Andrea Madruga – linhas e linhagens nos caminhos da lã

A artesã Andrea Madruga Garcia tem um olhar seguro. Acostumado a prestar atenção, a acompanhar linhas, a seguir o cruzamento de fios, a compor paletas de cores, em tramas de lã que resultam em ponchos, palas, mantas, coletes, entre muitas outras peças. Por meio da marca Fio Farroupilha, com ateliê no interior da cidade de Piratini, no sul do Rio Grande do Sul, movimenta uma malha composta por pecuaristas familiares, com destacado protagonismo feminino, com linhagens que disseminam saberes pelos caminhos da lã, pelos caminhos do pampa.

O ateliê fica na propriedade de dona Zeni Crizel, mãe de Andrea, que também é pecuarista e toca o dia a dia da propriedade sem a ajuda de peões, auxiliada somente por cachorros. Em alguns fins de semana, Andrea conta com a filha, Silvia, que estuda na Universidade Federal de Pelotas, a quem ensinou o artesanato em lã. O galpão antigo, com pé direito alto e vigas de madeira no teto, foi adaptado para o trabalho de criação das peças e coleções. Fica ligado à casa principal, onde a mãe da artesã reside, por uma pequena trilha. Tem sala de estar, cozinha, área para lavagem e tingimento da lã e um amplo salão iluminado, por onde dois filhotes de cachorro passeiam entre araras com trabalhos prontos, teares, mesas e lã. Muita lã, natural ou transformada em fio, guardadas em sacos plásticos, penduradas para secar, organizadas sobre as mesas.

Pelas paredes, estão dispostos teares “de prego”, pois a artesã prefere estes aos “de pente”. Têm de variados tamanhos. Triangulares, quadrados, circulares. As peças podem reunir técnicas de tear, de crochê e de feltragem, pois, para Andrea, é a “lã que vai te dizendo. Ela que determina, não sou eu”. Passam por suas mãos fios em variados tons de branco, marrom, preto, ocre, alaranjado, bege, verde. Aos poucos, vão sendo acomodados, atravessados em formatos geométricos que colorem a sala. As janelas do ambiente olham do alto duma coxilha para o pampa até longe, de onde vem algumas das ervas que são fervidas para o tingimento natural dos fios.

Os caminhos de Andrea ao longo da infância, como de muitas famílias da região, cruzam por diversas cidades, acompanhando o pai, quando ele arrendou a propriedade no interior de Piratini, por um período, para trabalhar na construção civil, em Rio Grande, ou concluindo o ensino médio, em Pelotas. Quando casou, em 1994, (re)começou a criar ovelhas com o marido, no 5º Distrito de Piratini. Na propriedade, têm, além de ovinos, gado de corte, gado leiteiro, galinhas e seis cachorros ovelheiros. Em 1997, o caminho de Andrea, que frequentava eventos regionais, como a Feovelha, de Pinheiro Machado, convergiu com o da Emater, que, naquele momento, oferecia oficinas voltadas para grupos de mulheres.

A partir das reuniões do grupo, formaram a Associação Comunitária Ponte do Império, que foi premiada já em sua primeira participação em feiras. Posteriormente, Andrea ficou com a marca Fio Farroupilha e deu continuidade na formação, com cursos oferecidos pelo Centro de Formação de Agricultores (CETAC), de Canguçu. Ainda hoje, tenta fazer de um a dois cursos por ano. Desse modo, buscou compreender diferentes saberes, que reportam-se à criação das ovelhas no campo, à raça das ovelhas, às distintas técnicas de tosquia do animal, à separação e lavagem da lã e, ocasionalmente, tingimento dos velos, ao cardar a lã, ao fazer o fio na roca ou no fuso para, então, tecer peças, que deve ser comercializada no circuito das feiras.

Para a artesã, quem resolve trabalhar com lã, tem que amar o que faz, pois é um saber que envolve o corpo, faz os braços cansarem, exige força, esforço visual, deixa cheiro nas mãos. Sua rotina de trabalho pode começar às 7h da manhã e ir até à noite, em execuções que levam de um dia a uma semana, ou mais, para serem concluídas. Além de exigir o domínio de técnicas detalhistas e delicadas, desde a retirada da lã do corpo da ovelha até o tecer dos fios em ponchos, palas, cobertas, boinas, casacos, xergões, que constituem vestimentas e apetrechos da lida campeira. Além disso, Andrea gosta ainda de pesquisar referências visuais, como as tecelagens feitas por povos nativos mapuche, habitantes tradicionais do pampa, patagônia e cordilheiras, que inspiram motivos, combinações de cores, novos padrões geométricos.

