A crise da democracia no Mercosul: legalidade, confabulações e mentiras

Hoje sopram ventos de violação da democracia, instabilidade e pressões internas e externas para um realinhamento para a direita no bloco

O Mercosul caminha cambaleante para o final deste mês, quando a Venezuela deveria receber do Uruguai a presidência pro tempore do organismo de integração regional, tal como estabelecem os estatutos, tratados e regulamentos, em que pese a campanha de Paraguai e Brasil para impedi-lo a todo custo, as confabulações em curso e as mentiras.

Vários fatos concatenaram-se nos últimos dias:

1) Após uma fracassada e polêmica reunião de chanceleres entre Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai em Montevidéu, em 11 de julho, o Uruguai, a cargo da presidência pro tempore, anunciou uma reunião de chanceleres do grupo para 30 de julho, sábado, em Montevidéu. Supõe-se que na reunião seria entregue a presidência pro tempore à Venezuela.

2) Em um documento transmitido desde Brasília no dia 19 de julho, o chanceler José Serra informou à presidência pro tempore que o Brasil não atenderia esta reunião, insistindo em sua posição para ampliação dos prazos até agosto (sem entregar a presidência para a Venezuela, claro).

3) O chanceler uruguaio Rodolfo Nin Novoa “esqueceu” de informar esta negativa brasileira aos senadores de seu país, que o interpelaram, e disse que a passagem da presidência do Mercosul para a Venezuela é negociada de “maneira discreta”, em relação à presença dos representantes do bloco na reunião convocada para o dia 30 de julho em Montevidéu. O Uruguai mantém sua posição de entregar a presidência pro tempore à Venezuela, a Argentina está em uma posição colaborativa com a continuidade jurídica, “e com o Brasil e o Paraguai estamos conversando”, disse o ministro após sua reunião com a comissão de Assuntos Internacionais do Senado.

4) A nova embaixadora estadunidense no Uruguai, Kelly Keiderling, entrou na disputa com declarações fora de ordem sobre a situação venezuelana.

Sem dúvidas, são outras épocas, bastante diferentes em relação as de um ano atrás, por exemplo. Esta realidade do Mercosul se desenvolve em meio a um clima áspero, com tentativas destabilizadoras de alcance continental, com uma forte guinada de restauração conservadora na Argentina, com um golpe de Estado em marcha no Brasil, decisões judiciais desestabilizadoras no Paraguai, e pressões diversas, internas e externas, para um realinhamento direitista regional com as chancelarias paraguaia e brasileira (apesar do seu interinato) como Cavalo de Troia.

Duas mentiras por trás de uma verdade
A reunião dos chanceleres de Uruguai, Argentina, Brasil e Paraguai foi apresentada pela imprensa como uma “reunião de cúpula dos parceiros fundadores do Mercosul”. Certamente, o chanceler uruguaio Nin Novoa satisfez a solicitação de seu colega paraguaio, quem solicitou esta reunião para conversar sobre a situação da Venezuela, no marco do protocolo de Ushuaia. Foi uma reunião na qual se excluiu a Venezuela como Estado Parte, para avaliar a proposta paraguaia de aplicar a chamada cláusula democrática. A Venezuela não foi oficialmente convidada.

Desde o ponto de vista do marco legal do Mercosul (Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto), esta reunião ocorreu à margem da lei. No arcabouço legal e normativo do Mercosul, não existe nada que se pareça a uma reunião de parceiros fundadores ou originários, convergem os especialistas.

 

José Serra e Fernando Henrique Cardoso se reuniram no começo de julho com o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, e o chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, em Montevidéu, para falar sobre a troca da presidência do Mercosul. Foto: José Serra/Facebook.

José Serra e Fernando Henrique Cardoso se reuniram no começo de julho com o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, e o chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, em Montevidéu, para falar sobre a troca da presidência do Mercosul. Foto: José Serra/Facebook.

