Caso o acordo UE-Mercosul não seja renegociado, as atuais cláusulas podem atrapalhar o desenvolvimento justo e sustentável, não apenas do Brasil, mas da América Latina como um todo
Em julho, ocorreu em Bruxelas, a terceira Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e a União Europeia. O principal objetivo do evento residia na renovação e consolidação das relações dos blocos econômicos. As discussões realizadas abrangeram tópicos concernentes ao comércio, à pesquisa e educação, à segurança e ao enfrentamento das alterações climáticas. Dentre as discussões, o acordo comercial Mercosul-UE, envolvendo compras públicas, foi um dos assuntos que causou muita controvérsia. O presidente brasileiro, afirmou que almeja a celebração de um acordo que salvaguarde a capacidade das partes envolvidas em lidar com os desafios tanto presentes quanto futuros. Tal declaração foi feita tendo em base o recebimento de uma carta lateral da União Europeia contendo disposições adicionais que não fazem parte do acordo principal. No mês anterior, Lula criticou ferrenhamente os termos encaminhados pelo bloco europeu ao processo de acordo, interpretando as adições como uma ameaça à concretização de um acordo entre as partes.
De acordo com alguns críticos, apesar da União Europeia ter lançado em 2021 o “European Green Deal” [1], as demandas do bloco estariam associadas às iniciativas protecionistas, impulsionadas pela necessidade de preservar o emprego dos cidadãos europeus e sustentar um crescimento econômico que vem diminuindo, em parte devido à Guerra na Ucrânia. Dentre os países da União Europeia, há divergências quanto ao tratado, mas ele parece figurar como uma prioridade.
A resistência mais acentuada parece vir da França: recentemente, a mídia francesa relatou que associações de produtores rurais têm exercido pressão sobre o presidente Emmanuel Macron, exigindo que ele não assine o tratado, que, na perspectiva dessas entidades, poderia comprometer a soberania alimentar do país ao implicar na eliminação substancial das tarifas alfandegárias e na abertura do mercado a produtos estrangeiros.
Macron e o chanceler alemão, Olaf Scholz, discordam das afirmações de Lula, isto é, que a Europa esteja fazendo ameaças ao Brasil ou ao Mercosul. O presidente francês afirmou que a França quer a abertura das economias, mas que as relações comerciais precisam estar coerentes com a agenda climática do bloco, uma vez que os regulamentos que são impostos em termos de clima e biodiversidade para os agricultores europeus devem ser respeitados para que a concorrência seja justa.
Todavia, um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), recomenda cautela, pois a economia brasileira pode não alcançar os benefícios esperados com o acordo. A abertura do mercado para empresas estrangeiras, principalmente em condições de igualdade para empresas locais nas compras públicas, pode implicar em atraso aos planos de reindustrialização nacional, que é uma das prioridades do atual governo. Apesar da economia brasileira ter vantagens comparativas em agricultura e mineração, a União Europeia as possui em bens manufaturados. Logo, tratativas de livre-comércio entre os blocos tendem a salientar esse padrão de especialização das economias. O benefício para a economia nacional reside no aumento do acesso aos mercados europeus para a exportação de commodities, bem como na redução dos custos de insumos e bens de consumo industriais. No entanto, essa perspectiva positiva é contrabalançada pela possibilidade de um aprofundamento do processo de desindustrialização.
O que prevê o acordo Mercosul-UE?
A questão das compras governamentais desempenha um papel de extrema importância para o Brasil nas tratativas do acordo Mercosul-UE, acordado em 2019 durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL). É imprescindível enfatizar que os vinte e nove textos que compõem o acordo estão atualmente sujeitos a uma minuciosa revisão de natureza legal e formal. Consequentemente, os referidos textos não possuem validade jurídica neste estágio.
Na seção sobre compras públicas, o acordo estipula que ao assumirem obrigações relacionadas aos mercados de compras governamentais, os blocos devem promover maior competição e acesso em licitações domésticas e garantir que os fornecedores de bens e serviços de cada lado recebam tratamento equivalente nas licitações realizadas pelo outro bloco.
O documento também engloba a obrigação de compartilhar informações acerca da potencial ampliação do acesso recíproco aos mercados de compras públicas em benefício de micro e pequenas empresas. Entretanto, o texto não apresenta qualquer cláusula que assegure que os governos nacionais ou locais possam conceder preferência em licitações a empresas de pequeno porte ou a empresas pertencentes a minorias, tampouco estabelece a disposição de contratar residentes locais. Na verdade, a formulação proposta para os artigos 2(t) e 11 vedaria expressamente essa opção. Dentre as medidas previstas, estão novas regras para compras e serviços governamentais, que permitiriam a participação de grandes empresas em licitações com financiamento público, sem a obrigação de adquirir produtos de agricultores locais ou realizar qualquer contribuição para o desenvolvimento local.
No contexto brasileiro, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) estabelece uma exigência de que, no mínimo, 30% dos alimentos empregados no programa sejam oriundos de agricultores familiares locais. Adicionalmente, a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado como parte da campanha nacional Fome Zero, visa adquirir alimentos e sementes diretamente de agricultores familiares, com o propósito de abastecer programas sociais e estabelecer estoques públicos de alimentos. Nesse âmbito, cada agricultor tem permissão para vender um valor máximo de R$ 20.000,00. Tais organizações têm relevância ímpar, dado que, no contexto do Brasil, a agricultura familiar representa uma significativa fatia de 74% dos empregos rurais e contribui com 33,2% do Produto Interno Bruto (PIB) agrícola.