Na propriedade onde mora com o marido, próxima à propriedade da mãe, buscam manter a “esquila a martelo”. A técnica, consiste na tosquia do animal com o uso de uma tesoura especial, própria para a finalidade. Atualmente, a técnica tem dividido espaço com a introdução da tosquia feita à máquina, chamadas, às vezes, de “esquila uruguaia”, ou, ainda, “técnica uruguaia”, vista por alguns interlocutores e interlocutoras como uma forma mais rápida e econômica, pois o animal é tosquiado em poucos minutos e requer apenas uma pessoa, que opera a máquina.

Andrea, porém, defende a tosquia com tesoura, que, para a artesã, além de oferecer bem-estar animal, é, também, um momento de reunião, de encontro com vizinhos, de contar causos, de tomar café com pastel no galpão, que “tem que ter”. Mantém contato e sabe localizar, facilmente, nas proximidades, as comparsas, grupos que em tempo de tosquia transitam entre propriedades, onde realizam a atividade em sistema de equipe, com funções específicas, como o agarrador (que agarra as ovelhas, uma por uma), o maneador (que amarra três pernas do animal) e o esquilador, o “tesoura” (que executa a tosquia).

Por meio do artesanato em lã, Andrea evidencia relações, que demonstram as dinâmicas pelos caminhos da região. Uma malha composta, especialmente, por outras artesãs, uma vez que o artesanato é constituído por meio de trocas, compartilhado em momentos de encontros, em feiras, como Feovelha, Fenadoce, Expointer, Expo Alto Camaquã. Detém-se, assim, apenas parcialidades do conhecimento artesanal, nunca sua totalidade. Em alguns casos, as peças podem conter detalhes com lãs, fios e feltragem tecidos pelas mãos habilidosas de mulheres de comunidades próximas. É o caso da artesã dona Isaurina de Oliveira Garcia, do distrito de Barrocão, interior de Piratini, que, algumas vezes, fornece fios de cores diferenciadas, em matizes de bege, de “prata”, feitos manualmente, em um fuso de madeira.

O saber artesanal, contudo, não exclui os conhecimentos e as atualizações vindos do campo científico, longe disso. Andrea acompanha e mantém pelo ateliê vários catálogos e revistas especializados em criação de ovinos, com notícias sobre o setor, relatos sobre feiras e exposições, tendências da economia para a área, entrevistas com pesquisadores e produtores sobre inovações no campo da ovinocultura. Conta, ainda, com a assistência técnica dos extensionistas da Emater, que, em alguns casos, auxiliam na mediação com outros produtores da região, por meio da circulação que fazem entre diferentes propriedades, com atenção para a pecuária familiar.

Entre as inovações, que tem valorizado a produção artesanal, está a micronagem. Com o uso de um aparelho portátil, denominado de OFDA, verifica-se a medida da espessura do fio da lã, a micra. A qualidade e o destino do fio vão depender do diâmetro da fibra da lã, uma vez que quanto mais leve mais procurado, em função do acabamento das peças e do conforto proporcionado no corpo. A micronagem é realizada pela Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (ARCO) e resulta em um brinco, com os quais as ovelhas são identificadas. A rastreabilidade permite que sejam criadas “matrizes” de animais com a melhor micra e auxilia no acompanhamento da qualidade da lã. Para a artesã, porém, “não existe lã ruim, cada uma vai se prestar para um serviço”.

No artesanato, Andrea percebe saberes, que carregam forte carga ancestral, conhecimentos passados em gerações, grande parte, por mulheres. Da mesma forma, as atribuições femininas podem dificultar a realização de atividades artesanais, que requerem tempo, educação da atenção, repetição, busca de referências, já que cabe, também, às mulheres o cuidado cotidiano das propriedades, de manejo dos animais e pode ser doloroso “romper com a bicharada”. Mas, com o Fio Farroupilha, Andrea sente que está “pisando em solo firme”. Aprendendo, ensinando e deixando linhagens pelos caminhos do pampa, pelos caminhos da lã.

Texto: Andrea Madruga Garcia e Vagner Barreto
Colaboração: Daniel Vaz Lima, Miriel Bilhalva
Coordenação: Flávia Rieth