UE e Mercosul, matrimônio às escuras

Enquanto o governo Bolsonaro comemora a aproximação entre Mercosul e União Europeia como algo histórico, especialistas alertam para o progressivo engessamento da indústria nacional e aprofundamento da situação atual do país como mero fornecedor de commodities

“O Brasil está fazendo um casamento sem conhecer realmente a noiva”, afirmou Charles Pennaforte, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas e Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq e Geopolítica do Mercosul, em relação ao pré-acordo divulgado pelo governo entre Mercosul e União Europeia durante o G20, em Tóquio, no fim de junho.

Ainda na capital do Japão, em coletiva à imprensa, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou que desde 1999 o Brasil namorava a hipótese, “mas faltou vontade política para firmar o acordo por partes dos atores do Mercosul e Brasil”. O chanceler acrescentou que a ação vai no sentido da abertura econômica.

“Além do setor agrícola, há abertura interessantíssima para o lado europeu em todo o setor industrial e também para a competitividade da nossa indústria no setor de serviços, onde a abertura gera a vinda de prestadores de serviços europeus com aumento de competitividade em toda cadeia”, ventilou Araújo ao definir o acordo como estratégico, corajoso, positivo e responsável por criar mercados em todos os setores da economia.

Hoje a UE é o segundo maior parceiro do bloco latino enquanto o Mercosul é o oitavo parceiro extrarregional dos europeus. Só o PIB de ambos é de cerca de U$ 20 trilhões, ou 25% da economia mundial. A corrente de comércio birregional foi de mais de U$ 90 bilhões em 2018.

No entanto, para Pennaforte, o que aconteceu ao longo de 20 anos não foi a falta de vontade dos governos, mas sim a relação desigual das economias. Sendo o Brasil um exportado básico de commodities enquanto a UE possui produtos de valor agregado e tecnologia mais avançada. O professor relembrou que o então embaixador Samuel Pedro Guimarães, representante do Mercosul, fez um relatório em 2012 no qual defendia que o acordo seria o calapso do bloco latino.

“Não se sabe quase nada ainda da proposta feita às portas fechadas. Temos que ver as bases reais do acordo. Enquanto isso, parece muito mais pirotecnia e slogan de campanha do que algo concreto”, disse Pennaforte ao frisar que antes de entrar em vigor, o que pode levar de cinco a dez anos, o projeto precisa passar pelo parlamento da UE e dos 27 países que a compõem, além dos quatro do Mercosul. Isso acarretaria uma sucessão de lobbies de cada indústria e segmento envolvido.

Falta de maturidade

Segundo Mauro Rochlin, economista da FGV do Rio de Janeiro, cerca de 40% daquilo que o Brasil exporta é composto por produtos industriais e grande parte tem como destino o Mercosul, especialmente autopeças e automóveis. Já as commodities representam mais de 50% das exportações.

Um dos pontos do pré-acordo inclui redução impostos para carros europeus de 35% para cerca de 15% ao longos dos anos. “As alíquotas serão definitivamente mais competitivas e atraentes para a entrada de carros mais modernos, o que pode fragilizar ainda mais o mercado interno”, analisou Rochlin.

Conforme Sandro Maskio, coordenador de estudos do Observatório Econômico da Universidade Metodista e professor de economia, a maior exposição de fluxo comercial entre blocos requer grau de maturidade do setor industrial que o Brasil não tem, em especial o setor automotivo.

“Já passamos por uma experiência associada à abertura econômica nos anos 1990 com o argumento de que traria nova realidade de aprimoramento local. O que vimos foram estratégias adaptativas adotadas pela indústria para sobreviver ao se tornarem grandes importadoras de insumo”, pontuou.

Maskio alerta que países que se industrializaram recentemente com sucesso, China, Japão, Coreia do Sul, não atingiram a maturidade dos respectivos parques industriais ao exporem o processo de produção a uma competição acirrada com importados mais desenvolvidos. Foram necessárias medidas tributárias, legislativas e produtivas para proteger a indústria interna e o Brasil estaria ma contramão de tais exemplos.

Se à princípio Bolsonaro se mostrava refratário ao Mercosul, o jogo virou por influência do ministro da Economia Paulo Guedes, segundo Maskio, por uma questão ideológica de fé total na força da mão livre do mercado como solucionadora de problemas.

Contudo, uma coisa é lançar de forma ampla um acordo que prega menos entraves e burocracia comercial e outros quinhentos são os mecanismos para tirá-lo do papel. “A proposta possui linhas gerais e não exatamente uma estratégia delineada, mas o martelo sobre como e quando isso será operacionalizado não foi batido de fato.”

https://www.destakjornal.com.br/mundo/detalhe/ue-e-mercosula-matrimonio-as-escuras

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