O Sr. Camilo é peão campeiro e artista plástico. Atualmente, ele reside na Balsa, uma área localizada nas bordas do Canal São Gonçalo, em Pelotas/RS. Sua família morava na “Avenida Cidade de Rio Grande”, por onde passavam as tropas em direção ao frigorífico Anglo. O pai trabalhava numa fábrica de tecidos e “também era metido a gaúcho, sempre lidando com bichos, com cavalos”. A mãe, por sua vez, costurava e tinha uma “leitaria” – empreendimento de produção leiteira. Os dois compraram a casa quando Camilo tinha cinco anos, pois onde moravam a cidade já se constituía e “estava tudo apertado”, o que dificultava a manutenção do gado leiteiro. “Eles se mudaram para lá porque tinha mais campo, mais espaço. Largavam as vacas lá para baixo e só ia buscar à tardinha.” Naquela época, a região do Navegantes, da Balsa e do Passo dos Negros era “tudo campo”. “Tinha uma casinha que outra.”
Depois foi a vida marcada pelo trabalho de peão campeiro na pecuária extensiva. Uma vida entre a lida nos campos da região, campos “lisos” e “dobrados”, “baixos” e “altos”, marcados por banhados e aguadas, e a oficina, talhando com diversas ferramentas essas experiências na madeira. Atualmente, Camilo mantém com outros peões uma hospedaria para equinos, nos arredores de Pelotas, e a residência nas imediações da região da Balsa, onde fica sua oficina/atelier/galpão. Conforme conta, as observações que faz na lida com bois e cavalos servem de estudo para as esculturas, posicionando-o como um observador engajado no mundo ao seu redor. “As pessoas ficam muito curiosas e me perguntam: ‘como tu sabe os movimentos?’ Eu respondo: ‘a minha faculdade foi o campo’.” Da mesma forma, o peão-escultor localiza na cidade as transformações e as camadas no espaço e no tempo.
Em suas rememorações, Camilo indica os vestígios nos quais os traçados fundacionais de Pelotas se sobrepõem. Nas imagens que constrói, ele aproxima o passado e o presente – ou o passado no presente – da cidade. “A gente era guri e as tropas passavam. Era bastante gado! Aquilo custava a passar. A gente ficava olhando. Aquilo me encantava. Veja a tendência já da coisa. Eu gostava muito de fazer bonecos de barro. Então, quando vinham as tropas, eu ficava faceiro, pois os bois socavam o barro na beira do canal – tinha um canal desde aqui de cima da Tiradentes, que escoava água em direção ao São Gonçalo. Na beirada juntava muita argila cinza e a boiada, quando passava, sovava, e eu, igual a ‘forneira’ [Furnarius rufus], saia correndo e juntando para fazer meus bonecos.”
A casa-oficina de Camilo está localizada a poucas quadras do antigo frigorífico Anglo, onde, atualmente, fica o campus da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Camilo trabalhou nas caldeiras do Anglo. “É o que mete pressão, que faz a fábrica toda girar, é as caldeiras.” O terreno em frente à sua casa era o depósito da lenha: “Isso eram pilhas e pilhas de lenha. Os caminhões vinham de fora e descarregavam aí. Porque era assim: aqui eram as mangueiras, atrás das mangueiras era espaço, era o estoque de lenha. Isso aí era uma quantidade de lenha. Então, eles tinham um caminhãozinho que só carregavam daqui para lá, para dentro.” O local também pertence ao patrimônio da UFPel: é hoje um terreno baldio, tomado por mato, usado no descarte de entulho da construção civil.
Quando o Anglo fechou, durante os anos 1990, Camilo foi trabalhar em remates de gado e nas estâncias, como a “dos Assumpção”. “Eles eram donos de quase tudo lá, desde a ponte do Laranjal para lá. A sede da Estância estava localizada na Galatéia, mas tinham campo na região do Centro Português até a Barra, aí era área de banhado”. Conforme conta, nestes campos existem lugares de difícil acesso, onde o gado consegue acessar, mas o peão não: “Ali tem três ilhotas que a gente não vê. Só indo ali para ver. O gado vai entrando e vai abrindo caminho. O gado passa tranquilo. Enterrava um tanto assim aquele barro. E os cavalos tinham dificuldade de entrar lá, porque o boi tem o casco rachado”.
Camilo cita os “sumidouros” como um lugar de risco para o cavalo e o campeiro em campos banhados. “Naquela estrada que desce para o Valverde – hoje tem umas casas ali – aquela faixinha nova, naquele arame ali, dali, daquele arame para cá era nós, nós que cuidava. E ali, bem ali, uns 200 metros do arame, tem um sumidor. Se entrasse ali era só a cabeça do cavalo de fora”. Um dos campos da lida ficava onde hoje é o Centro Português, uma área de banhado com mato e muita figueira. Neste campo, segundo ele, “tem três figueirão, parece que elas se juntaram e fecharam”. Neste lugar fez uma mangueira, “chegava de tardezinha, eles [o gado] vinham para baixo das figueiras, prá volta, pro sequinho e dormiam”. As figueiras ficavam próximo à casa do posteiro e este manejo dos animais era para a segurança contra o abigeato.
Outra dificuldade que torna a lida brabíssima é a recorrência de enchentes: “No canal não precisa de chuvarada, é só virar o vento e a água da lagoa represa”. Conforme Camilo, “o campo do outro lado – a estância dos Oliveira – vira o vento e empurra a água da Lagoa, do Oceano, e empurra a água para cá. E já dá enchente.” Nestas situações o campeiro deve tirar o gado nadando. Caso não tenha “campo alto”, com morros e coxilhas para deixar o rebanho, pode perder algum animal. Na época de cheia é possível ver alguma cobra cruzeiro, “bem criada, bem velha”, em cima de um iguapé, no São Gonçalo. Esta é uma região em que o gado convive com cruzeiras, ratões-do-banhado, capivaras, preás e pássaros em migração.
O Arroio Pelotas figura enquanto um corredor de pássaros, nesse sentido, observa-se a importância da mata ciliar em suas bordas. Quando os campos estão alagados é fator de risco para humanos e animais, o manejo dos campos pode prever a construção de diques para garantir lugares secos para o gado. Quando os campos da região não estão alagados, se revelam como campos planos e baixos, bons para camperiar. Conforme Camilo: “campo baixo é sempre melhor. Campo baixo é mais criador, a pastagem nativa é bem melhor, mais engordadeira. Campo alto geralmente é ruim de pasto, dá mais sujeira na terra do que grama, pasto ruim.”
Na percepção de Camilo sobre a região, os capões de matos estão situados mais na costa da laguna. Na estância da Galatéia, onde trabalhou, era “mais campo”. A ocorrência dos “capões” serve de abrigo no frio, no inverno, ou no calor, no verão, pois os animais procuram abrigo ou para se refrescar: “Têm lugares, são capões de mato, pequenos. Não é difícil, desce do cavalo, entra ali e toca”. Uma paisagem que se revela como um mosaico de campo, de mato e de cidade, um ecótono entre o Pampa e a Mata Atlântica, uma borda ocupada por humanos/animais e plantas em coexistência e em transformação.
Texto: Sr. Camilo Pereira e Flávia Rieth
Colaboração: Daniel Vaz Lima e Vagner Barreto.
Coordenação: Flávia Rieth