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  • Relato do Ciclo de Oficinas Cinematográficas do Projeto Zine Distópico: Cinema, produção textual e reflexões

    Prof. Dr. Luiz Spinelli
    Beatriz Tavares Thumé
    Isabela Hentges Carle
    Maria Luíza Levien Zanini

     

    Entre os dias 28 de abril e 2 de maio de 2025, a escola SESI Eraldo Giacobbe, em parceria com o Grupo de Pesquisa “O mundo que (des)conhecemos: estudos de narrativas distópicas contemporâneas e seus desdobramentos”, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), promoveu um ciclo de oficinas cinematográficas voltado aos estudantes do terceiro ano do Ensino Médio. A atividade fez parte da programação da Semana de Ampliação de Conhecimentos da Escola SESI de Ensino Médio Eraldo Giacobbe e também foi a segunda edição do “Cine AVC”, em uma iniciativa do projeto “Zine Distópico: Cinema, produção textual e reflexões”, que tem como objetivo proporcionar experiências de reflexão crítica sobre temas sociais, políticos e culturais, utilizando as distopias como ferramenta pedagógica. A proposta consistiu em receber professores universitários de diferentes áreas do conhecimento para a exibição e análise de filmes distópicos, seguidos de debates sobre suas relações com os campos acadêmicos de cada docente convidado e produção de textos diversos sobre os filmes.

    Ao longo de cinco dias, as oficinas ocorreram no turno da manhã, das 8h30 às 11h30, permitindo a exibição completa dos filmes, além de um espaço para discussão e interação com os estudantes. Cada professor apresentou um filme e, ao final, compartilhou como a obra é abordada em sua área de graduação, estabelecendo pontes entre o cinema, o conhecimento universitário e as vivências escolares. A proposta facilitou a ampliação do repertório cultural dos estudantes e favoreceu o desenvolvimento de um diálogo crítico e desenvolvimento de um pensamento crítico voltado às questões contemporâneas.

    No dia 28 de abril, a professora Dra. Angelita Hentges, da área de Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul Rio-grandense, apresentou o filme O Livro de Eli (2010) e conduziu uma discussão sobre os papéis da educação e do conhecimento em cenários de adversidade, destacando a importância de uma formação humana mesmo em contextos extremos. A estudante Yohanna Steinle destacou como a  experiência foi algo fora da rotina e, por isso estimulante: “Não é um filme que eu veria geralmente, então foi legal, porque saiu da minha bolha. Por não ser meu tipo de filme, acho que vale a pena assistir para refletir sobre ele. Além de ele falar sobre como a religião pode ser usada para controle de massa e sobre a sociedade”.

    Já no dia 29 de abril, o professor Dr. Guilherme Carvalho da Rosa, dos cursos de Cinema da UFPel, acompanhado de Luísy Pacheco Corrêa, ex-estudante da escola SESI e atualmente graduanda em Cinema e Audiovisual na mesma universidade, conduziram uma oficina dedicada à linguagem cinematográfica. A atividade teve como base a exibição de uma seleção de curtas-metragens produzidos por estudantes da UFPel, escolhidos especialmente para a ocasião. A partir desses filmes, foram discutidas as implicações estéticas e culturais da linguagem audiovisual, promovendo diálogo entre a produção universitária e os estudantes do Ensino Médio, especialmente sobre as paisagens locais e a sociedade contemporânea. Para o estudante Josué Xavier, a experiência foi positiva e trouxe um novo olhar para a comunidade da zona sul do estado: “Foi uma experiência muito nova, eu nunca tinha tido algo desse tipo. Eu acho que assistir esses curtas faz com que a gente tenha uma noção tanto do que acontece no curso de cinema, quanto do que acontece nas cidades da nossa região”.

