-Ishaq. O esforço tradutório foi realizado principalmente nas Penínsulas Ibérica e Itálica. Tal material era geralmente lido nos círculos universitários, que emergiram no século XII. Dentre os temas de interesse intelectual em que influenciaram, constam questões concernentes aos negros etíopes (BILLER, 2009).

            Houve algumas controvérsias entre os autores que se envolveram nos debates médicos de então. Um deles se referia à cor do esperma dos etíopes. Alberto Magno (1200-1280), em seu tratado Dos animais, acusa o poeta Ariodotos de ter mentido ao alegar que o sêmen de mouros e etíopes seria escuro, pois o de todos os homens em qualquer lugar seria branco e viscoso. Outros dois pontos de divergência que se destacavam concerniam às mulheres: a complexão que produzia o melhor leite materno e a sexualidade das etíopes. Acerca do leite, uns se posicionavam em favor do proveniente das brancas, enquanto outros, das negras. Quanto à sexualidade, debatia-se qual das cores asseguraria maior capacidade e prazer no intercurso, a branca ou a negra, apesar da tendência fosse de se favorecer as mulheres brancas. Enquanto a discussão sobre o leite teve desenvolvimento decisivo com Miguel Escoto (1175-1235), a sobre a sexualidade foi impulsionada por Alberto Magno (BILLER, 2005).

            O período que convencionamos denominar como Idade Média não consistiu num tempo monolítico e sem transformações. Mesmo considerando um recorte sociocultural mais circunscrito, como os dos autores cristãos latinos envolvidos com os saberes médico-fisiognômicos, não havia homogeneidade. Todavia, havia diretrizes mais amplas, que viabiliza a identificação de convergências no vasto material que chegou até nós. No que diz respeito aos negros etíopes, o determinismo climático e geográfico era o ponto basilar do que se debatia.

Bibliografia:

BILLER, P. Black women in medieval scientific thoughtt. Micrologus, v. 13, p. 472–492, 2005.

BILLER, P. Proto-racial thought in medieval science. In: ELIAV-FELDON, M.; ISAAC, B.; ZIEGLER, J. (org.). The origins of racism in the Werst. Cambridge: Cambridge University, 2009. p. 157–180.

TEMKIN, O. Hippocrates in a world of pagans and christians. Baltimore: John Hopkins University, 1995.

[1] Prof. Dr. adjunto da Universidade Federal de Pernambuco.


Publicado em 25 de Abril de 2022.

 

Como citar: BORGONGINO, Bruno Uchoa. Humores, Climas e Cores: Reflexões Médico-Fisiognômicas Medievais sobre os Negros Etíopes. Blog do POIEMA. Pelotas: 25 abr. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-humores-climas-e-cores-reflexoes-medico-fisiognomicas-medievais-sobre-os-negros-etiopes/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.