Rafaél de Lima
Diante do resultado da nova Constituinte no Chile, rejeitado por ampla maioria das pessoas que foram as urnas, em 04 de setembro de 2022, com cerca de 80% de participação, a opção “rejeito” venceu com 61,8%, equivalente a 7,8 milhões de votos, contra 38,1% do “aprovo”, enquanto o “não” venceu em todos os estados e em 338 distritos chilenos, o “sim” foi maioria em apenas oito. Mas a principal indagação que fica é: o Chile não quer uma nova Constituinte ou o Chile não quer essa que foi posta em votação. Lembrando que a nova Carta Magna foi elaborada em resultado a um plebiscito de 2020 onde 78% dos eleitores votaram pela elaboração de um novo documento, fruto das reivindicações e protestos que tomaram o país em 2019, deixando 23 mortos, além de milhares de feridos e detidos, onde uma multidão foi as ruas pedindo melhores condições de vida.
Elaborada durante quase dois anos, por 154 representantes paritariamente divididos entre homens e mulheres a nova Constituição teve como base pilares que reúne elementos fundamentais e normas relevantes como democracia; inclusão; tradição institucional; garantias de direitos; liberdade; igualdade de gênero; proteção da natureza e do meio ambiente; regiões; projeção futura e economia responsável. Com 388 artigos norteados por ampliar o papel do estado em políticas básicas e fundamentais para a população chilena, de forma inédita a Constituinte abordou temas como o direito para as mulheres, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, povos e nações indígenas e pessoas de diversidade e dissidência sexo genéricas.
Analistas apontam que o Chile quer uma nova Constituinte, mas não essa que foi proposta, vários casos polêmicos na elaboração da nova Carta e a queda na popularidade do atual Presidente contribuíram para a derrota na votação. Mas a indagação que fica é porque uma nova Constituição que fala em direitos sociais para todos, que fala em ecologia, que fala na questão dos povos indígenas de forma muito clara, que teria a primeira lei de paridade entre homens e mulheres em todos os organismos governamentais foi rejeitada por ampla maioria.
Se a “aprovação” vencesse, a nova Constituição entraria em vigor imediatamente e à medida que forem criados os novos órgãos que ela contempla, como a Agência Nacional de Águas ou a Câmara das Regiões, que substituiria o Senado, mas diante deste resultado o Chile se encontra em uma situação complicada, porque a constituição atual, que seguirá vigente têm desaprovação de 78% da população que votou em 2020 por um novo documento, e a que foi posta em prova foi rejeitada por 62% da população que foi as urnas, o que deixa o Chile em um “limbo” constitucional, que torna mais grave a situação do atual governo de Gabriel Boric.
Podemos tentar analisar as principais alterações que a nova Carta estabelecia, pontos mais polêmicos e de discussão e, tentar entender o que levou os chilenos a rejeição. Foi a primeira vez no Chile e no mundo que um grupo com o mesmo número de homens e mulheres escreveu uma Constituição, essa paridade estava refletida na proposta com a ideia de uma “democracia paritária”, onde homens e mulheres dividiriam igualmente as vagas nos órgãos governamentais e ainda propunha o incentivo disso também em âmbito privado. O documento em vigor não aborda nada na questão de gênero e paridade, aliás a redação original trazia “os homens nascem livre e iguais em direito”, e só graças a uma reforma constitucional foi alterado a palavra homens para pessoas.
A atual Constituição não menciona povos nativos ou indígenas, em uma enorme mudança o novo projeto estabelecia o Chile como um “Estado plurinacional e intercultural”, reconhecendo 11 povos e nações. Também estabelecia Autonomias Regionais Indígenas com autonomia política, e estes deveriam ser consultados sempre que tivesse discussões que afetassem seus direitos. Isso aprofunda a importância da plurinacionalidade mudando a relação da república chilena com os povos indígenas e também como ela se vê.
