Integração: faltou combinar com a burguesia

Como avançar na autonomia do continente se a burguesia brasileira, mesmo se apropriando dos ganhos das exportações para os mercados regionais, sabota o aprofundamento dessa mesma integração?

O projeto de integração regional da América Latina vive seu momento mais difícil. Entende-se, aqui, integração não como simples liberalização dos fluxos de comércio e de capitais, e sim como a construção de um espaço de autonomia geopolítica e de articulação de políticas públicas para o desenvolvimento econômico e social. É esse o sentido adotado por grande parte dos governos latino-americanos desde o início da década passada, marcada por iniciativas como a Unasul, a Celac, a Alba e a ampliação do Mercosul.

O impulso de convergência regional que se expressa nesse conjunto de siglas perdeu força nos anos recentes e exibe na atualidade sinais claros de retrocesso, associados a mudanças no cenário econômico global e à ascensão de forças políticas neoliberais nos países mais relevantes para o processo integracionista.

O Brasil reduziu seu protagonismo regional a partir da crise econômica e do impasse político que tem como centro a tentativa de afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Na Argentina, a eleição de um presidente direitista, Mauricio Macri, encerra um ciclo em que a busca da integração foi uma prioridade do Estado, sob o kirchnerismo. Na Venezuela, a ampla vitória da oposição conservadora nas eleições legislativas de dezembro de 2015, num cenário de crise econômica que o próprio presidente Nicolás Maduro definiu como “catastrófica”, põe na ordem do dia o risco de restauração do modelo oligárquico, neoliberal e pró-imperialista.

Brasil, Argentina e Venezuela se uniram, em 2005, para sepultar o projeto estadunidense da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), optando por uma integração regional voltada para a superação do papel subalterno das nações latino-americanas perante a hegemonia dos Estados Unidos. Agora, vivenciam a ascensão de atores políticos abertamente contrários aos objetivos e concepções que vinham norteando a integração regional.

Diante do ainda incerto futuro político da América do Sul, é prematuro falar em “fim do ciclo progressista”. Mas estamos, sem dúvida, atravessando um período de “mudança dos ventos” em que o avanço da direita é acompanhado, no âmbito econômico, pela inversão do ciclo de altos preços das commodities agrícolas e minerais que, na década anterior, viabilizaram a conquista de uma inédita autonomia em política externa e, no plano doméstico, a aplicação de amplos projetos sociais em benefício das maiorias desfavorecidas.

A avaliação das conquistas e dos limites do projeto integracionista faz parte desse cenário de disputa política. Em cada país, as viúvas da Alca utilizam o controle oligopólico da mídia para vender a ideia do “fracasso” da integração. No Brasil, está em curso uma intensa campanha em favor do rebaixamento do Mercosul, que deixaria de ser uma união aduaneira a fim de permitir que os países do bloco possam negociar livre e separadamente acordos de livre comércio com os EUA, a União Europeia e outras potências econômicas.

Essa retórica esconde que o principal obstáculo ao acordo que vem sendo negociado há anos pelo Mercosul com a UE é o protecionismo agrícola dos europeus. Ignora também o impressionante desempenho do comércio exterior brasileiro no cenário regional sul-americano. Pesquisas sobre o tema mostram que, em 2002, o Brasil exportava US$ 4,1 bilhões para o Mercosul. Em 2013, já com a Venezuela no bloco, as nossas exportações saltaram para US$ 29,53 bilhões — um crescimento de 617%, num período em que as exportações mundiais cresceram 183%.

 

Mercosul

 

Em outro plano de avaliação, vale a pena ressaltar o papel da Alba, uma iniciativa desprezada pelas análises convencionais. Esse projeto, hoje paralisado pela crise venezuelana, garantiu a sobrevivência de pequenas nações caribenhas em um período de preços altos do petróleo e viabilizou a Missão Milagre, em que centenas de milhares de pessoas pobres, abandonadas pelos serviços de saúde privatizados, puderam fazer cirurgias gratuitas nos olhos, graças aos médicos cubanos.

Muito mais poderia ser mencionado sobre os avanços da integração, como a construção de rodovias e de gasodutos binacionais, dando os primeiros passos para a superação das barreiras físicas entre nossos países. Mas é importante realçar também os limites estruturais do projeto integracionista – as contradições e dilemas que já se faziam presentes muito antes das atuais reviravoltas.

A meta da integração sempre conviveu com orientações políticas totalmente divergentes. Enquanto um grupo de países fortalecia o papel do Estado nas decisões econômicas e priorizava a melhoria das condições sociais, outro grupo mantinha o neoliberalismo e a aposta nos acordos de livre comércio.

