Venezuela, Maduro, Lula e PT: ingredientes de análise da Política Externa Brasileira (2024) por Mateus Santos

No Brasil, a questão venezuelana se tornou um objeto de discussão e dissenso para além dos espaços institucionais de formulação diplomática.

Nas palavras de Guilherme Casarões, “a política externa saiu da cozinha e entrou na sala de estar” dos brasileiros de forma conturbada em contextos como as eleições presidenciais de 2018 (2019, p.231), permanecendo, em grande medida, entre os ingredientes da polarização política nacional à luz das transformações observadas na América Latina e em outras partes do mundo desde a última década.

No capítulo mais recente, o embate em nível doméstico acerca da avaliação do processo eleitoral, das alternativas diante das incertezas decorrentes da ausência de transparência na contagem dos resultados, além da postura do governo brasileiro diante do caso evidenciaram os desafios envolvendo a formulação e implementação da Política Externa no atual governo Lula. Com base nisso, esse curto artigo analisa as divergências estabelecidas sobre o resultado das eleições venezuelanas no seio do governo Lula, avaliando as condições domésticas e sistêmicas em prol da produção de uma política assertiva, capaz de potencializar uma possível ação mediadora em meio à intensificação da luta política no país vizinho. Para tal, exploram-se o modelo teórico do Jogo de Dois Níveis de Robert Putnam no estudo das condicionantes que, em nossa visão, influenciam nos processos decisórios envolvendo a atual crise no país vizinho.

Um desafio de equilíbrio? Os dois níveis à brasileira no Governo Lula

As incertezas envolvendo a posição do Palácio do Planalto acerca da crise venezuelana possuem múltiplas raízes. Em primeiro lugar, as reações de diferentes atores que, direta ou indiretamente, conformam o governo Lula evidenciam as fraturas existentes na coalizão acerca do rumo da Política Externa, de modo geral, e da condução de agendas vistas como sensíveis. Tendo como principal estratégia o processo de reativação das características básicas da Política Externa Altiva e Ativa, epíteto marcador das relações exteriores em seus dois primeiros mandatos enquanto presidente, as tentativas de revitalização conceitual e prática da PEB a partir de 2023 envolveram desde a afirmação de um distanciamento em relação à experiência do governo Bolsonaro até a valorização de princípios e ações universalistas e autonomistas.

Contudo, se a materialização de tais diretrizes ganharia certo impulso com a recondução de Mauro Vieira  ao Ministério das Relações Exteriores e a nomeação de Celso Amorim como Assessor Especial da Presidência da República, as características de um governo de coalizão, conformado num ambiente de elevada polarização política doméstica, fizeram-se sentir também em temas externos. Na construção do chamado primeiro escalão do governo, a aproximação com partidos e lideranças de centro e centro-direita ampliou a diversidade de posições acerca da política internacional.

Somadas as diferenças de concepção geral acerca do desafio de transformação da política externa, a amplificação de temas como a crise venezuelana no contexto do ambiente doméstico brasileiro elevou os desafios envolvendo a constituição de políticas sólidas e coerentes na esfera regional e global. Como uma espécie de “Nova Cuba” no século XXI a partir do imaginário político dos setores conservadores nacionais, a Venezuela se transformou em recurso simbólico nas construções discursivas contra as esquerdas brasileiras, num complexo processo que envolveu desde a mobilização de teorias conspiratórias acerca de uma suposta articulação regional de partidos, movimentos e governos até ao diagnóstico sobre a natureza do seu regime, além das consequências objetivas envolvendo a crise no país vizinho.

Tal dimensão controversa se potencializou com as características da política regional. Frente ao fracasso da chamada Onda Azul, a emergência de novos governos de centro-esquerda e esquerda em diferentes países do continente não foi capaz, ao menos por enquanto, de promover uma nova concertação política capaz de reduzir as tensões dentro e fora das fronteiras nacionais. Diante de um quadro muito mais adverso em relação aos tempos da chamada Onda Rosa, os novos governos convivem com um nível elevado de instabilidade político-institucional, dificuldades econômicas decorrentes do fracasso do reformismo neoliberal e das incertezas sistêmicas com a elevação da insegurança alimentar e energética. Nessa configuração, os desafios de governança na esfera doméstica e os níveis de politização de agendas como a crise venezuelana reduzem as possibilidades de uma atuação consistente do Palácio do Planalto sem comprometer o interesse de diferentes grupos na esfera doméstica, incluindo desde setores que integram o governo até mesmo segmentos da oposição.

Se no nível II predominam o desafio de convergência ou ao menos neutralização entre diferentes posições no seio do próprio governo sobre a Política Externa e a capilaridade das controvérsias envolvendo a situação venezuelana entre diferentes espectros político-ideológicos que conformam a atual fase das lutas sociais no Brasil, o nível I também é composto por diferentes questões e incertezas. Do ponto de vista das relações bilaterais, tanto o governo Temer quanto o governo Bolsonaro perseguiram certa tendência de isolar a Venezuela na política regional. Já sob o governo Lula, as tentativas de reintegração plena da Venezuela no ambiente regional a partir da proposta de uma Cúpula de Líderes Sulamericanos em Brasília (2023) se mostraram limitadas diante da permanência de uma heterogênea oposição ao líder venezuelano, reunindo desde governos de centro-direita como o Uruguai de Lacalle Pou até representantes de centro-esquerda como Gabriel Boric do Chile.

