Por Eduardo Ritter/Superávit Caseiro
O reajuste dos servidores federais voltou a ocupar as manchetes do noticiário nacional na última semana. Integrantes do governo cogitam uma reposição salarial de 5% a todas as categorias, mesmo que a defasagem de 2019 até 2021 tenha ficado em 19,99%. Por mais que inicialmente esse possa parecer um assunto que interesse exclusivamente aos servidores, a pauta tem interesse nacional, especialmente em cidades onde é grande o número de funcionários públicos, como é o caso de Pelotas, que emprega aproximadamente 2,6 mil servidores apenas através da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Sem reajuste salarial, há uma redução no poder de compra de boa parte da população que deixa de consumir no comércio local, fazendo o dinheiro circular menos. Diante desse cenário, o Superávit Caseiro conversou com o vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas (ADUFPel), Luiz Henrique Schuch. Na sua fala, Schuch comenta o atual cenário e a luta histórica da categoria tanto por reposições salariais, quanto por melhores condições de trabalho e investimentos em educação. O atual vice-presidente da ADUFPEL é professor aposentado da instituição e foi diretor da Faculdade de Veterinária entre 1986 e 1988, além de ter presidido a associação dos docentes entre 1983 e 1985. Já entre 1988 e 1992, Schuch foi vice-reitor eleito pela comunidade universitária. Pouco depois, em 1994/1995, ele presidiu o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), participando também de outras gestões da entidade. Também foi Secretário Estadual para a Metade Sul durante o governo Olívio Dutra, entre 1998 e 2002. Nessa conversa, ele compartilha a visão de quem tem uma longa trajetória no serviço público e acompanhou de perto as mudanças que ocorreram nos mais diversos governos nas últimas décadas.
Superávit Caseiro – Diversas reportagens circulam abordando a defasagem salarial tanto dos docentes, quanto dos demais servidores federais. Hoje, em abril de 2022, qual é o índice dessa defasagem? E como ela é calculada?
Luiz Henrique Schuch – O índice de 19,99% reivindicado emergencialmente pelo Fórum Nacional dos Servidores Públicos Federais, mediante protocolo no mês de janeiro, corresponde às perdas inflacionárias de 2019 até 2021, medidas pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) e equivalente aos três anos de governo Bolsonaro. O IPCA em 2019 teve aumento de 4,31%, em 2020 de 4,52% e em 2021 chegou a 10,06%, o índice acumulado no fim de 2021 foi de 19,99%. Além disso, constata-se que somente nos três primeiros meses deste ano a inflação acumulada foi de 3,2% e não houve qualquer palavra oficial do governo, muito menos o estabelecimento de uma mesa de negociações. É preciso considerar ainda que há defasagens anteriores. Elas variam entre as categorias e até mesmo entre os segmentos de cada categoria, como é o caso dos docentes federais. Na última vez que as tabelas salariais sofreram alteração, deu-se de forma parcelada em três anos e a partir de uma lógica desestruturadora da carreira docente. Na média, as variações ficaram bem abaixo da inflação do período e produziram agravos específicos para algumas classes e regimes de trabalho. O exemplo mais evidente se expressa na remuneração do regime de trabalho de Dedicação Exclusiva que mantinha desde os anos noventa relação de 3,1 vezes o salário do regime de trabalho em 20 horas. Agora ficou reduzido a apenas o dobro, num claro movimento de desestímulo aos projetos acadêmicos de fôlego.
Superávit Caseiro – Qual é a posição da Adufpel sobre o congelamento de salários dos servidores federais adotado nos últimos anos?
Luiz Henrique Schuch – É um duplo ataque, institucional e pessoal enquanto trabalhadores. Há uma política deliberada de desmonte das instituições responsáveis pela implementação das políticas públicas, numa guinada privatizante e de canalização do Fundo Público diretamente para os grandes oligopólios, especialmente do capital financeiro. Estão ai para comprovar as análises sobre o Orçamento da União recentemente divulgadas pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos-INESC e pela Auditoria Cidadã da Dívida. Elas demonstram objetivamente esse desmonte na educação, na saúde, na assistência e no setor ambiental. No mesmo sentido é eloquente o conteúdo da Proposta de Emenda Constitucional 32, apontando para a dissolução das instituições públicas. Mas há também um acelerado movimento voltado à desconstituição das relações de trabalho estáveis e dos direitos dos trabalhadores do serviço público. A manifestação mais explicita é o congelamento salarial, contra o qual lutamos. Porém, outras iniciativas mais disfarçadas no bojo da contrarreforma administrativa, têm resultado em dramáticas perdas de direitos e perdas estruturais na remuneração, ao longo do tempo. Entre elas está a desestruturação do Regime Jurídico Único e da carreira docente que vem transferindo a maior parte da remuneração para parcelas exteriores ao vencimento básico, como gratificações variáveis ou outros títulos.
