Ana Carolina Ramirez Roman
Lucas Rossales
Raissa Madruga Telles
O aborto é um tema complexo, que envolve questões éticas, morais, legais, de saúde pública e de direitos humanos, afetando direta e profundamente a vida das mulheres em diversas partes do mundo. De acordo com nota técnica do Ministério da Saúde, publicada em 2005 (Brasil, 2005, p. 22), o abortamento é definido como a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana, quando o produto da concepção pesa até 500 gramas. O termo “aborto” refere-se ao produto expulso da prática do abortamento, sendo esta, uma prática realizada (ou não) em diferentes culturas e períodos históricos.
Na Grécia e Roma antigas, por exemplo, o abortamento era uma prática relativamente comum e a oposição a essa prática não se baseava na defesa do feto, como ocorre em muitos discursos atuais, mas em benefício do pai, para que não fosse privado do direito de ter um filho. Essa lógica reflete uma visão histórica em que os direitos e as liberdades das mulheres eram frequentemente subordinados aos interesses dos homens e das famílias, o que tornava restrita a sua autonomia (Veiga, 2022)
Durante a América Colonial, o aborto era um tabu, mantido em segredo principalmente por razões religiosas e morais. Muitas vezes, o procedimento era utilizado para encobrir gravidezes resultantes de adultério, que era considerado um pecado grave em muitas comunidades religiosas da época. Em 1869, a Igreja Católica intensificou a condenação do aborto ao declarar que os fetos possuíam alma desde o momento da concepção, marcando uma mudança significativa na percepção moral e legal do aborto. Essa posição da Igreja teve um grande impacto na legislação e nas políticas públicas em muitos países, que passaram a criminalizar o aborto e a restringir severamente o acesso das mulheres a esse tipo de procedimento (Veiga, 2021).
No final da década de 1970, em meio a um contexto global de mudanças sociais e políticas, o movimento feminista organizado intensificou sua luta pela descriminalização do aborto. Esse movimento, composto em parte por ativistas exiladas por motivos políticos, argumentava que a criminalização do aborto não só violava a autonomia das mulheres, mas também reforçava as desigualdades sociais. Essa desigualdade se manifestava de maneira clara no acesso a abortos seguros, que, embora ilegais, estavam disponíveis apenas para aquelas que possuíam recursos financeiros suficientes para pagar pelos serviços de profissionais qualificados ou para viajar a países onde o procedimento era legalizado. As mulheres pobres, por outro lado, eram forçadas a recorrer a métodos inseguros, realizados em condições precárias, o que resultava em sérios riscos à saúde e, em muitos casos, à morte.
No Brasil, a legislação atual sobre o aborto é bastante restritiva. O aborto é regulamentado pelo Código Penal (Brasil, 1940), que o define como crime, exceto em três situações específicas: quando a gravidez é resultante de estupro, quando há risco de vida para a gestante e em casos de anencefalia, uma condição em que o feto não possui o cérebro desenvolvido e não sobrevive após o nascimento. No entanto, mesmo nesses casos permitidos, o acesso ao aborto seguro no Brasil enfrenta barreiras significativas, como a falta de informação, o preconceito por parte de profissionais de saúde, e a escassez de serviços especializados, o que leva muitas mulheres a recorrerem a métodos clandestinos e inseguros.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, é um documento fundamental que estabelece os direitos e as liberdades que devem ser garantidos a todas as pessoas, independentemente de sua raça, gênero, religião ou condição social. Entre os direitos assegurados pela Declaração, estão o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, conforme estabelecido em seu artigo 3º. O documento também condena o tratamento desumano e degradante em seu artigo 5º, e garante o direito à saúde, alimentação, habitação, segurança e bem-estar no artigo 25º. Esses princípios visam garantir a igualdade entre todos os seres humanos, destacando a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental que deve ser reconhecido, respeitado e protegido por todos os Estados.
Nesse contexto, a criminalização do aborto pode ser vista como uma violação dos direitos humanos das mulheres, ao limitar seu acesso a cuidados médicos seguros e sua autonomia sobre a própria vida e corpo. A restrição ao aborto não apenas compromete a saúde física das mulheres, expondo-as a procedimentos inseguros, mas também impacta negativamente sua saúde mental e emocional, ao forçá-las a continuar uma gravidez indesejada ou a enfrentar o estigma associado ao aborto (Tonetto, 2018). Em fevereiro de 2016, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos reforçou que os direitos reprodutivos das mulheres devem ser protegidos, incluindo a descriminalização do aborto. Essa declaração é um chamado à ação para que os países revisem suas leis restritivas e adotem políticas que garantam o acesso das mulheres a cuidados de saúde reprodutiva de qualidade.