    Em 30 de abril, foi a vez do professor Dr. Eduardo Marks de Marques, da graduação em Letras Inglês da UFPel, que exibiu Filhos da Esperança (2006) e propôs uma leitura crítica sobre as questões sociais e políticas da obra, articulando-as à literatura. Para o estudante Caetano Soares, foi um momento valioso: “Discutimos muitas coisas interessantes. O filme em si é muito bom. Acho que trouxe temas muito importantes da atualidade para serem discutidos na sala de aula, além de ser uma obra prima. O filme tem tantas camadas que eu tenho até dificuldades para colocar em poucas palavras. Gostei de verdade”. A estudante Marcelli Gomes também gostou da experiência. Segundo ela, ela “foi bem interessante e ter a oficina de cinema foi muito bom, porque a semana foi bem diferente do que temos na nossa rotina. Sobre o filme, não estou acostumada com filmes do universo distópico, mas achei interessante e também gostei da conversa do fim. Então valeu muito a pena, tanto por ter aquele momento, quanto pelo filme, porque foi muito bom e pude entender um pouco mais conversando com os colegas e conhecer um pouco sobre o curso da universidade”.

    Por fim, no dia 2 de maio, o professor Dr. Cláudio Carle, das áreas de Arqueologia e Antropologia da UFPel, promoveu uma análise do filme Brazil (1985), explorando representações da cultura e estrutura social presentes na narrativa. Para o estudante Samuel Gomes, a experiência foi importante para estabelecer relações com a sociedade atual: “Achei a mensagem do final do filme muito boa. A ideia de mostrar o mundo em uma evolução extrema, em que ninguém sabe o que está fazendo de fato, mas que só pela pessoa ter poder ganha cargos é um espelho real da sociedade. Achei um filme muito à frente do tempo, em que a gente vê uma realidade parecida com a nossa”.

    As atividades contaram com a participação dos estudantes, que demonstraram o potencial transformador do cinema no ambiente escolar. O contato com professores universitários ampliou horizontes, incentivou o pensamento interdisciplinar e despertou o interesse pela pesquisa e pela vida acadêmica. A iniciativa também reforçou a importância de abordagens pedagógicas que valorizem a arte como via de acesso ao conhecimento e à reflexão crítica sobre o mundo.

    O Ciclo de Oficinas Cinematográficas do projeto Zine Distópico consolidou-se como uma experiência significativa, tanto para os estudantes quanto para os docentes envolvidos. Ao promover o diálogo entre saberes escolares e acadêmicos, a ação contribuiu para a formação de uma postura crítica diante das narrativas distópicas e, sobretudo, diante da realidade. A equipe do projeto agradece aos professores convidados pela disponibilidade e à UFPel pela parceria e pelo espaço para esse texto, que reafirma o compromisso com a divulgação de práticas pedagógicas inovadoras e colaborativas.

     

  • Afinal, o que é uma distopia?

    Nos últimos anos, você deve ter ouvido muito falar em distopias, seja relacionadas a livros, filmes e séries que alguém recomendou, seja relacionada aos tempos sombrios em que vivemos. Mas, afinal, o que são distopias?

    Para que possamos responder a esta pergunta, precisamos, antes, partir de sua irmã, a utopia. Ela sempre se refere a uma ideia de sociedade ideal, onde todos os cidadãos e todas as cidadãs tenham acesso igual a todas as oportunidades possíveis a ponto de poderem se dizer felizes sem exceção. Uma sociedade utópica, então, é aquela onde não haveria sofrimento, exploração ou qualquer tipo de opressão, porque todo mundo vive a melhor vida possível.

    A palavra utopia surge a partir de um livro chamado Utopia, escrito em 1516 por Thomas More, um dos maiores filófosos ingleses do Renascimento (e que, ironicamente, foi canonizado em 1935 pelo Papa Pio XI porque se recusou a aceitar a criação da Igreja Anglicana pelo Rei Henrique VIII, que queria apenas poder se divorciar de sua primeira esposa… mas essa é outra história). No livro, More usa o formato de um dos gêneros literários de maior circulação no século XVI: a literatura de viagem, em que os grandes navegadores narram suas aventuras desbravando o (então) desconhecido Novo Mundo.

