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O cenário das pessoas em situação de rua na cidade de Pelotas

Histórias de vulnerabilidade e de iniciativas que transformam realidades para além das ruas

 

Por Andrine Teixeira, Isadora Alcantara e Larissa Rodrigues

 

Pelas ruas do centro de Pelotas, é impossível não notar a presença de pessoas em situação de rua dormindo em calçadas, pedindo ajuda nos semáforos ou procurando restos de comida no lixo. Ainda assim, o que salta aos olhos de quem passa parece não provocar reações duradouras do poder público. Todos os dias, a cidade convive com a vulnerabilidade à céu aberto, mas responde a ela com silêncios, preconceitos e ações pontuais que destacam ainda mais o que já existe. 

 

Enquanto faltam políticas permanentes de acolhimento, sobram discursos que reduzem o problema a questões como “falta de vontade de trabalhar”, “vagabundos” ou “falta de vergonha na cara”, mas o que falta são oportunidades para essas pessoas. Essa visão simplista ignora a complexidade social, econômica e de saúde mental que empurra pessoas para as ruas e as mantém nelas. O resultado é uma população invisibilizada, que sobrevive entre a indiferença e o esforço de projetos voluntários que tentam preencher, sozinhos, o vazio deixado pelas autoridades.

 

O início de tudo

As trajetórias de quem vive nas ruas de Pelotas são tão diversas quanto dolorosas. Segundo os profissionais que atuam diretamente com essa população, como as equipes do Centro Pop (Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua) e da Casa de Passagem, há um conjunto de fatores que se entrelaçam e empurram essas pessoas para fora do convívio social: conflitos familiares, uso abusivo de substâncias, perda de vínculos afetivos, doenças mentais e a desorganização da vida após crises pessoais ou financeiras. 

 

Para os mais jovens, geralmente na faixa dos vinte anos, a ruptura costuma começar dentro de casa. Pequenas brigas com os pais, o uso de drogas, tanto as lícitas quanto ilícitas, ou a simples falta de diálogo acabam se transformando em expulsões. E muitos não encontram outra alternativa, senão viver nas ruas após saírem de casa. 

 

Já entre os homens mais velhos, com mais de trinta e cinco anos, é comum que o ponto de virada seja uma separação conjugal. A perda da parceira, da casa e da estrutura familiar gera um vazio que, somado à falta de apoio emocional, empurra para a vulnerabilidade extrema. Em quase todos os casos, os vínculos familiares se encontram rompidos ou gravemente fragilizados e quando não há mais quem ofereça ajuda, a rua se torna o único espaço a ser ocupado.

 

Mais de 80% das pessoas em situação de rua são homens / Foto: Larissa Rodrigues

 

Entre outros fatores que fazem com que essas pessoas estejam nas ruas estão perda de renda e habitação. A desorganização financeira vem acompanhada do desânimo, e muitas vezes, de transtornos emocionais que impedem que essas pessoas sigam firmes e fortes na busca por se reerguer. Sem endereços fixo e documentos atualizados, se torna inviável retornar ao mercado de trabalho. 

 

O uso abusivo de substâncias é outro ponto central que leva essas pessoas às ruas. A maioria dos usuários se autodeclara dependente, os profissionais que atuam na Casa de Passagem destacam que o álcool, muitas vezes, é mais nocivo que drogas ilícitas. Ele é visto como o início de uma cadeia que leva a outras substâncias e seu uso constante faz com que muitos percam o controle da própria rotina. 

 

E estar nas ruas é mais do que lidar com fome ou frio: é enfrentar diariamente o preconceito enraizado na sociedade. Para muitos, a violência simbólica pesa mais do que a física. A sociedade tende a associar a figura do morador de rua a estigmas danosos. Os “invisíveis visíveis” são vistos apenas quando despertam desconforto, aparecem em manchetes ou interferem na rotina urbana. Suas existências complexas são reduzidas a caricaturas sociais e esse é o primeiro muro que precisa ser derrubado para que exista a verdadeira inclusão e dignidade que esses indivíduos têm por direito.

 

Histórias por trás da exclusão

Almir Bastos frequenta a Casa de Passagem e o Centro Pop há um longo período, desde a sua fundação, em 31 de março de 2012. “É tempo, né? É muito tempo”, afirmou. No antigo modelo, não era permitida a permanência das pessoas na instituição, sendo necessário achar um outro local para dormir após três noites, independente da temperatura e situação. “Aqui é uma maravilha. Para quem está nessa situação de rua, não tem nada melhor. Alimentação, uma boa cama para dormir, banho, até roupas eles nos dão aqui. O tratamento, os funcionários, é tudo 100%”, compartilhou Almir. 

