Mobilidade social quilombola: ferramenta de luta e resistência

Rafael de Lima
Felipe Jose Santos
Lucas Kleinicke Rossales

O período da escravidão no Brasil foi marcado por inúmeras formas de opressão, sofrimento e desumanização das pessoas escravizadas, tais brutalidades deixaram um legado inapagável na história, principalmente entre as comunidades africanas que sofreram essa tragédia.

As diferentes formas de resistência surgem como uma resposta à necessidade de enfrentar as condições desumanas e o tratamento de indivíduos como mercadorias. Os quilombos simbolizam essa resistência, uma luta que por muito tempo foi negligenciada e subestimada. Eles difundem, por meio de várias conexões, conceitos como “quilombo” para lugares onde antes eram desconhecidos. Por essas razões, os quilombos desempenham um papel significativo no reconhecimento da identidade negra brasileira, promovendo uma maior auto-afirmação étnica e nacional. O fato de terem existido como espaços de resistência dentro de um sistema que subjugava moralmente os negros inspira a esperança de que instituições semelhantes possam existir no presente, juntamente com outras formas de fortalecimento da identidade cultural (NASCIMENTO, 2006).

Hoje, vemos os descendentes dessas pessoas escravizadas, especialmente os que vivem em comunidades quilombolas, buscando a mobilidade social como forma de superar os legados da escravidão. No entanto, a colonialidade persiste, criando obstáculos para essa mobilidade. Nesse sentido, a busca pela qualificação no ensino superior pode ser vista como uma forma clara de resistência do quilombo diante da realidade atual.

Este trabalho surge com a problemática de conhecer a necessidade da mobilidade social dentro da comunidade quilombola.

O principal objetivo é buscar entender a importância da mobilidade social, principalmente na busca de educação superior, no contexto quilombola, para fortalecimento das lutas dos quilombos, diante da realidade e transformações do mundo atual. Como objetivos específicos busca-se compreender a necessidade desta mobilidade, e discutir sobre as principais barreiras encontradas na busca da formação superior fora do quilombo.

Primeiramente busca-se conceitos bibliográficos sobre o tema, Severino (2016, p. 131), diz que:

A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados.

Após este embasamento sobre o assunto, foi desenvolvido um diálogo com alunos quilombolas que cursam o ensino superior na Universidade Federal de Pelotas, além de uma entrevista presencial com uma aluna da Turma Especial do Curso de Medicina Veterinária do Projeto Pronera, pertencente ao Quilombo Paratibe, de João Pessoa-PB.

Sendo assim uma pesquisa qualitativa, que consiste em analisar as impressões dos sujeitos sobre determinado fato social. No entendimento de Creswell (2010, p. 209):

A pesquisa qualitativa é uma forma de investigação interpretativa em que os pesquisadores fazem uma interpretação do que enxergam, ouvem e entendem. Suas interpretações não podem ser separadas de suas origens, história, contextos e entendimentos anteriores.

No Brasil, o acesso universal à educação é fruto das lutas dos movimentos sociais e do compromisso com a educação pública em níveis federal, estadual e municipal, notavelmente refletidos na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394/96. Essa conquista enfatiza o papel crucial da educação formal como o primeiro passo na formação cidadã, proporcionando aos indivíduos acesso aos direitos fundamentais, tanto econômicos quanto civis e políticos. Portanto, o acesso e a conclusão do ensino superior por parte dos membros das comunidades quilombolas também representam uma forma de resistência à falta de oportunidades e políticas públicas para essa população.

Os ex-escravizados foram largados à própria sorte na economia da época, muitas vezes sendo forçados a retornar aos mesmos trabalhos desumanos ou ainda piores do que aqueles que realizavam enquanto escravos. Como descreveu Pierre Bourdieu em sua obra ‘A Distinção: Crítica Social do Julgamento do Gosto’ (1984), o Estado não tomou iniciativas para garantir condições básicas de sobrevivência para homens e mulheres livres. A ausência de investimento em educação básica, como a alfabetização, não apenas dificultou uma transição digna da escravidão para a liberdade, mas também não favoreceu a promoção da mobilidade social

Os poderes estatais também falharam em prover assistência humanitária, como alimentos e moradia. Esta falta de apoio contribuiu para a manutenção de uma estrutura social desigual e para a perpetuação da exploração econômica desses indivíduos. Nesse contexto os quilombos eram locais de refúgio e resistência, onde as pessoas escravizadas e seus descendentes, e depois ex-escravos buscavam liberdade e autonomia.

A busca pela educação superior representa uma oportunidade para tentar mudar positivamente e de maneira consciente a posição social de um indivíduo. A hipótese do

trabalho está, delineada em: com a educação superior os indivíduos das comunidades quilombolas, podem se mover socialmente e que essas pessoas que já terminaram o nível superior, passam a ser reflexo positivo e semeador, de que é possível conseguir estudar e ter uma profissão, mesmo que as condições não sejam as mais favoráveis. E que os jovens se apropriem dos exemplos que aqueles que se formaram no ensino superior dão à comunidade.

