Entrevista realizada em 06/02/2014 com a Prof. Dra. Lioudmila Bourchtein nas dependências da UFPel no Prédio da Matemática – curso noturno.
Breve Biografia:A Prof. Dra. Lioudmila Bourchtein é Pesquisadora Associada da Universidade Federal de Pelotas, no Departamento de Matemática e Estatística, aposentada. Possui Bacharelado em matemática pela Universidade Federal do Leste Distante (1960) – Rússia, Mestrado em matemática pura pela Universidade Federal do Leste Distante (1962) – Rússia e Doutorado em matemática pura pela Universidade Federal de São Petersburgo (1968) – Rússia.
Riemannianos: O que a senhora poderia nos contar de sua infância, na Rússia?
Dra. Lioudmila: Quando entrei na escola, gostava muito de estudar e em casa brincava com meus colegas. Sempre quis ser uma professora. Gostava muito dessa “coisa” de ser professora. Desde que me lembro, sempre gostei de estudar. Não só matemática, mas outras matérias também.
Depois, já no final da escola, já estava um pouco cansada por que, nos últimos anos – não sei como é aqui – mas na Rússia tem muitas matérias. Minha memória não era muito boa, e até hoje não é. Para mim foi, por exemplo, muito difícil lembrar algumas coisas de matérias como história ou geografia. Datas, nessas matérias eu não conseguia lembrar por que nomes, cidades, só tinhas que ser memorizados não tinha uma coisa para ligar com outras, e isso, para mim, foi muito difícil. Mesma coisa, por exemplo “essa cidade tem tantos cidadãos”, eu sabia que a cidade era grande, mas quanto ao número de cidadãos, lembrar desses números, eu não conseguia. Essas coisas para mim, sempre foram muito difíceis. Tinha sempre que associar uma coisa com outra e um número solto não lhe dizia nada, não conseguia associar? Exatamente! Mas depois, quando eu entrei na universidade, a maioria das matérias são matemáticas e isso, para mim, foi muito bom! Pois nas matérias matemáticas temos que raciocinar e não memorizar, entende? Não precisa memorizar muito, tem que raciocinar. Para raciocinar você pode associar, de um ponto a outro ponto, de uma fórmula para outra fórmula, fazer raciocínios para demonstrar um Teorema e outras coisas. Isso sempre foi muito interessante para mim (raciocinar).
Riemannianos: Quando e como começou o gosto pela matemática?
Dra. Lioudmila: Não me lembro exatamente, mas acho que mais ou menos com 13 ou 14 anos. Até essa idade eu gostava de todas as matérias, mas quando tinha que memorizar, eu passei a não gostar mais. Mas na matemática sempre tive interesse.
Riemannianos: Como era na sua época uma mulher entrar na universidade para estudar matemática?
Dra. Lioudmila: Lá não tinha essa diferença, tanto faz mulher ou homem. Tínhamos que fazer provas para entrarmos na universidade. Na matemática, tinham mais mulheres do que homens, pelo menos na nossa universidade. Que eu saiba, na Universidade de Moscow e na de São Petesburgo os homens eram maioria. Na nossa cidade, Vladivostock, as mulheres são maioria, embora ela não seja de primeira linha das universidades. As melhores universidades do país são as de Moscow, São Petesburgo, depois começou em Novosibirsk. Mas nossa universidade também não foi de qualidade inferior, mas ela ficava na média, tinha professores muito bons e agora continua tendo professores muito bons.
Riemannianos: Por que veio para o Brasil?
Dra. Lioudmila: Muito fácil! Eu vim atrás do meu filho! Uma turma de profissionais de várias especialidades – a do meu filho era matemática – foi convidada para melhorar a qualidade de estudo do mestrado da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), no curso de Meteorologia. Depois de três anos dele trabalhando aqui, eu entrei na universidade de Pelotas como contratada. Quando o contrato terminou, trabalhei como pesquisadora. Logo abriu concurso, e entrei como professora.
Riemannianos: Gostaria de fazer alguma comparação de como era e como está o ensino universitário de matemática e os alunos?
