Desde a adolescência, Carmem Lucia Moraes, hoje com 58 anos, sempre teve curiosidade e vontade de aprender. Na escola, com apenas 12 anos, ela conheceu uma das sete irmãs de Marilu Conceição da Rosa, uma das poucas mulheres negras que tinham um salão de beleza em Pelotas em meados dos anos 1970. Foi através dessa amizade que ela começou a frequentar o salão e a aprender o ofício que, no futuro, se tornaria a sua profissão: cabeleireira. Mais de quatro décadas depois, Carmem Lucia Moraes é proprietária do próprio salão, localizado no bairro Navegantes 2: Lucia Cabeleireira.
Com o mesmo olhar curioso da adolescente que aprendia com Marilu, sua grande inspiração profissional, e com um belo e contagiante sorriso no rosto, Carmem Lucia relembra a longa trajetória que teve que percorrer até conseguir abrir o próprio negócio, em 1999. Aos 17 anos, ela concluiu o Ensino Médio como técnica de estatística e já trabalhava como assistente em um consultório de ortodontia. No entanto, o que ela gostava mesmo era de atender no salão de Marilu nos finais de semana. Com a vocação para a atividade, Carmem Lucia desenvolveu outra característica que levaria para o resto da vida: a vontade de aprender, de melhorar e de manter o foco nos seus objetivos. Foi com esse pensamento que ela ingressou em um curso de cabeleireira do Senac e seguiu fazendo cursos da área de embelezamento da entidade até 1984. Durante esse período, ela trabalhou no salão da amiga, até se casar e mudar para Porto Alegre, onde mais uma vez se viu trabalhando em outra área durante a semana e atendendo no salão que frequentava nos finais de semana. Foi na capital gaúcha que Carmem Lucia teve seus filhos: Willian Moraes Ribeiro, 31 anos, e Francine Moraes Ribeiro, 30 anos. Quando Francine tinha apenas nove meses e Willian tinha um ano e dez meses, Carmem Lucia optou pelo divórcio e voltou para Pelotas, para morar com a mãe, Eli de Deus Moraes. Foi então que ela e a sua antiga vocação se encontraram novamente:
– Eu tinha que sobreviver e não podia estar dentro de uma empresa. Então, quando eu cheguei em Pelotas, eu fui no salão da Marilu e pedi se tinha alguma vaga para trabalhar e assim eu consegui ter um emprego e cuidar dos meus filhos. Foi com essa atividade que encontrei uma maneira de sustentar e criar eles. Até então era algo que eu gostava de fazer, mas fazia no tempo livre.
Foi nesse período que Carmem Lucia obteve o seu registro profissional e começou a frequentar cursos de qualificação e workshops. Inicialmente, ela trabalhava no salão de Marilu e atendia a domicílio. Essa rotina durou nove anos. No sétimo ano, no entanto, a mãe ofereceu a peça, a mesma onde funciona hoje o salão, para que ela começasse a planejar o próprio negócio.
– Eu sempre pensei em trabalhar aqui no bairro, em casa, e trazer um pouquinho desse cuidado e da qualidade que eu tinha aprendido nos trabalhos e cursos anteriores. Eu sabia que tinha essa coisa de que “ah, no bairro pode ser de qualquer jeito, pode atender de qualquer jeito”. E eu queria mais. Eu queria mais, mas não no centro. Eu queria trazer para cá, pela família, para ficar perto dos meus filhos.
E deu certo. Foi com o salão próprio que Carmem Lucia criou os filhos. Hoje Willian Moraes Ribeiro é formado, tem MBA em Gestão de Negócios em Tecnologia e trabalha como Analista de Sistemas. Já Francine Moraes Ribeiro concluiu a graduação em Moda e trabalha como Analista de Desenvolvimento e Engenharia de Produto em Blumenau-SC.
Minha mãe, minha inspiração
Assim como Carmem Lucia é motivo de orgulho para os filhos Willian e Francine, Eli de Deus Moraes foi motivo de muito orgulho da filha. Trabalhando como empregada doméstica para criar as filhas Carmem Lucia e Luciane Moraes da Silva, hoje com 40 anos, dona Eli nunca mediu esforços para lutar pelas filhas. E para Carmem Lucia, essa sempre foi uma tradição da família.
– Os meus antepassados passaram, fizeram a parte deles, se sacrificaram e deixaram as coisas um pouco melhores para a geração da minha mãe. A minha mãe, com toda a pouca educação formal dela, organizou muito bem a minha cabeça e deixou as coisas um pouco melhores para mim. E eu, já com a minha cabeça melhor, com estudo e muito trabalho, organizei a dos meus filhos, que também vão organizar a dos meus netos. Então, é isso que vai agregando de geração em geração, levando a grandes conquistas. E a pessoa que me inspirou desde o início foi a minha mãe, que é um exemplo e que eu acredito que o que ela me passou eu tenho passado para os meus filhos.