Outro ponto bastante discutido foi quanto ao direito a “maternidade e aborto voluntário”, a atual Constituição protege explicitamente “a vida do nascituro”, a proposta de lei fundamental reconheceu o exercício livre, autônomo e não discriminatório dos direitos sexuais e reprodutivos e estabelece que o Estado deveria garantir as condições para a gravidez, parto e maternidade voluntárias e protegidas e para a interrupção voluntária da gravidez.
O novo documento constitucional descreveu o Chile como um “Estado social e democrático de direito” que deveria fornecer bens e serviços para garantir os direitos do povo, a Constituição vigente, por outro lado, estabelece que o Estado deve “contribuir para a criação das condições sociais”. A Constituição de 1980 afirma ainda que se prescinde do Estado sempre que o setor privado possa exercer uma atividade. Agora, afirma-se com força que é dever do Estado se preocupar com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho.
No caso das aposentadorias, ambas as Constituições consagram o direito à segurança social. A atual indica que o Estado deve garantir benefícios básicos uniformes concedidos por instituições públicas ou privadas, a nova proposta propunha um Sistema de Segurança Social público, financiado com rendimentos nacionais e contribuições obrigatórias.
A lei atual permite que as pessoas destinem 100% dos seus recursos a operadoras privadas de saúde, enquanto a nova proposta previa a criação de um Sistema Nacional de Saúde, que receberia todas as contribuições obrigatórias de saúde, deixando em aberto a opção de contratar um seguro privado extra. O caráter social do Estado também se expressava em outras regulamentações, como o direito à cidade, à moradia digna, o reconhecimento do trabalho doméstico e a criação de um Sistema de Atenção Integral, um sistema de proteção social, universal e solidário.
A Água como bem ‘‘inapropriável’’, a Constituição vigente tem uma breve menção à água no Chile. Afirma que “os direitos privados sobre as águas, reconhecidos ou constituídos de acordo com a lei, conferirão aos titulares sua propriedade”. A proposta redigida recentemente estabelecia a água como um bem que não pode ser apropriado. Também estabelecia um direito humano à água, prioritário em relação a outros usos, e cria uma Agência Nacional de Águas para seu uso sustentável. Esta é uma questão de especial importância no Chile, que passa por uma grande seca, com diversas áreas em crises hídricas, com locais com dependência de água distribuída por caminhões-pipa e racionamento. O uso, o acesso e a preservação da água estão no centro do debate no Chile e fazem parte de um número crescente de conflitos ambientais e processos judiciais.
O texto também declarava que pessoas e povos são interdependentes com a natureza e formam, com ela, um todo inseparável. A natureza tem direitos. O Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los.
Um sistema político mais democrático, em ambos os textos o governo e a administração do Estado correspondem à figura presidencial. No novo texto, a idade para se candidatar ao cargo cairia de 35 para 30 anos. O período presidencial permanecia em quatro anos, mas a reeleição consecutiva seria autorizada uma vez. Quanto ao Legislativo, a Constituição de 1980 define um Congresso Nacional com “dois poderes: a Câmara dos Deputados e o Senado” e específica que ambos atuam na formação de leis, o Senado atuando para aperfeiçoar o trabalho da Câmara. No novo texto, o Senado seria eliminado e seriam criadas duas Câmaras de poder equivalente: um “Congresso de Deputados e Deputadas” para a formação de leis (com ao menos 155 membros divididos paritariamente entre homens e mulheres) e uma Câmara das Regiões, dedicadas à legislação de interesses regionais.
Quando se olha o processo como um todo, houve grupos que não quiseram seguir as regras, houve provocações, houve uma direita que sabotou o processo desde o primeiro dia. Alguns aspectos importantes podem ser considerados na reprovação da nova Constituinte, como o caráter obrigatório de comparecimento na votação, tendo em vista que desde 2012 a votação eleitoral não é mais obrigatória no Chile acredita-se que uma parte dos eleitores foi votar contrariado de ter que ir, então votou contra a proposta.