    Utopia descreve, através dos olhos do (fictício) navegador português Raphael Htholoday a Ilha Utopia, uma sociedade tida como ideal onde não havia qualquer tipo de perseguição religiosa, de crime (as casas não teriam trancas nas portas e janelas)  e propriedade privada. Homens e mulheres têm a mesma educação, as mesmas profissões e não existe desemprego. Em outras palavras, a sociedade de Utopia era, em contraste com a Inglaterra (e a Europa) do século 16, a sociedade ideal. Há um único problema nisso tudo: Utopia não existe.

    A palavra é formada pelo p´refixo grego u- “não” + a palavra topos “lugar”. Utopia, então, é o não-lugar, o lugar que não existe. (A pronúncia em inglês remete, também, à possibilidade do prefixo grego ou- “bom”). Uma utopia, então, só pode existir como uma ideia. Voltaremos a isto depois.

    Uma distopia geralmente é vista como o oposto de uma utopia. Ora, se uma utopia é um lugar onde todo mundo é feliz de maneira igual, uma distopia é um lugar onde todo mundo é infeliz, uma sociedade de pesadelo ao contrário do sonho da utopia, não é isso? Ainda que esta definição não esteja totalmente errada, ela é imcompleta, e precisamos ver o porquê. Para isso, talvez seja melhor usarmos um exemplo de uma obra que é conhecida por quase todo mundo: Jogos Vorazes.

     

    A opulência da Capital é sustentada pela opressão e semiescravidão dos distritos.

    Na Panem, o país em que as obras se passam, vemos que cada um dos Distritos é oprimido pelos Pacificadores, soldados a serviço da Capital. Cada um dos 12 Distritos é responsável por produzir uma indústria necessária para manter a vida de opulência da Capital: pesca, pecuária, mineração, agricultura. Cada um dos produtos dos distritos (o que chamamos de commodities) faz com que a vida na Capital seja vivida como a melhor vida possível; ou seja: uma utopia. Mas uma utopia que é alimentada pela opressão e desigualdade forçada aos distritos, que vivem uma distopia. Vemos, também, que a prática dos Jogos Vorazes – o espetáculo anual em que crianças e adolescentes de cada um dos distritos são enviadas a uma arena para que se matem até que sobre somente um, para o deleite dos habitantes da Capital — é apresentada como uma necessidade histórica para que a nação jamais se esqueça da superioridade dos vencedores da guerra civil que houve quando os Distritos se uniram contra seus opressores.

    O livro (e o filme) nos mostra, então, que a distopia não é necessariamemnte o oposto da utopia, mas que distopia e utopia são partes de uma mesma moeda e que uma depende da outra para existir. O mundo que é de pesadelo para uns pode ser (e quase sempre é) de sonho para os outros, poderosos que detêm, entyre outras coisas, o poder de modificar a história e as crenças e valores pelos quais as pessoas precisam viver. O que faz com que um espaço qualquer seja visto como um espaço de sonho ou de pesadelo é a perspectiva, o ponto de vista através do qual nós, leitores e espectadores, somos apresentados a esta sociedade. Se concordamos com tudo o que nos é apresentado a ponto de desejarmos que a nossa sociedade fosse assim, para nós, aquilo passa a ser uma utopia. Mas, se o que vemos nos assusta a ponto de nos fazer refletir até que ponto aquelas ações e aqueles valores só existem no livro ou no filme, ou se já existem na vida real, então estamos vendo uma distopia.

    A distopia, então, é um tipo de construção de narrativas que tem o poder de nos fazer refletir sobre a existência, a nosso redor  (e em qualquer grau) daqueles elementos que nos assustam para que possamos pensar em formas de propor mudanças para que estes elementos não se tornem ainda maiores e mais perigosos.