 

Aos 13 anos de idade, Lavínia Pereira, hoje com 27, pegou um ônibus na cidade de Arroio Grande com destino a Pelotas. O objetivo era apenas um: sair de casa. Após se assumir uma mulher travesti, a família não foi capaz de reconhecer Lavínia enquanto mulher, gerando conflitos e o rompimento do vínculo familiar. Ao chegar em Pelotas, a amiga que havia ficado de recebê-la não apareceu, nem no dia seguinte, nem no próximo. Após três dias dormindo na rodoviária, ela começou a caminhar sem rumo, em direção ao centro, foi quando encontrou uma outra travesti que a acolheu. “Foi aí que conheci a rua, conheci a droga. É a minha primeira vez em uma casa de passagem. Eu sempre consegui fazer por mim, só que eu comecei a usar e o pouco que eu tinha a droga começou a me tirar. Eu queria droga, eu não queria correr atrás de nada”, destacou Lavínia. 

 

Ela compartilha o quão difícil foi aceitar a situação e procurar suporte no Centro Pop, “Deus que eu me perdoe, eu não sou morador de rua, então não preciso”, dizia.  A partir de algumas refeições no espaço, passou a frequentar a casa de passagem, e afirma que isso a ajudou a diminuir o consumo de substâncias químicas. “Eu continuo sendo usuária, mas aqui dentro eu consigo manter um foco maior na minha vida, tendo a oportunidade de fazer todas as minhas refeições. Antes, a droga tirava a minha fome”, relatou.

 

O Centro Pop é um dos serviços oferecidos às pessoas em situação de rua na cidade / Foto: Larissa Rodrigues

 

Lia Maria Hepp, natural de Arroio Grande e com 29 anos, é uma mulher trans que carrega uma trajetória marcada por vulnerabilidade desde a infância. Na adolescência, se reconheceu enquanto mulher trans e começou sua transição muito cedo, aos 13 anos. “Eu me assumi com 13 anos, quando entendi quem eu era de verdade”, conta.

 

A falta de acolhimento dentro de casa dificultou esse processo. Lia relata que, aos 16 anos, acabou se afastando da família e entrando em contato com drogas, o que se tornou uma tentativa de lidar com dores profundas: “Eu me enganei nas drogas achando que era um jeito de vencer a vida, de disfarçar a dor”. Ela explica que não percebeu o quanto sua vida estava se desestruturando: “A gente não vê o castelo desmoronando. É como construir um muro, uma hora cai”. 

 

Com o tempo, Lia chegou a situação de rua. Lá, enfrentou riscos constantes, instabilidade e perdas, mas destaca que foi nesse período difícil que também despertou sua força e resistência: “Cair na rua me fez uma guerreira. Hoje eu agradeço a Deus porque eu tô viva”. 

 

O acesso ao Centro Pop e à Casa de Passagem marcou um ponto de virada, no qual ela encontrou acolhimento, orientação e a chance de reconstrução. “Aqui eu posso respirar. Aqui eu encontrei gente que quer ajudar”, diz Lia reconhecendo a importância do serviço na sua caminhada de retomada: “Eu agradeço o trabalho deles. Tem muita gente mobilizada para ajudar. Muita gente boa.”

 

Com os animais, ela construiu uma nova família, encontrando o vínculo afetivo. “Meus cachorros são uma benção, porque eu só tenho eles. Eu gosto de estar na paz, na solidão, e eles me fazem companhia. Não vejo a hora de ir embora pra ficar com eles”, conta. Hoje, ela tenta se manter longe das drogas, projeta um futuro com mais estabilidade e acredita no seu próprio recomeço: “Eu tô viva, então ainda posso florescer”.

 

Saúde mental: um desafio nas sombras

De acordo com o relatório “Depressão e outros transtornos mentais”, publicado pela Organização das Nações Unidas em 2022, o Brasil tem a maior prevalência de pessoas com depressão na América Latina. Os dados apontam que 5,8% da população, cerca de 11,7 milhões de brasileiros, sofrem da doença. A nível continental, o país está apenas atrás dos Estados Unidos, em que 5,9% da população sofre com depressão. 