Outro aspecto foi o desprestigio da Convenção Constitucional, assembleia eleita pelo povo em abril de 2021, onde partidos políticos perderam terreno, assim a assembleia foi formada de maneira heterogênea por independentes que não pertenciam a nenhum partido, então um descredito começou a ocorrer, com questionamento pessoal a alguns membros e suas carreiras, além de pouca comunicação referente aos debates que aconteciam.
Um aspecto muito forte e presente foi as notícias falsas, assim como na campanha eleitoral no Brasil, o Chile sofreu uma inundação de Fake News em relação ao conteúdo da nova Constituição. Notícias falsas espalhadas em massa sobre os constituintes, sobre o trabalho da Convenção e, até mesmo, uma vez publicado o projeto da nova Constituição, foram inventados artigos e o texto foi distorcido, mostrando que muitos nem mesmo o leram. A campanha de notícias falsas foi alimentada pela mídia e por figuras políticas da oposição como o ex-candidato presidencial José Antonio Kast, com a nítida intenção de promover a rejeição da nova Constituição. Por exemplo, foi inventado que a Constituição promoveria o aborto mesmo no último trimestre da gestação e que a propriedade privada seria eliminada para que os proprietários perdessem suas casas. E ainda que seria proibido a comercialização de água potável.
Alguns analistas atribuem a responsabilidade ao papel do governo de Gabriel Boric numa campanha ruim pela aprovação, com uma crise política sendo atravessada, e com a popularidade em queda, houve uma polarização do voto, ou seja, votaram contra o projeto como se estivessem votando contra o atual governo.
A proposta constitucional não satisfazia todos os setores e suas exigências que haviam sido expressas em 2019. Especificamente, algumas propostas como a eliminação do Senado e sua substituição pela Câmara das Regiões foram criticadas pelos setores de centro-esquerda que compõem o atual governo. Enquanto alguns setores de esquerda também criticaram que o projeto constitucional deveria ser mais duro na nacionalização dos recursos naturais. Assim, os setores progressistas se dividiram durante a campanha, enquanto a direita permaneceu unida na promoção da Rejeição. A exemplo do que vivemos no Brasil, onde temos a direita e as esquerdas.
O plebiscito criou uma disputa entre direita e esquerda. A passagem pelo período de pandemia esfriou, mas mobilizações que estavam ocorrendo no país, desmobilizando uma parte da população que se manifestava pelos por mais direitos sociais, assim num cenário mais contido a extrema direita ganhou espaço e se articulou, criticando a situação vivida no país e exaltando uma suposta ameaça aos privilégios de parte da população caso a Constituinte nova fosse implantada. As mobilizações que iniciaram com críticas ao sistema neoliberal não conseguiram ser mantidas pela esquerda, com eclosão em 2019, no protesto contra o aumento da tarifa do metrô em Santiago, com o slogan: “não são 30 pesos, são 30 anos”, muito semelhantes às do Brasil em 2013, “não é pelos 20 centavos”, as mobilizações perderam força enquanto a estagnação econômica e o aumento dos preços iam ganhando espaço, assim prejudicando o governo que defendia a nova Constituinte e colaborando pro aumento da rejeição.
O Chile vive tempos de conflitos, e a maioria do povo sabe que as crises enfrentadas não serão resolvidas por plebiscitos, mas ainda há esperança de quem uma nova Constituição possa amenizar a crise chilena. Apesar das críticas é preciso admitir que a nova proposta apresentada era boa em direitos das mulheres e dos povos indígenas, ampliava a democracia e garantia direitos humanos. Entretanto, apesar de a maioria dos chilenos reconhecer a necessidade de mudança, esta proposta não foi aprovada. A questão é: que tipo de mudanças o povo do Chile quer? Talvez por não ter uma resposta certa, a Rejeição venceu o plebiscito.
Referências
https://static.poder360.com.br/2022/07/Texto-Definitivo-CPR-2022-Tapas.pdf