Superávit Caseiro – Na sua avaliação, esse congelamento prejudica a economia local? Por quê?
Luiz Henrique Schuch – Esse é um tópico que já tem sido tratado em diversos momentos de mobilização dos trabalhadores do serviço público, especialmente nas greves. A repercussão é muito acentuada, especialmente em cidades e regiões de economia fortemente baseada nos setores de comércio e serviços. Por certo, a diminuição do poder aquisitivo dos trabalhadores no serviço público deprime a demanda em toda a região. Nesse aspecto é importante ressaltar que o ciclo negativo afetará a vida de todos os estratos sociais, especialmente as camadas mais pobres que se veem ainda mais limitadas em suas oportunidades. É preciso lembrar, nesse aspecto, que as instituições públicas como a UFPEL e o IFSul, são empregadoras não só de servidores públicos, mas de tantos serviços e trabalhadores terceirizados que passam a ser dispensados. Mas os prejuízos mais graves decorrentes da imposição de restrições ou desestimulo às atividades universitárias (corte de verbas, projetos, bolsas e corrosão salarial), resulta dos entraves ao desenvolvimento dos programas de extensão e pesquisa, associados ao ensino. Muitos desses programas tem sido sustentáculo da dinâmica de atividades regionais, do campo e da cidade, em quase todas as áreas.
Superávit Caseiro – Como foram os diálogos/negociações da categoria nos últimos três governos: Dilma Roussef, Temer e Bolsonaro?
Luiz Henrique Schuch – Vivenciamos um ciclo de crescimento dos movimentos sociais nas lutas por seus direitos no decorrer dos anos 1980, com a derrubada da ditadura e com o processo constituinte. Vários avanços foram conquistados, como a Carreira Nacional dos Docentes das Instituições Federais de Ensino. Porém, desde o início dos anos 1990 voltaram os ataques com outras características. É só lembrar o emblema do governo Collor como caçador de marajás, em campanha contra os servidores públicos. Durante os 8 anos do Governo FHC, a tabela remuneratória dos docentes federais ficou congelada e, ante a pressão das nossas lutas, a recomposição de perdas só foi atendida por meio de gratificações externas ao vencimento, muitas vezes com características discriminatórias. No inicio do governo Lula chegou a ser criada oficialmente uma Mesa Nacional de Negociações Permanente com os servidores públicos que, no entanto, logo depois foi extinta. Mesmo assim, a interlocução das entidades nacionais dos servidores públicos com o Ministério do Planejamento se manteve em maior ou menor grau, até o impeachment [de Dilma Roussef]. A interlocução nem sempre evoluiu para resultados positivos impondo, até mesmo, elementos de instabilidade e corrosão dos princípios da carreira docente. Porém, nenhum espaço de diálogo ou negociação formal se constituiu depois de 2016, mesmo diante de toda a pressão exercida pelos servidores.
Superávit Caseiro – Na última semana, passou a circular a informação sobre um possível anúncio de reajuste de 5% dos servidores federais do país. Em reportagem do dia 13 de abril da Folha de S.Paulo, no entanto, há apenas uma confirmação feita pela reportagem com a equipe econômica. Há algum tipo de informação oficial sobre essa decisão? Qual a sua opinião sobre isso?
Luiz Henrique Schuch – O governo Bolsonaro tem repassado benefícios, indiretos ou diretamente na remuneração, somente para aquelas categorias que considera suas aliadas ideológicas, ligadas às forças militares e policiais. Assim também os poderes Legislativo e Judiciário continuaram corrigindo e até ampliando a remuneração e benefícios dos servidores a eles vinculados. Além do mais, desde 2004 os diversos governos não vêm cumprindo o dispositivo constitucional que prevê a Revisão Geral Anual dos Salários no serviço público. Paulatinamente foi se estabelecendo um desvio por mecanismos arbitrários, localizado em reestruturação de tabelas. Ora, esses precedentes facilitam o jogo do “toma lá da cá”, especialmente em ano eleitoral, e isso está ficando escancarado agora pela pressão dos servidores públicos. Temos demonstrado que todos os argumentos sobre entraves legais ou orçamentários são superáveis se houver vontade política do governo e que a reposição das perdas inflacionárias dos últimos 3 anos é o mínimo aceitável. Mas isso colocou em cheque o discurso demagógico do centro do governo que, para não ficar inerte e visando desmobilizar o movimento nacional dos servidores públicos fica soltando balões de ensaio na imprensa, sem estabelecer negociações nem assumir qualquer compromisso.
Superávit Caseiro – Falando especificamente sobre a entidade, quais os benefícios para os docentes associados à Adufpel?