Ainda na esfera internacional, as oscilações do Governo Biden em relação às sanções à economia venezuelana e o apoio estratégico ofertado pela China, Rússia e Irã ao governo Maduro atribuem a tal crise uma dimensão também sistêmica, tornando-se uma espécie de pêndulo na balança geopolítica. Nesse sentido, em meio aos esforços brasileiros em defender uma ordem multipolar num contexto de elevação das tensões globais, as posições sobre a crise no país vizinho tendem a ter ressonância também em outras agendas com potencial de reposicionar o Brasil diante das características do atual quadro de transição hegemônica.

O que há de certeza na incerteza? O Brasil diante da crise venezuelana.

Em meio ao chamado público das oposições por manifestações contra o resultado eleitoral e da reação do governo diante desse processo, o ambiente de incertezas na Venezuela assumiu um caráter internacionalizado frente às pressões de diferentes governos quanto à lisura do processo eleitoral. Reagindo a tal movimentação, o Governo Maduro promoveu a expulsão de representantes diplomáticos de ao menos sete Estados latino-americanos. Nesse ambiente de crise com múltiplos impactos, a posição brasileira se tornou objeto de grande expectativa. Em breve nota à imprensa, ainda na manhã do dia 29 de julho, o Itamaraty saudava o “caráter pacífico” do processo eleitoral até então (Brasil, 2024a), porém mencionando a importância da divulgação pública das atas eleitorais como um mecanismo de checagem dos resultados. O Itamaraty desenvolveu uma espécie de compasso de espera, submetendo a possibilidade de uma posição mais concreta diante da evolução dos acontecimentos no território vizinho e do acompanhamento in loco do processo por meio de Celso Amorim e da representação diplomática no país.

Contudo, o Palácio do Planalto sofreu maiores pressões diante do pronunciamento de outros atores acerca do mesmo tema. Por meio de nota pública, a Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) classificou o processo eleitoral venezuelano como uma “jornada pacífica, democrática e soberana” (PT, 2024). Demonstrando confiança nas instituições eleitorais e na capacidade de diálogo entre governo e oposição, o texto apontava para a importância da defesa da autodeterminação venezuelana na condução de soluções para os seus problemas domésticos. Apesar de curta, a nota em questão movimentou o cenário político brasileiro. Do lado governista, a movimentação do partido do presidente alimentou ainda mais pressão acerca de um posicionamento oficial do Chefe de Estado brasileiro. Na oposição, as construções discursivas transitaram desde o reforço da pecha do PT enquanto um partido supostamente antidemocrático até a revitalização de antigas críticas de segmentos liberais nos anos 2000 quanto à influência do partido na condução da Política Externa (Jakobsen, 2013), numa suposta ruptura no sentido de uma política de Estado.

Ainda na esfera governamental, o pronunciamento de outros atores evidenciou os limites envolvendo as relações entre as múltiplas concepções de política externa a partir das características da coalizão que sustenta o Terceiro Mandato de Lula. Entre as principais posições, o presidente do PSB, partido do atual vice-presidente Geraldo Alckmin, divergiu do PT acerca do processo eleitoral e do próprio governo Maduro, compreendendo-o enquanto representante de um regime autoritário. A Ministra do Planejamento Simone Tebet, ao ser indagada sobre o tem, expôs ressalvas ao governo Maduro. Classificando como um governo que ‘não respeita os direitos fundamentais, os direitos da liberdade de expressão, o direito do cidadão poder ir e vir’ (Infomoney, 2024), o discurso da emedebista reforçou as diferenças no governo em relação ao tema, aumentando os desafios do Executivo em buscar uma posição concreta diante da situação. Mesmo o recém-filiado ao PT e líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, expõe uma posição oposta diante da nota da Executiva do Partido. Compreendendo um quadro de ausência generalizada de legitimidade entre os principais atores da política venezuelana, o parlamentar classificou a eleição como “sem indoneidade” (Behnke, 2024).

Em nova nota a imprensa, dessa vez de forma conjunta aos governos de México e Venezuela, o Brasil retomou o compromisso na defesa de uma solução institucional e pacífica para a atual fase da crise venezuelana, apontando para a necessidade de uma divulgação pública dos dados de votação (Brasil, 2024b). Numa costura internacional com outros dois Estados capazes de exercer alguma mediação no processo, Brasília não fechou as portas do diálogo com os atores em conflito no país vizinho. Apesar disso, as pressões em diferentes esferas continuam a crescer diante do acirramento da conjuntura política venezuelana, da ausência de uma ação efetiva das autoridades eleitorais em divulgar os resultados detalhados e da ofensiva da oposição venezuelana em garantir legitimidade internacional ao mais recente movimento de Edmundo Gonzalez em se autodeclarar como vencedor do pleito.