 

À primeira vista, essa informação parece generalista. Quem são esses brasileiros? A que locais pertencem? São trabalhadores ou estudantes? Diversos questionamentos podem ser feitos acerca desse ponto, mas essa mesma generalização permite compreender que qualquer brasileiro pode ser abrangido neste grupo. Inclusive, pessoas em situação de rua.

 

Após as entrevistas realizadas no Centro Pop, buscávamos uma figura específica: algum psicólogo responsável por realizar atendimentos com os usuários do serviço. Afinal, escutando relatos de 3 indivíduos em situação de rua, precisávamos entender, um pouco, o lado psicopatológico dos entrevistados. No fim da nossa visita à instituição, encontramos Edmundo Moraes Bitencourt, psicólogo na Prefeitura do município. 

 

A conversa ocorreu em uma troca de mensagens que, apesar de breve, foi uma forma esclarecedora de compreender a realidade da saúde mental das pessoas em situação de rua. Como mencionado anteriormente, o abuso de substâncias é uma das principais doenças entre esse grupo. Contudo, é válido apontar que doenças infecto contagiosas, transtornos mentais e deficiências físicas são apresentadas em maior quantidade na população de rua do que na população geral.

 

Todas as condições citadas – especialmente as de natureza psíquica – causam impacto na vida destes indivíduos, estejam eles conscientes disso ou não. “O cotidiano de sofrimento comunitário mascara muito da condição mental nas populações em geral. Como reclamar da situação de rua para outra pessoa que está na mesma condição?”, pondera Edmundo. 

 

Essa normalização da dor foi observada nos relatos coletados: vidas que percorreram caminhos infelizes e histórias narradas como se fizessem parte de uma conversa casual. Indivíduos que, uma vez submetidos às adversidades extremas, precisam lidar com estresse, agressividade e desespero à flor da pele, sem talvez entender a dimensão do que sentem e enfrentam. A observação é reiterada pelo psicólogo “O impacto é óbvio, mas como em uma favela ou campo de concentração, é naturalizado entre eles”, finaliza.

 

Mesmo que a saúde mental não seja colocada entre os problemas de maior relevância para pessoas em situação de rua, quando comparada ao frio e à violência, ela não é completamente esquecida. Os assistentes sociais entrevistados contam que, em momentos de exposição e vulnerabilidade, como rodas de conversas entre o grupo, as pessoas compartilham, timidamente, pensamentos e sentimentos sobre a situação em que estão. Esses indivíduos não devem ser restringidos dos debates sobre saúde menta. Afinal, estão entre as populações que mais necessitam dos serviços terapêuticos oferecidos.

 

Redes de acolhimento do serviço público

Pelotas mantém uma rede permanente de acolhimento voltada à garantia de direitos, acesso a serviços e reconstrução de vínculos sociais. O trabalho é coordenado pela Secretaria de Assistência Social (SAS). O Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua, o Centro Pop, funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, e oferece alimentação, banho, lavanderia, espaço de descanso, escuta qualificada e encaminhamentos para outros serviços. No local, as pessoas têm acesso a atendimento psicológico e social, participam de oficinas de convivência e podem receber auxílio para emissão de documentos, inscrição em programas de renda e cursos de qualificação. O objetivo é fortalecer vínculos e promover a reinserção social e econômica dos usuários.

 

Já a Casa de Passagem funciona à noite, abre às 17h e permite entrada até às 23h, oferecendo acolhimento temporário para até 100 pessoas, um número que pode ser ampliado em períodos de frio. O espaço dispõe de refeições, chuveiros, lavanderia, dormitórios e roupas de cama, contando com educadores e assistentes sociais.

 

Prédio que acolhe o Centro Pop e a Casa de Passagem em Pelotas / Foto: Larissa Rodrigues

 

Além disso, uma equipe atua diariamente nas ruas com buscas ativas e encaminhamentos de pessoas em vulnerabilidade para o Centro Pop e a Casa de Passagem. O serviço identifica demandas urgentes, como situações de risco, doenças, dependência química ou rompimento de vínculos familiares, garantindo atendimento e acolhimento adequado. “Os profissionais oferecem o serviço público de acolhimento; entretanto, pessoas em situação de rua têm livre arbítrio como qualquer ser humano, cabendo a elas decidir se irão ou não acessar o espaço”, afirma a coordenadora do Centro Pop, Taís Mendes. Os serviços são gratuitos e podem ser acessados diretamente na rua Senador Mendonça, 269.

Publicado em 06/11/2025, na categoria Notícias.
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