Foto: Guilherme Santos / Sul21
Seu Beto é um peão desassombrado, desses que garantem não ter medo de vulto ou assombração quando atravessa os campos de Palmas, na Serra do Sudeste, interior de Bagé, nas madrugadas escuras do sul rio-grandense. A região do pampa gaúcho é destacada pela particularidade dos campos de pedra, ou campos dobrados, com paisagem marcada por acidentes geográficos, peraus, afloramentos rochosos e guaritas, um mosaico de campos, pedras e matos.
O filho de peão campeiro saiu da estância aos oito anos. “A melhor escola é a do mundo”. Mundo que ele foi conhecer. Mas voltou, aos dezesseis, quando o pai deixou a lida. Atualmente, ele e a esposa, são proprietários de uma quadra de campo, onde criam gado e ovelha, cultivam milho e feijão e cuidam de uma quinta – pomar com árvores frutíferas, já que “casa sem quinta, não é casa”. Da quinta saem as frutas para a produção de doces artesanais que comercializam, como figo, abóbora, marmelo – retirado, também, dos matos.
Na estância onde campereia, Seu Beto faz “de tudo”. Cria porcos, ovelhas, cabras, patos, galinhas, cavalos e cerca de 530 cabeças de gado – que pertencem ao patrão, mas, também, ao filho e a esposa. Os animais são contabilizados pelo peão, que sabe qual pertence a quem, quantas crias teve, e faz a divisão em caso de venda, cuidando para que o animal vendido seja correspondente ao dono. “Se eu ver uma vez, eu conheço. Eu gravo o animal.”
É nas Palmas que ocorre a produção de novilhos, que, posteriormente, são vendidos para outras propriedades, onde serão engordados. As vacas que tiveram novilho recentemente estão num cercado mais próximo da sede da estância. As demais, ficam em uma invernada, campo aberto onde pastam soltas. Como relata Seu Beto, os cães fazem a lida junto. Ele leva para a invernada os cinco – Leixiguero, Tigre, Diana, Campeiro e Barbudo –, misturas com ovelheiro gaúcho. Os demais cachorros que ficam na propriedade são veadeiros. Diferentemente dos outros, que ficam soltos, eles são mantidos presos, ou amarrados ao pé de uma árvore.
Com os cachorros, Seu Beto vai reunindo o gado. Para isso, grita com som gutural: “Oiá lá”, “Ói e volta lá”, “Ataca de fora”, “Olha lá”, “Volta lá”, “Ataca lá”. As ordens podem ser feitas em voz alta ou baixa, lenta ou rapidamente. Dessa forma, os cachorros sabem a intensidade da investida a dar, que posição tomar, se devem recuar ou buscar algum animal desgarrado, enfiado no meio do mato.
Foto: Guilherme Santos / Sul21
Os cachorros avançam. Correm e recuam. Vão em grupos de tamanhos variados, às vezes sozinhos. Ao aproximarem-se dos animais, contornam o grupo, enquanto vacas e bezerros tentam fugir pelo campo. Os cachorros, então, latem, correm e tentam morder os calcanhares das rezes, fazendo-as recuarem, retornando ao grupo. Enquanto as vacas se agrupam, os cachorros tentam atacar, mas são chamados por Seu Beto, que altera o tom de voz, num acorde mais ríspido. A intenção não é que mordam, por isso, os cachorros devem ser incentivados na medida exata, “pra que nunca machuquem”. Seu Beto explica que os cães aprendem a lida com ele, mas, também, com os outros cães.
O dia de Seu Beto começa cedo, por volta das 3h ou 4h da madrugada. Nesse horário, deixa a casa e vai, a pé ou a cavalo, até a estância do patrão, por entre trilhas e caminhos pelo campo. Algumas vezes, dependendo do tempo ou da lida, dorme na sede. Seu horário obedece o relógio da lida, que, por sua vez, é determinada pelos ciclos da natureza e de vida e morte dos animais.
As primeiras lidas são as do entorno da casa: dar comida aos animais no terreiro – vacas, galinhas, cavalos, cachorros; tirar leite; soltar ou prender animais do campo; buscar as cabras que, “se criam aqui, nas pedras”. Cuidadoso, costuma juntar as cabritas três vezes por semana, quando são tratadas com milho para não se asselvajarem. Alguns poucos bodes circulam no campo, mas, arredios, é difícil vê-los. Já as ovelhas devem ser juntadas com frequência para examinar e evitar que desenvolvam frieira, que mata.
Em seguida, começa a lida com os animais, como buscar o gado na invernada para contagem; separar o gado para venda; ver vacas que estão perto de parir; curar bicheira; trazer pra perto de casa os animais com filhotes. As crias são alvo de atenção pelo grande perigo que correm sem a proteção humana. Cobras, corvos, javalis, zorros (Lycalopex gymnocercus), são fonte de preocupação constante. Rondam os campos. Os último “comem até galinha”, explica seu Beto.
O fim da tarde é reservado ao resgate de animais perdidos, pois “é o melhor horário para encontrar”. Certos animais territorializam e, algumas vezes, não obedecem ao chamado, indo dormir numa coxilha, ou debaixo de determinada árvore. Na relação com os animais, Seu Beto sabe os locais onde encontrá-los. Em outros casos, alguma fêmea pode se esconder na hora de parir, o que coloca mãe e filhote em risco.
Seu Beto aprendeu no cotidiano da lida, com outros peões, mas, também, com outros animais, e a partir disso sentencia: “a pessoa torna-se campeiro quando passa a conhecer os animais”. Hoje, ele segue na lida e na leitura de livros que ganha. Entre as doenças, Seu Beto destaca a peste da mancha e a gangrena. Tristeza também é doença que dá em boi. O animal “ou fica brabo, ou fica louco”. “Animal com tristeza não pode enlaçar no pescoço, que morre”. A tristeza está no sangue. “Para salvar um bicho eu faço qualquer coisa”.
Texto: Seu Beto e Vagner Barreto
Colaboração: Daniel Vaz Lima, Juliana Nunes (Flor Ariza)
Coordenação: Flávia Rieth