No tabuleiro doméstico, as diferenças destacadas no seio do governo evidenciam, ao menos por enquanto, a reduzida margem de manobra no processo de avaliação e tomada de decisão acerca dos rumos da crise. Mesmo diante da busca de uma condição mediadora entre governo e oposição na Venezuela, a existência de diferentes juízos de valor acerca da situação institucional do país e das possíveis saídas políticas em favor de uma estabilização comprometem uma intervenção diplomática coesa por parte do Brasil, capaz de reunir ou neutralizar tal quadro doméstico de formulação e implementação. Às vésperas de um processo eleitoral, ainda que restrito às disputas municipais, e frente à composição fluída da base política no legislativo, a interação entre o Brasil e a crise venezuelana poderá ter importantes reflexos na política doméstica, especialmente em uma eventual extensão temporal de tal processo.

Do ponto de vista internacional, diante dos acenos brasileiros em reativar diferentes mecanismos de integração regional, o enfrentamento aos dissensos existentes na esfera sulamericana acerca dos rumos da Venezuela atribui ao Brasil certo papel ambíguo. Se por um lado, a permanência de contatos com o governo Maduro credencia o país na interlocução internacional da crise, aspecto evidenciado na formalização das representações diplomáticas de Peru e Argentina na Venezuela, por outro expõe o nível de distanciamento entre a atual conjuntura e o horizonte de formação de uma possível comunidade sólida de interesses. Nesse sentido, a gravidade da situação venezuelana e seus desdobramentos internacionais chamam atenção quanto aos limites de ação estratégica do Brasil em seu entorno, ainda muito submetido às incertezas de um período de transição que concilia o reforço de estruturas de desigualdade e a sombra do autoritarismo com a perspectiva, mesmo que genérica, de retomada de uma era de crescimento e diálogo entre os pares do subcontinente.

Considerações Finais

Protagonista no noticiário sobre a PEB, as expectativas e pressões no Palácio do Planalto quanto à definição de uma política para a crise venezuelana chamam atenção para o desafio de equilíbrio entre diferentes fatores de ordem doméstica e sistêmica que condicionam tanto as margens de atuação do Brasil quanto as possíveis implicações em seu envolvimento diante do tema. Além de reforçar os desafios estruturais que envolvem as perspectivas de reconstrução da inserção internacional do país após quase uma década de declínio, as particularidades envolvendo a ressonância das controvérsias sobre a situação política no país vizinho no seio de diferentes atores da sociedade brasileira reduzem as margens de manobra diante de um nível de incerteza reforçado com o aumento das tensões em solo venezuelano e em nível regional.

No difícil equilíbrio entre os possíveis ônus colhidos na política doméstica e as potencialidades geopolíticas envolvendo a participação brasileira no episódio, a questão venezuelana testa os limites e as possibilidades de ação do terceiro governo Lula na condução das relações exteriores, num processo que exige diferentes níveis de articulação política e habilidade diante de um tema que se encontra presente na mesa e nos sofás dos brasileiros. Aguardemos os próximos capítulos.

Mateus José da Silva Santos

Doutorando em História pelo PPGH-UFPel . Bolsista CAPES. Membro Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LABGRIMA).

Referências

BEHNKE, Emilly. Recém-filiado, Randolfe diverge do PT e diz que eleição venezuelana foi “sem idoneidade”. CNN Brasil. 30/07/2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/recem-filiado-randolfe-diverge-do-pt-e-diz-que-eleicao-venezuelana-foi-sem-idoneidade/. Acesso em: 06 ago. 2024.

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_______ [B]. Ministério das Relações Exteriores. Nota à imprensa nº 347. Eleições Presidenciais da República Bolivariana da Venezuela — Comunicado Conjunto de Brasil, Colômbia e México.  Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/eleicoes-presidenciais-da-republica-bolivariana-da-venezuela-2014-comunicado-conjunto-brasil-colombia-e-mexico. Acesso em: 06 ago. 2024.

CASARÕES, Guilherme. Eleições, Política Externa e os Desafios do Novo Governo Brasileiro. Pensamiento Propio, n. 24, 2019. Disponível em: <https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/eleicoes.pdf >. Acesso em: 06/01/2023.

INFOMONEY. Após Lula defender regime de Maduro, Tebet diz que Venezuela não é democracia. 30/06/2023. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/apos-lula-defender-regime-de-maduro-tebet-diz-que-venezuela-nao-e-democracia/. Acesso em: 06 ago. 2024.

JAKOBSEN, Kjeld Aagaard. Desventuras de alguns críticos da Política Externa do Governo Lula. Lua Nova, São Paulo, n. 89, p.275-295, 2013.

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PUTNAM, Robert D. Diplomacia e política doméstica: a lógica dos jogos de dois níveis. Tradução de Dalton L. G. Guimarães, Feliciano de Sá Guimarães e Gustavo Biscaia de Lacerda. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 147 – 174, jun. 2010.

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