Dra. Lioudmila: Para mim é difícil comparar, eu não trabalhei muito tempo aqui. Comparando com ensino na Rússia, os alunos lá são mais preparados para entrar na universidade. Não sei como está lá agora pois estou no Brasil a bastante tempo, mas naquela época, eles eram mais preparados para entrar na universidade. Antes, a preparação em matemática era melhor do que aqui no Brasil. Mas ao mesmo tempo eu posso comparar somente assim: nós temos alguns amigos brasileiros e eu vejo que eles são muito inteligentes, muito sábios, eles não são matemáticos, mas eles sabem muitas coisas em várias áreas, particularmente, também em matemática.
Riemannianos: Seu filho também é matemático. Qual foi a sua influência na escolha dele?
Dra. Lioudmila: Minha área é matemática pura e ele fez matemática aplicada. Acho que não o influenciei. Eu trabalhava muito e não tinha tempo, ele não gostava que eu me envolvesse em seus estudos. Ele estudava sozinho! Nos últimos anos da escola, eu perguntava o que ele iria fazer depois de acabar e ele não sabia até o último ano. No último ano ele disse que queria estudar na universidade de matemática. Eu não gostei da escolha dele por que achava que não era uma boa escolha, que ele iria estudar na faculdade que eu trabalhava. Também aconselhava outras matérias, ou outra profissão, mas ele não queria. Ele disse que não, ele queria ser matemático.
Riemannianos: Como reconhecer um talento em matemática?
Dra. Lioudmila Eu não sei como reconhecer talentos. Talento é muito difícil de reconhecer por que às vezes uma criança tem interesse e parece que tem talento, mas com o passar do tempo, passa. As vezes é ao contrário, o interesse aparece um pouco mais tarde e essa pessoa começa a trabalhar muito. Na verdade, já esqueci quem disse que 5 ou 10% do talento é da natureza de Deus e o restante, do trabalho. Como em qualquer matéria, temos que trabalhar muito para conseguirmos algo, mas acho que em matemática, muito mais. Tem que trabalhar muito, muito, muito mais.
Riemannianos: Na sua opinião, o que está faltando aos alunos de Matemática para que se destaquem, aprimorem?
Dra. Lioudmila Trabalho, mas antes tem que ter interesse em matemática e esse interesse tem que aparecer na escola. Tem que melhor muito o nível de educação em todas as matérias, não só em matemática. Tem que começar na escola, pois se uma pessoa já terminou a escola e entrou na universidade é muito difícil começar com o nível atual. O Governo deveria dar mais atenção para a educação. Tem que aumentar salário dos professores em todos os níveis, mas em primeiro lugar, na escola. Acho que tem que diminuir carga de horário dos professores das escolas por que, conversando com alunos que já se formaram e estão trabalhando nas escolas, eles me dizem que tem excesso de carga horária, que é impossível dar atenção a cada aluno. E para o aluno ter interesse, tem que dar atenção a ele. Então as turmas não podem ser muito grandes como elas são no Brasil. Professor tem que ter bom descanso para estudar e fazer uma boa aula. Cada professor tem que, mesmo com muitos anos de trabalho, se preparar para a aula, só assim pode dar uma boa aula. Não pode pensar que sabe a matéria, não precisa se preparar. Não! Para um professor isso é inadmissível, as aulas sempre tem que ser preparadas. Mas para fazer isso, ele tem que ter tempo de estudar.
Nunca trabalhei em escola, mas quando estava na universidade, nós tínhamos, dentro do estudo, tínhamos um estágio, assim como é aqui.
