Afinal, o que é uma distopia?

Nos últimos anos, você deve ter ouvido muito falar em distopias, seja relacionadas a livros, filmes e séries que alguém recomendou, seja relacionada aos tempos sombrios em que vivemos. Mas, afinal, o que são distopias?
Para que possamos responder a esta pergunta, precisamos, antes, partir de sua irmã, a utopia. Ela sempre se refere a uma ideia de sociedade ideal, onde todos os cidadãos e todas as cidadãs tenham acesso igual a todas as oportunidades possíveis a ponto de poderem se dizer felizes sem exceção. Uma sociedade utópica, então, é aquela onde não haveria sofrimento, exploração ou qualquer tipo de opressão, porque todo mundo vive a melhor vida possível.
A palavra utopia surge a partir de um livro chamado Utopia, escrito em 1516 por Thomas More, um dos maiores filófosos ingleses do Renascimento (e que, ironicamente, foi canonizado em 1935 pelo Papa Pio XI porque se recusou a aceitar a criação da Igreja Anglicana pelo Rei Henrique VIII, que queria apenas poder se divorciar de sua primeira esposa… mas essa é outra história). No livro, More usa o formato de um dos gêneros literários de maior circulação no século XVI: a literatura de viagem, em que os grandes navegadores narram suas aventuras desbravando o (então) desconhecido Novo Mundo.
Utopia descreve, através dos olhos do (fictício) navegador português Raphael Htholoday a Ilha Utopia, uma sociedade tida como ideal onde não havia qualquer tipo de perseguição religiosa, de crime (as casas não teriam trancas nas portas e janelas) e propriedade privada. Homens e mulheres têm a mesma educação, as mesmas profissões e não existe desemprego. Em outras palavras, a sociedade de Utopia era, em contraste com a Inglaterra (e a Europa) do século 16, a sociedade ideal. Há um único problema nisso tudo: Utopia não existe.
A palavra é formada pelo p´refixo grego u- “não” + a palavra topos “lugar”. Utopia, então, é o não-lugar, o lugar que não existe. (A pronúncia em inglês remete, também, à possibilidade do prefixo grego ou- “bom”). Uma utopia, então, só pode existir como uma ideia. Voltaremos a isto depois.
Uma distopia geralmente é vista como o oposto de uma utopia. Ora, se uma utopia é um lugar onde todo mundo é feliz de maneira igual, uma distopia é um lugar onde todo mundo é infeliz, uma sociedade de pesadelo ao contrário do sonho da utopia, não é isso? Ainda que esta definição não esteja totalmente errada, ela é imcompleta, e precisamos ver o porquê. Para isso, talvez seja melhor usarmos um exemplo de uma obra que é conhecida por quase todo mundo: Jogos Vorazes.

A opulência da Capital é sustentada pela opressão e semiescravidão dos distritos.
Na Panem, o país em que as obras se passam, vemos que cada um dos Distritos é oprimido pelos Pacificadores, soldados a serviço da Capital. Cada um dos 12 Distritos é responsável por produzir uma indústria necessária para manter a vida de opulência da Capital: pesca, pecuária, mineração, agricultura. Cada um dos produtos dos distritos (o que chamamos de commodities) faz com que a vida na Capital seja vivida como a melhor vida possível; ou seja: uma utopia. Mas uma utopia que é alimentada pela opressão e desigualdade forçada aos distritos, que vivem uma distopia. Vemos, também, que a prática dos Jogos Vorazes – o espetáculo anual em que crianças e adolescentes de cada um dos distritos são enviadas a uma arena para que se matem até que sobre somente um, para o deleite dos habitantes da Capital — é apresentada como uma necessidade histórica para que a nação jamais se esqueça da superioridade dos vencedores da guerra civil que houve quando os Distritos se uniram contra seus opressores.
O livro (e o filme) nos mostra, então, que a distopia não é necessariamemnte o oposto da utopia, mas que distopia e utopia são partes de uma mesma moeda e que uma depende da outra para existir. O mundo que é de pesadelo para uns pode ser (e quase sempre é) de sonho para os outros, poderosos que detêm, entyre outras coisas, o poder de modificar a história e as crenças e valores pelos quais as pessoas precisam viver. O que faz com que um espaço qualquer seja visto como um espaço de sonho ou de pesadelo é a perspectiva, o ponto de vista através do qual nós, leitores e espectadores, somos apresentados a esta sociedade. Se concordamos com tudo o que nos é apresentado a ponto de desejarmos que a nossa sociedade fosse assim, para nós, aquilo passa a ser uma utopia. Mas, se o que vemos nos assusta a ponto de nos fazer refletir até que ponto aquelas ações e aqueles valores só existem no livro ou no filme, ou se já existem na vida real, então estamos vendo uma distopia.
A distopia, então, é um tipo de construção de narrativas que tem o poder de nos fazer refletir sobre a existência, a nosso redor (e em qualquer grau) daqueles elementos que nos assustam para que possamos pensar em formas de propor mudanças para que estes elementos não se tornem ainda maiores e mais perigosos.