Mas o problema vai muito além da divisão do espaço regional em um eixo esquerda/direita. O fundamental é que os governos progressistas foram incapazes de superar a inserção econômica subalterna, com base no rentismo mineral e petroleiro e no agronegócio exportador. Daí resulta que grande parte da renda gerada pelos produtos primários (inclusive da parte que foi recuperada soberanamente pela nacionalização dos recursos estratégicos) vai parar nas mãos do setor privado. Esses empresários canalizam o dinheiro para uma atividade econômica importadora ociosa e especulativa, em que as divisas obtidas através da exportação se externalizam sem gerar qualquer retorno para o desenvolvimento.

A busca da autonomia regional ocorre nos marcos do capitalismo dependente, numa situação em que as classes dominantes de cada país preservam sua capacidade de tomar decisões econômicas estratégicas. Conforme indaga o economista argentino Julio Gambina, “quem decidiu que os países do Mercosul sejam em conjunto o principal produtor e fornecedor mundial de soja? É o resultado de uma decisão planificada soberanamente ou produto da estratégia de um punhado de empresas transnacionais da alimentação e da biotecnologia que manejam o pacote tecnológico do atual modelo produtivo?” Da mesma forma, segundo a argumentação de Gambina, o grosso do intercâmbio de bens dentro do Mercosul se constitui de produtos da indústria automotriz, que prefere importar peças de outras partes do mundo e montá-las nos países do Cone Sul por preços inferiores à média internacional a produzi-las na nossa região.

O império da soja, os privilégios concedidos à mineração a céu aberto (cujo preço se viu agora no Brasil com a tragédia de Mariana) e o papel periférico da indústria regional nas cadeias produtivas globais, tudo isso corresponde, segundo Gambina, às opções das classes dominantes locais, cujos interesses bloqueiam o projeto original de uma integração regional autônoma, voltada para a emancipação.

Não é de se estranhar, portanto, a relutância do Brasil em assumir o papel de liderança indispensável para tornar realidade os principais projetos integradores, como o Banco do Sul. Como avançar na autonomia do nosso continente se a burguesia brasileira, ao mesmo tempo em que se apropria com gosto dos ganhos das exportações para os mercados regionais, utiliza todos os seus recursos de poder para sabotar o aprofundamento dessa mesma integração?

Desde o início, convive-se com uma tensão. De um lado, governos neodesenvolvimentistas conscientes dos problemas da primarização da economia e da necessidade da mudança do modelo produtivo, com foco na elevação do valor agregado e no avanço tecnológico. Do outro lado, empresários das finanças, indústria, comércio e agricultura fieis à sua vocação histórica de súditos do imperialismo. Como levar adiante a emancipação da América Latina se os principais atores aos quais foi entregue essa grandiosa tarefa – a burguesia de cada um dos nossos países – têm como interesse essencial a manutenção dos atuais laços de dependência?

Um pequeno detalhe ilustra a gravidade desse paradoxo. No Brasil, “locomotiva” da integração, o porta-voz mais visível dos chamados “mercocéticos”, defensores do rebaixamento do Mercosul e da adesão à globalização neoliberal, é o ex-diplomata Rubens Barbosa, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Não é um latifundiário, não é um banqueiro, não é um típico representante da “burguesia compradora” das nações periféricas, e sim um intelectual orgânico de um empresariado com raízes históricas na produção industrial. Hoje o que restou de uma burguesia mais ou menos “nacional” ou “interna” prefere vender suas empresas e se conformar com o papel de sócio menor das transnacionais a trilhar um caminho alternativo em dissonância com as diretrizes de Washington.

O projeto integracionista, nesses moldes, lembra a lendária anedota em que o técnico da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1958, Vicente Feola, apresentou aos jogadores, logo antes de um jogo com a União Soviética, uma tática que, segundo ele, levaria o time a uma vitória tranqüila. Em determinado instante, Mané Garrincha teria argumentado: “Tudo isso é fácil. Mas o senhor já combinou com os russos?” Esse é o drama da integração regional. Faltou combinar com a burguesia.

Igor Fuser é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo (SP). Tem doutorado em Ciência Política pela USP e mestrado em Relações Internacionais pelo Programa Santiago Dantas, da Unesp, Unicamp e PUC-SP. Publicou, entre outros, os livros “Petroleo e Poder – O envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico” (Editora Unesp, 2008) “Energia e Relações Internacionais” (Saraiva, 2013) e “As Razões da Bolívia – Dinheiro e poder no conflito com a Petrobras pelo controle do gás natural” (Editora UFABC, 2015).

Publicado originalmente no Jornal dos Economistas.

Comments

comments

Translate »