No Brasil, o aborto inseguro é um grave problema de saúde pública, que afeta desproporcionalmente as mulheres mais vulneráveis, como as pobres, negras e com baixo nível de escolaridade. Essas mulheres, que já enfrentam inúmeras barreiras no acesso a serviços de saúde, são as mais propensas a recorrer a métodos inseguros de aborto, colocando suas vidas em risco. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, Online), a Organização Mundial da Saúde (OMS) pontua que o aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna no mundo, e sua prevenção requer uma abordagem integrada, que inclua a educação sexual, o acesso a métodos contraceptivos, e a disponibilidade de serviços de aborto seguro.
A criminalização do aborto também tem consequências econômicas significativas para a sociedade. O tratamento de complicações decorrentes de abortos inseguros impõe uma carga pesada sobre o sistema de saúde, consumindo recursos que poderiam ser destinados a outras áreas de necessidade. Além disso, a perpetuação de desigualdades sociais e a exclusão de mulheres que não têm acesso a serviços de saúde de qualidade contribuem para o ciclo de pobreza e marginalização. A falta de acesso a abortos seguros é uma condição prevenível, e existem tratamentos e procedimentos médicos que poderiam reduzir drasticamente a mortalidade materna, como demonstrado em países onde o aborto é legalizado e regulamentado de forma adequada (Fiocruz, online).
A discussão sobre a descriminalização do aborto vai além do aspecto legal, envolvendo a proteção dos direitos humanos e a promoção da saúde pública (Anjos, et al, 2013). Garantir o acesso a cuidados médicos seguros e respeitar a autonomia das mulheres não é apenas uma questão de justiça social, mas também de cumprimento das obrigações internacionais de direitos humanos que o Brasil e muitos outros países assumiram (Santos, 2017). A prática do aborto em condições inseguras constitui uma grave violação dos direitos humanos, impactando de maneira desproporcional as mulheres mais vulneráveis. A solução para esse problema passa pela revisão das leis restritivas e pela criação de políticas públicas que ampliem o acesso a cuidados de saúde reprodutiva, educação sexual e planejamento familiar. Somente através de um debate informado e inclusivo será possível avançar na proteção dos direitos das mulheres e na promoção de uma sociedade mais igualitária e saudável.
Em resumo, a problemática do aborto, especialmente em países como o Brasil, onde a prática é fortemente regulamentada e restrita, destaca as graves implicações biopsicossociais e os desafios de saúde pública que surgem quando o acesso a cuidados médicos seguros é negado. O impacto é sentido de forma mais aguda pelas mulheres em situação de vulnerabilidade, perpetuando um ciclo de exclusão social e desigualdade. A descriminalização do aborto e a implementação de políticas públicas eficazes são passos essenciais para garantir a proteção dos direitos humanos e promover uma sociedade mais justa e saudável.
Referências
ANJOS, K. F.; SANTOS, V. C.; SOUZAS, R.; EUGÊNIO, B. G. Aborto e saúde pública no Brasil: reflexões sob a perspectiva dos direitos humanos. Revista Saúde em Debate. Rio de Janeiro, 2013, vol. 37, n. 98. p.504-515. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/yTbJpmr9CbpSvzVKggKsJdt/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 22 ago. 2024.
SANTOS, Jaqueline Araujo dos. De Crime a Direito Humano: Uma Crítica à Criminalização do Aborto. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Ciências Jurídicas, Paraíba. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/11393/1/JAS28112017.pdf. Acesso em: 22 ago. 2024.
BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 31 dez. 1940
BRASIL. Norma técnica: atenção humanizada ao abortamento. Ministério da saúde, 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf. Acessado em: setembro de 2024.
FIOCRUZ. O avanço do direito ao aborto na América Latina. Online. Disponível em:https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-avanco-do-direito-ao-aborto-na-america-latina. Acessado em: setembro de 2024.
TONETTO, Milene Consenso. O direito humano à liberdade e a prática abortiva brasileira. Revista Bioética. vol.26 no.1 Brasília Jan./Mar. 2018.
VEIGA, Edison. Aceito na Antiguidade, aborto é debatido desde a Grécia Antiga. BBC News Brasil, 27 jun. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61950222. Acesso em: 22 ago. 2024.
VEIGA, Edison. Aborto: o que levou a Igreja Católica a considerar essa prática pecado no século 19. BBC News Brasil, 9 jul. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57783604. Acesso em: 22 ago. 2024.