O acordo vai abrir espaço permanente para grandes empresas europeias participarem de importantes programas de compras públicas no bloco, o que pode ser um problema para políticas públicas bem-sucedidas no Brasil e no Mercosul para reduzir a fome e de criação de mercado para agricultores familiares. Fundamentalmente, esse aspecto do acordo vai considerar ilegal, (tirando as exceções previstas) cláusulas de compras públicas que beneficiem as contratações e o desenvolvimento locais.
A importância das compras públicas
O sistema do Painel de Compras ainda mostra que entre janeiro de 2022 e agosto de 2023, microempresa e empresa de pequeno porte representam 70,59% de todas as compras homologadas pelo governo. Além disso, as compras governamentais representam por volta de 12% a 15%do PIB, segundo o IBGE. As principais compras consistem em alimentos para refeições em instituições públicas de ensino e de itens para o SUS (Sistema Único de Saúde) e equipamentos tecnológicos.
Tendo em vista esses números, o presidente afirmou que compras governamentais são “um instrumento de desenvolvimento interno” para pequenas e médias empresas e que o Brasil não pode abrir mão desse potencial. Certos setores são essenciais para garantir a soberania do país, como o setor de itens médicos e hospitalares. Logo, abrir mercado para fornecedores externos do ramo pode perpetuar a dependência de produtos importados e enfraquecer o surgimento de empresas locais. A demanda de itens deste segmento pelo Sistema Único de Saúde via compras públicas estimula o crescimento do setor, auxiliando o estabelecimento e a expansão de indústrias nacionais do ramo. As aquisições governamentais funcionam como engrenagens nas quais o governo pode implementar políticas públicas focando em metas de desenvolvimento e redução de desigualdades.
Considerando o desenvolvimento de setores estratégicos, a reindustrialização e a autonomia das pequenas empresas, o presidente aproveitou o envio da contraproposta ao adendo do acordo, para rever o acesso da UE às compras governamentais, pois ela quer o cumprimento da agenda ambiental dos países do bloco sul-americano sob pena de sanções comerciais.
Apesar dos Ministérios do Planejamento e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior serem contra a renegociação do acordo, a ala que defende alterações – composta pela assessoria internacional e a Casa Civil, além dos ministérios da Gestão e da Saúde – afirma que a Nova Lei de Licitações está subordinada aos termos do acordo. Os ministérios que são contra os reajustes do acordo alegam que, com a Reforma Tributária [2], as empresas brasileiras poderão ser mais competitivas.
Novas tratativas por parte do Brasil
A contraproposta brasileira pode ser resumida em três itens: “Off-sets”, cotas para pequenas e médias empresas e a exclusão da área envolvendo saúde.
Um dos novos termos seria o desenvolvimento de uma política de contrapartidas e margens de preferência, que se estenderia tanto à UE como a outros parceiros internacionais. A sugestão envolveria a estipulação de uma margem de até 20% no preço do bem ou serviço em benefício das empresas brasileiras, o que implicaria na possibilidade de serem selecionadas em licitações, mesmo que seus preços sejam até 20% mais altos que os das empresas europeias concorrentes.
Esta política consiste em compensações como transferência de tecnologia ou de subcontratação de empresas nacionais para recuperação de áreas degradadas, política conhecida como “Off-sets”. Logo, o artigo 11 do acordo, deveria ser revisto, uma vez que o mesmo proíbe terminantemente qualquer tipo de compensação.
Sobre as cotas, o governo daria protagonismo à Nova Lei de Licitações, que prevê regime diferenciado de contratação no limite de até 25% em aquisições, permitindo o desenvolvimento das pequenas e Médias Empresas. Em virtude dos fatos mencionados anteriormente, o governo deseja excluir a participação de empresas estrangeiras em licitações envolvendo a área de saúde, tendo em vista a estratégia de alcançar a soberania nacional.
O Acordo dificulta a priorização de empresas locais pelos governos ao adquirir produtos ou serviços, com o objetivo de incentivar o mercado interno. No Brasil, as compras públicas são consideradas um mecanismo crucial para fomentar a indústria local, tornando-se essenciais para articular investimentos em infraestrutura e sustentar a política industrial do país. Portanto, o acordo requer ajustes para garantir o desenvolvimento das empresas nacionais, especialmente as de pequeno e médio porte.
O Brasil tem condições de mostrar que pode cumprir a agenda sustentável através do modelo de agricultura baseada em inovação e pesquisa com seus planos de agricultura de baixa emissão de carbono. A presença da figura íntegra de Marina Silva como Ministra do Meio Ambiente no governo desperta expectativas de uma conduta alinhada com a preservação do meio ambiente. Caso o acordo UE-Mercosul não seja renegociado, as atuais clausulas podem atrapalhar o desenvolvimento justo e sustentável, não apenas do Brasil, mas da América Latina como um todo. É imperativo que nenhum acordo restrinja a prerrogativa estatal de assegurar que os recursos públicos sejam alocados de modo a beneficiar as economias locais.
Georgia Rodrigues Ferreira da Silva é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação Agropecuária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
[1] Acordo que entre diversas iniciativas, objetiva impedir a entrada no bloco europeu, commodities agrícolas oriundas de áreas florestais desmatadas ou degradadas.
[2] Proposta do Governo Federal para simplificar o sistema tributário, extinguindo tributos como o PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS e substituindo-os por um Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS). O objetivo é simplificar o sistema tributário para impulsionar a economia nacional.
https://diplomatique.org.br/o-papel-das-compras-publicas-na-protecao-a-industria-nacional/