Nós temos que nos adaptar de alguma forma. No início foi muito difícil, a distância da família, agravado pelo fato de eu ter uma irmã gêmea que ficou na Paraíba, a nova realidade, a falta de tudo, de material, de computador, a quantidade de textos e livros que tinha que ler toda semana, fugiam da realidade que eu vivia até então. O fato de eu ser a única quilombola na turma, me fez sofrer preconceito por parte dos outros integrantes da turma, que vinham de outros grupos e movimentos. Mas tive que me acostumar com isso, temos um peso enorme por não poder reprovar em nenhuma disciplina durante o curso, se não perdemos a vaga. Tudo ainda está sendo difícil, mas consegui amenizar com acompanhamento psiquiátrico oferecido pela Ufpel, mas também faço uso de medicamentos e calmantes para enfrentar as crises e a depressão que fui diagnosticada durante o curso. O que me motiva é as oportunidades que poderão vir, a conclusão do curso superior em Medicina Veterinária pode me abrir inúmeras portas, sem contar na minha mudança como pessoa. Mas ainda acho que o principal de tudo é poder voltar formada para minha comunidade, e servir de exemplo, para que outros também possam ver que é possível (Ires Nascimento Barreto da Silva. Dez/2023).

Os quilombos desempenharam um papel fundamental na preservação e na promoção da cultura africana, espaços onde as tradições, os costumes e as práticas culturais podiam ser mantidos e transmitidos de geração em geração, onde os quilombolas preservaram sua língua, sua religião, suas danças, sua música, sua culinária e outras expressões culturais, criando assim um ambiente onde a identidade africana podia ser celebrada e fortalecida. Mesmo ainda tentando manter a preservação dessa cultura e enfrentando desafios diários para isso, é extremamente importante que os quilombolas consigam buscar qualificação profissional e com isso mobilidade social para o fortalecimento do quilombo e tudo que ele representa.

As propostas do Quilombismo defendidas por Abdias Nascimento potencializam elementos fundamentais para viabilizar transformações significativas no campo social e educacional quanto às questões raciais (NASCIMENTO, 2002).

No campo educacional, a promoção da educação antirracista, que reconhece e enfrentam as desigualdades raciais presentes na sociedade, bem como a valorização da história, da cultura e das contribuições dos povos africanos. Assim é crucial a interação e a construção de espaços de poder e autonomia para as comunidades negras, inspirados nos quilombos históricos, onde os afrodescendentes podem exercer controle sobre seus próprios destinos e recursos. Isso inclui iniciativas de desenvolvimento econômico e social lideradas pela comunidade, bem como a defesa de políticas públicas que promovam a igualdade racial e o acesso equitativo a oportunidades educacionais, econômicas e políticas.

 Conforme identificado nas conversas e na entrevista realizada, é fundamental destacar a importância da mobilidade social dos quilombolas, principalmente na busca pelo ensino superior, uma vez que fortalece a participação dos quilombolas no contexto social e os qualifica para continuar a luta por políticas públicas mais efetivas e que dialoguem com suas comunidades. Nesse cenário, os quilombolas enfrentam o preconceito, muitas vezes velado, que se manifesta por meio de piadas, insinuações ou comentários irônicos, disfarçando ou encobrindo o fenômeno do preconceito racial na sociedade brasileira atual. A partir das respostas fornecidas, percebe-se que o racismo está presente de forma dissimulada, mas com impacto significativo, podendo prejudicar os ideais e objetivos de muitos estudantes. Nesse sentido Munanga (2012, p. 19):

Os que pensam que a situação do negro no Brasil é apenas uma questão econômica, e não racista, não fazem esforço para entender como as práticas racistas impedem ao negro o acesso na participação e na ascensão econômica. Ao separar raça e classe numa sociedade capitalista, comete-se um erro metodológico que dificulta a sua análise e os condena ao beco sem saída de uma explicação puramente economicista.

A mobilidade social pode ser vista como um fenômeno que une as pessoas, gerando um senso de orgulho e pertencimento entre os membros de uma comunidade. No entanto, como em qualquer mudança social, também pode apresentar barreiras e dificuldades, e nesse sentido o trabalho servirá de base para uma futura pesquisa na qual pretende-se explorar “Qual é o impacto da mobilidade e da saída de quilombolas na identidade cultural destes e na definição de seu pertencimento às comunidades quilombolas?”.

Diante o exposto, acredita-se no alcance dos objetivos, entendendo a importância da mobilidade social dos quilombolas na sociedade atual, atuando como forma de resistência e participação nos processos, bem como conseguimos identificar algumas das inúmeras barreiras enfrentadas para a concretização disso.

Referências

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editor (2002) 2ª ed.

CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Tradução Magda Lopes; consultoria, supervisão e revisão técnica de Dirceu da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 3. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. (Coleção Cultura Negra e Identidades).

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 24. ed. rev. e atual. 5. reimpr. São Paulo: Cortez, 2016.