Carmem Lucia destaca que foi a mãe quem lhe ensinou a lutar contra as adversidades, trabalhar, ter foco e perseguir os seus objetivos. E apesar de todas as dificuldades, como o machismo e o racismo que seguem sendo uma das principais chagas da sociedade brasileira, ela salienta que sempre tentou se inspirar na perspectiva otimista da figura materna.
– Eu venho de uma época em que não era fácil, assim como não é fácil ainda hoje. Por isso a minha inspiração é a minha mãe, porque a minha mãe sempre demonstrou que as coisas são possíveis de serem conquistadas. Ela nunca me mostrou um lado de dificuldades ou que era impossível. As coisas podiam ser difíceis, mas não impossíveis. E foi o que eu passei para os meus filhos. Eu sempre digo que nós vemos pessoas e olhamos pessoas. Sim, eles foram os únicos alunos negros nos cursos deles quando eles fizeram, mas eles foram a cada aula, a cada curso, até se formar. Hoje eles gerenciam setores em empresas de ponta. Eu sempre acreditei nessa criação que eu recebi da minha mãe e passei e mostrei isso para eles, sempre ralando. Mesmo divorciada e sozinha eu criei eles com dignidade e com aquela visão de que, quando se quer, vamos lutar e vamos conseguir.
Além do orgulho da mãe e dos filhos, Carmem Lucia obteve diversas conquistas nesses anos todos atuando como cabeleireira. Ela conta que os investimentos em qualificação, como a participação de curso e o conhecimento sobre os produtos, fez com que a clientela fosse muito além das fronteiras do bairro e também de Pelotas. Hoje ela conta com clientes de toda a cidade e também de outros municípios. Além do reconhecimento profissional dos clientes, em 1997 ela foi convidada pelo presidente da Associação dos Cabeleireiros de Pelotas (ACAPEL), Ivoti Leal, e pela vice da época, Marilu Conceição Rosa, para fazer parte da diretoria da entidade. Em 2001, na gestão do presidente Ari Volcao, ela passou a ser a vice-presidente da ACAPEL.
– Fazer parte dessa associação permitiu a troca de aprendizado com os colegas. O conhecimento técnico, administrativo, social e moral me fizeram querer empreender, não só na profissão, mas na vida, com as viagens e as grandes feiras, os workshops e os festivais, que mostram que só temos que querer.
Carmem Lucia pertenceu a diretorias de outras gestões até 2011, quando se viu obrigada a retribuir todo o amor materno que havia recebido até então. Foi nesse ano que ela pediu licença da entidade para cuidar da mãe que havia sido diagnosticada com Alzheimer. Já no dia 26 de agosto de 2020, Carmem Lucia perdeu a mãe, Dona Eli, que faleceu aos 78 anos de idade. Hoje ficam as lembranças e os ensinamentos que Dona Eli deixou para as filhas e para os netos.
Após essa longa trajetória, que inclui muito trabalho, aprendizados e conquistas, além de conseguir superar a pandemia da Covid-19, Carmem Lucia olha com otimismo para o futuro. Além de atender no seu próprio salão, ela também está concluindo um curso para atuar como Sommelier, com especialização em vinhos. No entanto, ela ressalta, que enquanto puder, ela pretende conciliar as duas atividades, afinal, de foco e força de vontade Carmem Lucia entende muito bem.
– Cada profissão te dá aquele amparo para chegar aonde quer. Eu tinha o pessoal que já trabalhava no salão, tinha a associação, mas eu tinha que correr atrás. Hoje eu faço curso de Sommelier. Tem que focar aonde quer chegar, e não nas dificuldades. Meus dois filhos são formados e estão bem empregados. É possível, independente da cor, independente da situação financeira, planejar e se preparar. O mercado é muito concorrido. Na minha época, eu escolhi o que eu queria fazer, hoje, um curso de cabeleireiro está muito mais caro. Não adianta eu querer exigir um espaço se eu não estou preparada, se eu não tenho um conhecimento sobre aquilo. E não é porque eu sou cabeleireira há 25 anos que eu não vou mais viajar, fazer cursos. A gente sempre está aprendendo. Ninguém atinge as suas metas sem trabalho. Se observarmos as grandes mulheres, que ocupam grandes cargos, principalmente as mulheres negras, para chegar lá elas estudaram e trabalharam muito. Tem que ser a melhor. E se já tem uma melhor, tem que ser a melhor da melhor. Principalmente mulher, para poder se empoderar, para chegar junto, e mostrar porque que você está ali e porque você conquistou tudo o que tem.
Carmem Lucia com certeza é um exemplo a ser seguido, não apenas para quem pretende abrir o próprio negócio ou obter sucesso na profissão. Ela é um exemplo a ser seguido pela simpatia, pela obstinação, pela força de vontade e por sempre perseguir os seus objetivos até o fim. É por isso que, não apenas no mês do Dia Internacional das Mulheres, mas em todos os dias do ano, ela é uma inspiração para homens e mulheres, independente da raça, cor, classe social, religião ou nacionalidade.