 

A chanceler venezuelana Delcy Rodríguez observou a reunião sem convite (havia explicado na noite anterior a dirigentes políticos uruguaios) e estragou a conspiração. Também se apresentaram o embaixador da Bolívia, assinalando que o fez por instruções de seu chanceler e porque a norma obriga que seja convocado. O embaixador boliviano não foi incorporado à reunião, e declarou para a imprensa que a chancelaria uruguaia havia elucidado que aquela não era uma reunião do Mercosul.

A reunião “dos quatro” do dia 11 de julho representou um feito muito grave para o Mercosul desde o ponto de vista institucional. a) Levou-se a cabo um ato de discriminação, excluindo um de seus sócios; b) sem abrir um processo formal condena-o midiaticamente com a cláusula democrática, quando nem o Protocolo de Ushuaia, nem o Tratado de Assunção sobre direitos humanos (2005) a justificava; c) convocaram, fizeram publicidade midiática e levaram a cabo uma reunião à margem da legalidade do Mercosul.

A responsabilidade pela falta de tato político recai em Nin Novoa e é o que dá razão para a acusação da chanceler venezuelana de que a burocracia do Mercosul está sendo infectada por um “almagrismo”, em alusão ao secretário geral da OEA, Luis Almagro, quem tentou aplicar de forma ilegal a Carta Democrática a Venezuela. O que revela uma estratégia continental, na qual tudo indica que a agenda está sendo estabelecida desde os Estados Unidos.

E chegou a segunda mentira. Na entrevista coletiva posterior à reunião do “clube dos quatro” do dia 11, Nin Novoa assinalou o dia 14 como possível data para decidir o dia da Cúpula de Chanceleres. Isso significa que de imediato não estava contemplado o esquema de Nin, uma cúpula de presidentes, que costuma ser realizada semestralmente.

Tratando de consertar o grave erro legal, diplomático e político de Nin Novoa, o governo uruguaio circulou no dia 14 uma nota na qual convoca o Conselho do Mercado Comum (onde reúnem-se os chanceleres), para o dia 30 de julho. Normativamente o CMC é a maior instância político-administrativa do Mercosul. Com este ato, não apenas retomava a legalidade mas era também uma reiteração da vontade política declarada pelo presidente uruguaio Tabaré Vázquez, de realizar a passagem da presidência pro tempore, tal como estabelecido. O detalhe é que a nota não diz explicitamente que a presidência pro tempore será passada para a Venezuela.

A partir daí, originou-se uma série de declarações e comunicados de imprensa nos quais o presidente e o chanceler (ambos interinos) do Brasil arremetem contra a Venezuela. Utilizam o mesmo esquema com o qual a direita vem dando golpes de Estado, “preparando” a opinião pública através da imposição da mentira política. José Serra chega ao extremo de afirmar que a Venezuela não deveria ter entrado no Mercosul, enquanto a imprensa privada intensifica sua campanha diária de mentiras contra o país caribenho.

Em 19 de julho, o Itamaraty emitiu uma nota assinada por Serra na qual rechaçou a convocatória para o CMC, enviada pela presidência pro tempore para a quarta (30). Os argumentos alegados são totalmente vazios: simplesmente se negam a passar a presidência a Venezuela e desejam postegar o “julgamento sumário” para agosto.

No entanto, Nin Novoa, durante a interpelação realizada pelo Senado uruguaio não informa ao seu poder legislativo a existência desta comunicação, conhecida por todas as chancelarias dos Estados Partes, e apenas diz aos senadores que todos os esforços estão sendo feitos para celebrar a Cúpula do dia 30 de julho.

A não ser que o Uruguai queira desconsiderar a autoridade de Serra (o que é totalmente possível dada a situação do Brasil), arriscar-se a ocultar a resposta negativa brasileira pode ser outro erro originado da miopia política do chanceler. Ou que possui uma carta na manga, neste jogo de cartas marcadas.

