Identidade racial branca e eleições: reflexões sobre privilégios

Mari Cristina de Freitas Fagundes

 As discussões sobre representatividade nos pleitos eleitorais enfocando o marcador raça são recorrentes atualmente, tendo em vista a baixa representatividade de negros e negras nas cadeiras legislativas. Esse debate joga luz sobre o racismo que estrutura a sociedade brasileira e, consequentemente, sobre os privilégios brancos daí resultantes. Desse modo, o propósito do ensaio é discutir a branquitude e seus privilégios no âmbito eleitoral, tendo como questão disparadora a seguinte pergunta: como o privilégio branco é ilustrado nas campanhas eleitorais?

Para o desenvolvimento do trabalho nos pautamos na revisão bibliográfica, mobilizando os autores e autoras do campo das relações raciais, assim como a publicação realizada pelo Observatório da Branquitude, “As chances de ser eleito: branquitude e representação política” (2024), que além de nos mostrar os dados recentes sobre as disparidades entre não brancos e brancos no Congresso Nacional, demonstra que as chances de ser contemplado com os fundos partidários são mais altas para pessoas brancas.

Cabe destacar que a discussão sobre privilégio branco nas eleições voltou à cena política após a aprovação da Proposta de Emenda a Constituição 9/2023, conhecida como “PEC da Anistia”, a qual tem como objetivo isentar os partidos políticos que não cumpriram as cotas eleitorais para mulheres e negros nas eleições passadas (Agência da Câmara, online). Cabe destacar que a votação foi colocada às pressas em pauta por uma comissão especial, mas não chegou a ser votada, uma vez que a oposição barrou a discussão, justamente pela proximidade das eleições municipais de 2024.

Importante sinalizar que existem formas de financiamento eleitoral para todas as campanhas e é justamente nesse cenário que as desigualdades raciais e de gênero se aprofundam no contexto brasileiro. Tais financiamentos podem ser gerados a partir de investimentos públicos e privados. No que se refere ao financiamento público, dois são os principais:  Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) e Fundo Partidário (FP) (ODB, 2024). Segundo os dados do Observatório, recentemente, três mudanças significativas ocorreram no cenário brasileiro, fazendo com que os partidos políticos olhassem para raça e gênero de maneira diferenciada. Foram elas:

1º) A Emenda Constitucional 111 de 2021: essa emenda prevê a que a contagem de votos para mulheres e negros seja feita em dobro para o recebimento tanto do FEFC quanto do FP; 2º) a Emenda Constitucional 117 de 2022, a qual fixa a reserva mínima de 30% do FEFC e da parcela do FP para candidaturas femininas; 3ª) a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que determinou a distribuição dos dois fundos, assim como o tempo de propaganda eleitoral de forma proporcional para candidatos negros a partir das eleições de 2022 (ODB, 2024).

Bom, você pode estar se perguntando qual a relevância dessas divisões, especialmente, quando o texto constitucional (BRASIL, 1988) prevê a igualdade entre todos e todas no cenário brasileiro. É justamente aí que a discussão sobre privilégio branco se insere. À medida que o racismo constitui as relações sociais brasileiras de forma sistêmica, o outro lado dessa moeda é o constante privilégio de um outro grupo, de uma outra raça, qual seja: a branca. Quando falamos em raça, estamos nos referindo a uma construção social que, historicamente, gerou mais benefícios para a população branca.  Maria Cida Bento (2002, p. 45) destaca: “a escravidão envolveu apropriação indébita concreta e simbólica, violação institucionalizada de direitos durante 400 dos 500 anos que tem o país”.

Essa apropriação tanto simbólica quanto material é que chamamos de branquitude. Nas palavras de Lia Schucman (2012, p. 102): “[…] a branquitude se refere a um lugar de poder, de vantagem sistêmica nas sociedades estruturadas pela dominação racial. Este lugar é, na maioria das vezes, ocupado por sujeitos considerados brancos”. É nesse sentido que os dados do Observatório da Branquitude (ODB) pontuam que na contemporaneidade, mesmo com legislações condenando o racismo e estimulando políticas públicas e sociais direcionadas para a população não branca, há uma lacuna nos espaços de tomada de decisão quando miramos a população não branca.

Entre as informações do Observatório, verifica-se que muitas candidaturas de mulheres são consideradas “laranjas”, ou seja, muitas vezes consta o nome de mulheres que nunca participaram, de fato, do pleito eleitoral, servindo apenas para forjar um suposto cumprimento do previsto legalmente. Ainda dialogando com a pesquisa do ODB, ao analisar o percentual de deputados federais eleitos nos anos de 2018 e 2022, houve um aumento de candidatos autodeclarados pretos e pardos na eleição de 2022, porém, mesmo assim, a distribuição dos fundos partidários segue sendo em maior quantidade para homens brancos.

A despeito dos pequenos contrastes nos percentuais de concentração de receita por raça/cor nos dois anos, a análise sinaliza semelhante comportamento nas duas eleições: mais de 70% do financiamento dos candidatos eleitos se acumula para brancos [grifos nossos] (ODB, 2024, p. 17).

Interseccionando raça e gênero, homens brancos tiveram a maior representatividade (33,8%), seguidos de homens negros (30,2%), mulheres brancas (16,3%) e mulheres negras (18,1%). Em relação à distribuição de financiamento, homens negros e mulheres negras recebem valores menores em relação a homens brancos e mulheres brancas, respectivamente, o que dialoga com o privilégio branco antes referido.

Diante desses apontamentos, podemos perceber que mesmo em um país onde a maior parte da população de autodeclara negra – pretos e pardos – quando miramos os espaços de tomada de decisão há um abismo nessa representação, fazendo com que as instituições reflitam os interesses da branquitude. Com isso, cabe pontuarmos que para além da previsão legislativa, é fundamental que haja implementação efetiva das propostas que buscam criar políticas de ações afirmativas para negros e negras no contexto eleitoral brasileiro. Logo, a PEC da Anistia se aprovada representará um significativo retrocesso às ações que buscam ampliar a diversidade racial no legislativo brasileiro.

Referências

ODB. As chances de ser eleito: Branquitude e representação política. Observatório da Branquitude, set/2024. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1YUzWOWYnnBGZvivbZRGnxFm3fb34rcNu/view. Acessado em: setembro de 2024.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2012. 160f.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In.: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (org). Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.

AGÊNCIA DA CÂMARA.  PEC que anistia partidos por descumprimento de cotas pode ser votada em agosto. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1079864-pec-que-anistia-partidos-por-descumprimento-de-cotas-pode-ser-votada-em-agosto/. Acessado em: setembro de 2024.