Preprint: Desinformação sobre o Covid-19 no WhatsApp: a pandemia enquadrada como debate político

(por Felipe Soares e Raquel Recuero)

Principais pontos

  • Analisamos mais de 800 mensagens desinformativas que circularam em grupos públicos do WhatsApp em março e abril de 2020 e descobrimos que a desinformação enquadrou a pandemia como debate político.
  • Particularmente, descobrimos que a desinformação nesses grupos foi utilizada para fortalecer uma narrativa pró-Bolsonaro em meio a crises que o governo enfrentava.
  • A principal estratégia para isso foi o uso de teorias da conspiração,  o tipo de desinformação mais comum nas mensagens que analisamos, o que indica que as características da plataforma (no caso do WhatsApp, o fechamento da mesma, o que torna mais difícil contrapor a desinformação) podem influenciar o conteúdo desta desinformação.

 

Overview

O nosso o artigo “Desinformação sobre o Covid-19 no WhatsApp: a pandemia enquadrada como debate político” está disponível em formato preprint na SciELO. Neste estudo, discutimos como é enquadrada a desinformação sobre o Covid-19 no WhatsApp no Brasil. Para isso, analisamos 802 mensagens que circularam em grupos públicos da plataforma nos meses de março e abril de 2020. Para coletar estas mensagens, utilizamos o Monitor do WhatsApp. As mensagens que analisamos foram compartilhadas quase 35 mil vezes somente nos grupos monitorados pelo Monitor do WhatsApp, o que indica o impacto social que tiveram. Os nossos resultados mostram que (1) a pandemia foi enquadrada como debate político e a desinformação foi utilizada para fortalecer uma narrativa pró-Bolsonaro em momento de crise do governo; e (2) as características do WhatsApp parecem afetar o conteúdo das mensagens, já que houve grande circulação de teorias da conspiração – que são menos frequentes em plataformas mais públicas, como Twitter, Facebook e YouTube.

 

A nossa pesquisa mostra que a desinformação utiliza o discurso político, particularmente declarações de Bolsonaro, para enquadrar o Covid-19 como um tema político. Isto pode ter como consequências o aumento da polarização nos discursos sobre a pandemia e a falta de coordenação social nas medidas de combate ao vírus. Além disso, destacamos a necessidade de considerar as características das plataformas no estudo da desinformação.

 

Método

Os resultados que apresentamos neste artigo são baseados na análise de 802 mensagens que coletamos utilizando o Monitor do WhatsApp. Para a análise destes dados, utilizamos a Análise de Conteúdo como método. Observamos (1) qual o tipo de desinformação presente nas mensagens e (2) quais os temas mencionados nas mensagens. Dividimos os tipos de desinformação em três:

 

(1)   Distorção: conteúdo baseado em informações parcialmente verdadeiras, que são distorcidas para gerar conclusões equivocadas. Inclui conexões falsas, informações fora de contexto, enquadramentos enganosos e informações reconfiguradas de alguma forma para enganar.

(2)   Informação fabricada: informações completamente falsas, criadas para enganar. Incluem, por exemplo, áudios falsos, dados criados sem base em evidências, entre outras estratégias.

(3)   Teorias da conspiração: narrativas sem qualquer evidência comprovada que falam sobre alguma forma de conspiração ou plano obscuramente orquestrado por indivíduos ou grupos com objetivos de manipulação social.

 

As categorias de desinformação eram mutuamente exclusivas, enquanto as categorias de tópicos das mensagens não eram exclusivas (mais de um tema poderia ser identificado em uma mesma mensagem). Foram definidos quinze temas a partir de uma pré-análise dos dados: Bolsonaro, China, congresso, cura, distanciamento social, economia, esquerda, governadores e prefeitos, Henrique Mandetta, hospitais, mídia, ministros (exceto Mandetta), Organização Mundial da Saúde, países do exterior (exceto China), Supremo Tribunal Federal.

 

Resultados

Nossos resultados mostram que a desinformação enquadrou o Covid-19 como debate político. A partir do meio do mês de março, o governo de Bolsonaro enfrentou crises em função da como tratava a pandemia. Brasileiros bateram panelas em suas janelas e pediram o impeachment do presidente. No mesmo período, Henrique Mandetta, então Ministro da Saúde, e governadores apoiavam as medidas de distanciamento social sugeridas pela Organização Mundial da Saúde como forma de controlar o espalhamento do vírus. Enquanto a popularidade de Bolsonaro diminuía, Mandetta e governadores eram mais bem avaliados pelos brasileiros.