Luiz Henrique Schuch – A organização sindical é o mais efetivo instrumento de defesa da categoria docente, em seus direitos como trabalhadores e na luta por condições adequadas de trabalho/estudo. No nosso caso, professoras e professores de universidades públicas, isso está intrinsecamente associado à atuação coletiva para construção, ampliação e aperfeiçoamento da instituição na qual trabalhamos, em direção ao futuro. A combinação desses dois elementos – defesa dos direitos enquanto trabalhadores e defesa da universidade pública – foi a principal motivação que nos levou a criar a ADUFPEL no inicio dos anos 1980 e, logo em seguida, a criação da entidade nacional da qual fazemos parte. Somos a organização de base, do local de trabalho, de nossa entidade nacional, o ANDES sindicato nacional, que tem o condão de recolher os posicionamentos e compromissos dos docentes de todos os cantos do país para pautar negociações trabalhistas, ajuizar de ações coletivas e disputar a construção de um projeto de universidade, ciência e tecnologia, necessário e popular para construção de relações sociais mais justas. Em geral, a negociação das nossas pautas precisa ser realizada no centro dos poderes, em Brasília. É lá que está, em ultima instância, o nosso patrão, a divisão dos orçamentos, das vagas. A definição das políticas. Por isso, o principal benefício, o principal trunfo politico organizativo do qual podemos nos valer é justamente fazermos parte de uma organização democrática, construída pela base, com a potência de atuação nacional. As últimas quatro décadas têm demonstrado que há um limite para a defesa da universidade pública por dentro dos muros institucionais. A organização das categorias docente, estudantil e de técnico administrativos é que tem conseguido conquistas além desses limites. É claro que a ADUFPEL tem sido também o nosso ambiente de acolhimento e identidade como categoria. Isso vai desde os encontros festivos, culturais e artísticos até o apoio jurídico, passando também pela organização de planos de saúde, articulação entre as unidades universitária por condições de trabalho e luta pela democratização das instâncias institucionais.
Superávit Caseiro – No último dia 18 houve assembleia presencial. Quais foram as principais definições da assembleia?
Luiz Henrique Schuch – Esta sessão da assembleia geral permanente marcou a retomada das atividades presenciais da entidade, com todos os cuidados sanitários, e também foi a primeira atividade realizada na nova sede da ADFUPEL, localizada na Rua Quinze de Novembro, 110. Foi rica a discussão, especialmente sobre as evidências cada vez mais gritantes de perdas de direitos e riscos quanto à própria capacidade de funcionamento da UFPEL em decorrência dos sucessivos cortes e dilemas do retorno às atividades presenciais. Ficou definido na assembleia encaminhar à reunião nacional do ANDESSN, que ocorrerá em Brasília nos dias 20 e 21, além de manter a posição anteriormente aprovada no sentido da construção da greve nacional dos SPF, colocar na rua uma agenda com a pauta de mobilização da educação, indicando dias de mobilização/paralisação em defesa dos direitos dos trabalhadores e a defesa da universidade pública. Além disso, foi ressaltada a necessidade de atuar fortemente na construção da pauta local de mobilização em torno das condições de trabalho, através do Comando Local de Mobilização e da articulação entre as entidades representativas das três categorias.
Superávit Caseiro – Em âmbito nacional, há hoje uma cogitação de realização de greve entre os docentes até o final de 2022?
Luiz Henrique Schuch – Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que várias categorias do serviço público federal já desencadearam o movimento grevista em torno da pauta e da agenda proposta pelo fórum nacional de servidores públicos. É emblemática a amplitude e a radicalidade da greve dos servidores da previdência nesse momento. Especificamente em relação aos docentes das universidades e institutos federais o chamamento para a luta tem sido reafirmado há muita disposição de luta, mas algumas condições peculiares tem dificultado a deflagração da greve nacional, especialmente o descompasso entre os calendários acadêmicos e a transição do remoto para o presencial. O que se observa, neste momento, na maior parte das seções sindicais do ANDESSN, é um movimento combinado entre a atuação em cada instituição para garantir condições adequadas de funcionamento presencial, recuperação dos orçamentos e dos serviços de apoio, com a aglutinação de forças para impor a negociação da pauta nacional com o governo federal. O pior cenário seria aquele em que unidades ou setores da universidade chegassem ao limite das improvisações, no retorno das atividades presenciais, por falta de orçamento, de pessoal, de serviços e outras necessidades básicas, interrompendo o funcionamento por inanição, sem que as categorias que ali trabalham e estudam tenham se erguido em luta para reverter essa situação. As próximas reuniões nacionais já estão agendadas em Brasília e terão a responsabilidade de apontar a possibilidade desencadear greve nacional dos docentes, somando-se às demais categorias e, nesse caso, o período para deflagração. Certamente a deliberação será tomada com responsabilidade a partir de das informações colhidas das bases em todas as universidades federais, frente às possibilidades concretas de pressionar o governo. O processo de construção é muito dinâmico, ainda mais nesse ano de 2002 que incide num ano eleitoral.