Além do que desejaria fazer, o chanceler está consciente de que o partido do governo, o Frente Amplio, opõe-se que se atente contra a continuidade do Mercosul, assim como o fazem os principais movimentos sociais do país, entre eles a poderosa central unitária dos trabalhadores PIT-CNT.

A cláusula democrática
O chanceler uruguaio Nin Novoa declarou nesta semana ao Senado de seu país que para aplicar o protocolo de Ushuaia “deve haver uma ruptura institucional”, e adicionou que o Uruguai “não considera” que exista este cenário na Venezuela.

Horácio Cartes, o presidente paraguaio, recém chegado de Israel, falou sobre os campesinos de Curuguaty. “Não estava no governo que caiu, não estava no que assumiu após o golpe”. Ou seja, admitiu que foi um golpe parlamentar que destituiu o poder do presidente Fernando Lugo, líder do Frente Guasú.

Sua afirmação foi muito mal recebida pelo partido governista, o Colorado, factótum do golpe de 2012, e destruiu a estratégia do chanceler Eladio Laoyza, baseada em solicitar a aplicação da carta democrática contra a Venezuela, ainda que não tenha havido nenhuma interrupção democrática.

As desculpas chegaram tarde. “Em minhas declarações cometi um erro ao utilizar uma palavra que tem um sentido político totalmente diferente das minhas convicções”, declarou em comunicado.

EUA também pressiona
A representação diplomática estadunidense no Uruguai estava acéfala há um tempo, logo depois que a jovial Julissa Reynoso terminara sua missão, na época de Pepe Mujica. As delegações diplomáticas nunca são inocentes. E em meio a toda essa crise no Mercosul chegou uma nova embaixadora de Washington, Kelly Keiderling, elogiando o presidente Tabaré Vázques, pressionando – com uma visão bastante recortada da realidade – contra a Venezuela e inclusive imiscuindo-se nos assuntos internos uruguaios.

Keiderlig recebeu missões em vários pontos quentes do planeta: Cuba (primeira secretária de Imprensa e Cultura da Seção de Interesses dos Estados Unidos, SINA, onde financiava opositores através do projeto Génesis, denunciado pela agência estadunidense de notícias AP), Venezuela (encarregada de negócios, e foi expulsa em 2013 por conspirar com a oposição uma “sabotagem econômica e elétrica”), e anteriormente no Iraque, onde exerceu nada menos que a chefia do escritório do Estado Maior.

Hoje sopram outros ventos. Em meio a um clima instável no seio do Mercosul, com tentativas destabilizadoras de alcance continental, com uma forte guinada conservadora na Argentina, um golpe de Estado em marcha no Brasil e pressões diversas para um realinhamento direitista regional.

Punhados de dólares
Alguns dos que trabalhavam com Luis Almagro na secretaria geral da OEA pontuam que além de posições ideológicas, a ativação da Carta Democrática da OEA para sancionar o governo venezuelano tem preço e limite de tempo. Há um punhado de dólares (bom, estima-se um milhão) pelo “trabalhinho” e a data limite é a eleição presidencial dos Estados Unidos, sublinha uma nota do pesquisador Álvaro Verzi Rangel.

E quando tudo apontava para um enfrentamento “ideológico”, a imprensa paraguaia informou que a estatal petroleira PDVSA recorreu à Câmara de Comércio Internacional para iniciar um processo arbitral reclamando o pagamento de 265 milhões de dólares por provisão de combustíveis durante anos, com base em acordos firmados de refinanciamento da dívida e adendas.

Em conclusão, a democracia está em crise no Mercosul, não precisamente pela acossada democracia venezuelana, mas porque estão se impondo práticas políticas que violam a legalidade, formas próprias da época das ditaduras, e onde o objetivo parece ser a destruição do Mercosul.

Rubén Armendariz é pesquisador do Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico.

Artigo publicado originalmente no site da ALAINET. Tradução livre por Lys Ribeiro.

http://brasilnomundo.org.br/noticias/a-crise-da-democracia-no-mercosul-legalidade-confabulacoes-e-mentiras/#.V54TovxrjIU

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