Por Natália Flores
As doenças crônicas e a multimorbidade estão se tornando mais comuns, principalmente nas populações de países em desenvolvimento. No Brasil, no mínimo, um em cada cinco adultos e metade dos idosos convivem com duas ou mais condições de saúde ao mesmo tempo, segundo dados de pesquisas regionais e a Pesquisa Nacional de 2013. Mais do que outros indivíduos, eles precisam de um atendimento em saúde singularizado, pouco abordado pelo modelo de cuidado ensinado e praticado na maioria das faculdades de saúde do país.
“Tanto a formação como a própria evolução do conhecimento nas áreas de saúde se dá em torno de doenças isoladamente, desconsiderando as características individuais e, consequentemente, também a multimorbidade”, comenta o pesquisador Daniel Knupp Augusto, médico e diretor acadêmico do Programa de Educação Médica Continuada em Medicina de Família e Comunidade (PROMEF) da Editora Artmed. Especialista no tema, Daniel explica que o modelo biomédico tradicional que predomina na formação de médicos e enfermeiros não é adequado para tratar de pessoas com múltiplas condições de saúde.
A abordagem médica tradicional se foca no tratamento de doenças singulares do indivíduo, a partir de um diagnóstico clínico e, muitas vezes, do uso de medicamentos. Existem protocolos padronizados de tratamento para tratar diabetes, hipertensão e outras doenças cardíacas de forma isolada. Que protocolo utilizar quando um paciente apresenta mais de um problema de saúde? Como lidar quando uma condição de saúde interfere na outra?
Crédito/Foto: Pierre Ascobas (Unsplash)
Segundo relatório da Academy of Medical Science de 2018, as combinações existentes entre as condições de saúde dos indivíduos com multimorbidade são bastante heterogêneas, o que torna seu tratamento complexo. O relatório ressalta que, em alguns casos, as condições coexistentes são relacionadas e tendem a demandar tratamentos parecidos, enquanto que, em outros, parecem não estar relacionadas entre si e, por isso, requerem tratamentos diferentes. Cada caso é um e exige um profissional atento para escolher o manejo mais adequado.
Para a pesquisadora Laura Camargo Macruz Feuerwerker, da Faculdade de Saúde Pública da USP, os perfis de adoecimento são muito complexos para serem tratados apenas pela abordagem médica. “Existe uma singularidade na maneira como diferentes pessoas vivenciam esses processos de adoecimento crônicos. Assim, a resposta é muito limitada quando essas doenças são abordadas de forma pontual, padronizada e descontextualizada”, comenta.
No Guia de Diretrizes de Cuidado da Pessoa com Doenças Crônicas, de 2013, a equipe do Ministério da Saúde (MS) reconhece que o modelo vigente de atenção à saúde não acompanhou as mudanças epidemiológicas da população brasileira e, por isso, “não tem obtido sucesso em suas condutas por não conseguir chegar ao singular de cada indivíduo”. Para Daniel, além de fortalecer o modelo de atenção primária no SUS, reverter essa lógica implica formar profissionais de saúde com um olhar mais humanizado — o que só seria conseguido a partir de uma revisão da estrutura curricular dos cursos de saúde.
A mudança nos currículos de cursos de saúde não é uma discussão nova no ambiente acadêmico da área. Mais de 70% das publicações sobre trabalho e educação entre 1990 e 2010 abordam o tema da formação de profissionais de saúde, segundo levantamento realizado por pesquisadores da UFBA. Os desafios são complexos e envolvem, entre outras questões, adaptar os currículos dos cursos à Lei de Diretrizes Curriculares Nacionais, vigente desde 2001. Essa lei define, por exemplo, que os princípios e diretrizes do SUS — como a universalização e equidade no acesso à saúde e a integralidade no tratamento ao paciente — devem ser elementos fundamentais na formação dos profissionais de saúde.
Poucos são os cursos universitários que conseguem aplicar os princípios do SUS na prática. Em análise publicada em 2013 na revista Ciência & Saúde Coletiva, o pesquisador Naomar de Almeida Filho pontua que predominavam nos cursos de nível universitário da saúde currículos fechados com foco na especialidade sem permitir práticas interdisciplinares.
Outro estudo feito entre 2015 e 2016 pela UERJ descobriu que a estrutura curricular da maioria dos 94 cursos de graduação em enfermagem investigados se centrava em disciplinas fragmentadas nos ciclos básico e profissionalizante, o que destoa da perspectiva de integralidade preconizada pelo SUS. Ao mesmo tempo, essas faculdades incentivam o desenvolvimento de competências nos seus alunos ligadas a ações de promoção e prevenção da saúde, ponto-chave da atenção básica. Existe, então, alguma esperança neste tipo de formação.
Onde precisamos avançar?
Os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que um ensino capaz de formar profissionais de saúde capacitados para lidar com os desafios da multimorbidade precisa conter três aspectos fundamentais: uma abordagem centrada na pessoa, ser multidisciplinar e multiprofissional. A partir disso, o ensino pode formar profissionais que tenham uma visão ampliada de saúde.
“A abordagem centrada na pessoa levaria em conta o contexto familiar do paciente, seus valores culturais e preferências pessoais”, explica Daniel. Para isso, o profissional de saúde precisa desenvolver a habilidade de escutar o seu paciente, entendendo seu contexto de vida, suas angústias e seus limites na hora de aderir a algum tratamento. Essa escuta ampliada, segundo os especialistas, está em falta na prática da maioria dos profissionais de saúde.
Para Elaine Thumé, pesquisadora e professora de enfermagem da Ufpel, o grande desafio da formação de profissionais de saúde é migrar de um olhar apenas clínico, focado no indivíduo, para um olhar da saúde coletiva. O conhecimento clínico é importante, mas, segundo ela, deve ser aliado a um conhecimento sobre o paciente no seu contexto. “Está faltando olhar para a estrutura social que influencia o indivíduo. É no coletivo que as pessoas tomam decisões com relação à sua saúde e definem padrões de comportamento”, ressalta. Essa perspectiva implica em ter uma visão ampliada que entende que a saúde inclui trabalho, moradia, transporte e acesso a lazer.
Na avaliação de Laura, apesar do conceito de saúde ampliada fazer parte da teoria das faculdades de saúde, são poucos os cursos que conseguem colocar em prática uma abordagem que vai além da avaliação biológica do indivíduo. Para avançar nesse sentido, Elaine afirma ser preciso integrar disciplinas de ciências sociais e humanas, como sociologia e filosofia nas grades curriculares dos cursos de saúde — além de preparar o corpo docente para refletir com seus alunos sobre as condições de vida das pessoas atendidas por eles.
Outro ponto primordial ressaltado pelas pesquisadoras é o investimento em práticas integradas entre cursos de enfermagem, medicina e outros já nos primeiros semestres para que os alunos aprendam a trabalhar em grupo, respeitando as expertises de cada profissão. Laura acentua que o foco na experimentação é uma maneira de ampliar o olhar sobre a saúde. “É muito importante existirem espaços de convivência e manejo compartilhado entre as profissões para que esse processo seja incorporado na prática”.