 

Como resposta a esta crise, Bolsonaro realizou um pronunciamento na televisão aberta no dia 24 de março. No pronunciamento, Bolsonaro criticou as medidas adotadas por governadores, minimizou a ameaça do Covid-19, culpou a mídia por “histeria” e defendeu a “volta a normalidade” com reabertura de escolas e o fim do isolamento social. Em novo pronunciamento, no dia 31 de março, Bolsonaro defendeu que era necessário garantir a estabilidade da economia e que as pessoas necessitavam voltar a trabalhar para evitar o aumento do desemprego e dificuldades econômicas individuais. Quando observamos a distribuição do compartilhamento das mensagens que analisamos, identificamos o pico de compartilhamentos logo após o pronunciamento do dia 24. Além disso, também o pronunciamento do dia 31 coincide com novo aumento no compartilhamento de desinformação sobre o Covid-19 nos grupos monitorados.

 

 

Figura 1. Distribuição do compartilhamento de mensagens ao longo do tempo

 

Também observamos o impacto dos pronunciamentos de Bolsonaro nas temáticas mais centrais nas mensagens. Dentre os tópicos mais mencionados, por exemplo, temos economia (42%), governadores e prefeitos (36%), distanciamento social (27%) e mídia (21%), todos mencionados por Bolsonaro em seu pronunciamento. Também analisamos as correlações entre os temas, isto é, quais os tópicos eram mais frequentemente mencionados nos mesmos contextos. Identificamos que o tema mais central foi “esquerdistas”, que era a forma de categorizar os opositores de Bolsonaro nas mensagens com desinformação. Além disso, “Bolsonaro” também aparece como tema central, associado a autoridades políticas e medidas como distanciamento social (as quais o político criticava). Estes resultados mostram como a desinformação enquadra a pandemia como debate político e utiliza uma estratégia de opor “nós” (o lado “bom”, que apoia a atuação de Bolsonaro) a “eles” (o lado “mau”, que busca conspirar contra o presidente e contra o país), reforçando um contexto de polarização.

 

Figura 2. Frequência dos tópicos nas mensagens

Figura 3. Rede de correlações entre os temas

 

Por fim, descobrimos que as teorias da conspiração foram o tipo de desinformação mais comum nas mensagens que analisamos (41%). Outros estudos que classificaram os tipos de desinformação sobre o Covid-19 em outras plataformas identificaram a distorção como o tipo de desinformação mais comum. O nosso resultado aponta para a importância de considerar as características das plataformas na análise da desinformação. Entendemos que as teorias da conspiração são mais comuns no WhatsApp em função do caráter mais privado das conversações na plataforma. Vimos, ainda, que as teorias da conspiração foram utilizadas principalmente para culpar a China (comunista) pela criação do vírus e para criar narrativas de conspirações contra Bolsonaro – novamente, reforçando o enquadramento político da desinformação sobre o Covid-19.

Figura 4. Exemplo de teoria da conspiração

Figura 5. Exemplo de teoria da conspiração

 

As mensagens com distorção (39%) frequentemente eram utilizadas para criticar as medidas de distanciamento social, ecoando as manifestações de Bolsonaro contrárias a medidas adotadas por governadores e prefeitos. Já as mensagens com informações fabricadas (20%) foram utilizadas para apontar curas para a doença e mencionavam, por exemplo, o uso da hidroxicloroquina. Estudos científicos já comprovaram que o medicamento é ineficaz no tratamento da doença, mas Bolsonaro inúmeras vezes mencionou a hidroxicloroquina como “cura” para o vírus.

Figura 6. Exemplo de distorção

Figura 7. Exemplo de informação fabricada

 

Relevância

O combate ao Covid-19 depende da ação coordenada entre os cidadãos. O espalhamento de desinformação e o acirramento da polarização nos discursos sobre a pandemia são problemáticos porque geram percepções equivocadas sobre a pandemia e dificultam a ação coletiva de combate ao vírus. Assim, o nosso estudo contribui no entendimento de como foi enquadrada a desinformação sobre o Covid-19 no WhatsApp.

Os nossos resultados reforçam resultados anteriores, onde mostramos que a pandemia foi tratada como debate político, porém desta vez, mostramos o mesmo nas mensagens desinformativas no WhatsApp. Particularmente, vimos que este enquadramento foi utilizado para favorecer uma narrativa pró-Bolsonaro e combater crises políticas sofridas pelo governo. Além do reflexo do discurso de Bolsonaro nos tópicos mais mencionados nas mensagens com desinformação no WhatsApp, também identificamos que o pico no compartilhamento de mensagens desinformativas se dá logo após o pronunciamento de Bolsonaro na televisão aberta.

 

Autores e financiamento

Os autores deste artigo são Felipe Soares (UFRGS), Raquel Recuero (UFPEL/UFRGS), Taiane Volcan (UFPEL), Giane Fagundes (UFPEL) e Giéle Sodré (UFPEL). O estudo contou com o apoio do CNPq e da FAPERGS.

Agradecimentos:

Agradecimentos especiais ao Fabricio Benevenuto e à equipe do Monitor de WhatsApp que muito gentilmente permitiram o acesso aos dados. Agradecimentos também à CAPES, CNPq e FAPERGS que de alguma forma apoiaram essa pesquisa.