Eu acho que tem que diferenciar os últimos anos da escola, como por exemplo, no nono ano da escola, diferenciar o estudo. Nem todas as escolas na Rússia tinha essa diferenciação, mas tem escolas com essa especialização, não só matérias humanas e exatas, mas mais precisamente, por exemplo, turmas de matemática e física, turma de química, turma de geografia e história, etc. Para essas turmas eu trabalhei na área de matemática. Esses alunos que iriam estudar, não era obrigatório, tinha turmas comuns, mas se houvesse interesse do aluno de estudar em turma especial, ele tinha que fazer uma prova para poder ingressar. As turmas eram pequenas, de 15 a 20 alunos. Além disso, os diretores dessas escolas, convidam professores da universidade para trabalhar nessas turmas especiais, pois esses professores tem um nível mais alto, e esses professores podem dar conteúdo mais amplo a esses alunos. Por exemplo, eu tinha “carta branca” para dar o conteúdo que eu quisesse para esses alunos. Claro que eu tinha um programa, mas além desse programa eu estava dando mais outras coisas. Professores da universidade com nível mais alto, tem uma visão mais ampla do conteúdo, então podem explicar o conteúdo de várias maneiras. E se ele observa que os alunos não entendem alguma coisa, então poder dar explicações de outra maneira, que eu acho muito importante. A universidade aqui tem uma tendência, na minha opinião, muito grave, que é de diminuir conteúdo matemático e estão dando mais atenção a matérias didáticas. Mas didática de que? Didática pode ser de uma matéria específica, como física, álgebra, cálculo. Mas o principal deve ser o conteúdo. Se uma pessoa tem nível bastante alto, essa pessoa já pode pensar em como passar esse conteúdo, como explicar uma coisa ou outra, dependendo dos alunos. Uma aluna depende de uma explicação e outra não entende, então tem que explicar de outra maneira, e para isso, temos que ter um nível mais alto. Por exemplo, para entender muito bem conteúdo de matérias escalares, tem que saber outras coisas, outras matérias da matemática. As vezes os alunos perguntam por que estão estudando essas matérias na universidade se eu não vou usá-la (isso na escola), mas isso não é certo! Se alguém vai saber mais de matemática, ele vai entender melhor coisas escalares, vai entender melhor e vai explicar melhor.
Riemannianos: Como a sra. vê o futuro da matemática no Brasil? Que mudanças gostaria de ver?
Dra. Lioudmila: Eu não posso ver! (risos). Mas o governo tem que dar mais atenção a educação!
Riemannianos: Na sua opinião, qual a contribuição mais importante de Riemann?
Dra. Lioudmila: Riemann fez contribuições muito importantes na geometria diferencial, na álgebra e nos conteúdos iniciais da Topologia. Mas pra mim, como minha área é Análise Real e Análise Complexa, o mais importante foi o que ele fez nessas áreas. Por exemplo, ele construiu a função de Riemman uma função que tem conjunto infinito de pontos onde função contínua e ao mesmo tempo conjunto infinito de pontos onde função tem descontinuidades. Um exemplo muito interessante: a Integral que tem nome de Riemann, integral definida, foi aberta antes, já foi usado, mas ao mesmo tempo, Riemann fez muitas coisas para desenvolver este assunto da integral definida, agora tem nome de Riemann. Nas variáveis complexas, ele fez muitas coisas, por exemplo, um assunto principal construir uma transformação biunívoca de uma região dada para uma região canônica. Se considerar, por exemplo, regiões simplesmente conexas. As regiões simplesmente conexas significa que a fronteira consiste de uma curva, só de uma curva esta não é a explicação bem, mas mais ou menos assim. Bom! Regiões canônicas para regiões simplesmente conexas, semi plano superior ou círculos. Ele demonstrou um teorema: qualquer que seja a região simplesmente conexa não degenerada pode ser transformada biunivocamente em um círculo. E isso foi grande contribuição nas variáveis complexas! Tem que dizer que ele fez um erro na demonstração. Esta demonstração foi criticado por Weierstrass, mas o resultado foi certo. Depois este teorema foi redemonstrado, mas o resultado foi certo. Ele (Riemann) tinha uma intuição enorme. Então alguns matemáticos tentavam construir contraexemplos, ou seja, regiões que não fosse possível ser transformadas para círculos. Mas eles não conseguiram. Risos. Apesar do erro na demonstração, até hoje este teorema é chamado de Teorema de Riemann. Tem outras coisas nas variáveis complexas, muito importante, ele inventou superfícies chamadas de superfícies de Riemann. E até agora estas superfícies são chamadas de superfícies de Riemann. A maioria dos cientistas acham que estas superfícies tem mais importância na Geometria Diferencial, mas nas variáveis complexas estas superfícies tem muita importância, por que nas variáveis complexas ao contrário da análise real não são consideradas só funções unívocas como nos cálculos de funções de variáveis reais mas funções plurivocas e superfícies de Riemann servem para entender o comportamento destas funções. Funções plurivocas significa que a função tem vários valores em um ponto só. Superfícies de Riemann mostram como entender isto, pois podemos entender como um valor fica em uma folha da superfície, outro valor fica em outra folha da superfície de riemann e assim por diante.Tem mais outras coisas, mas talvez estas sejam as mais importantes.
Mensagem
Eu gostaria que nas escolas dessem mais atenção à matemática, pois não pode aparecer interesse se o professor não explica bem e não instiga o interesse a seus alunos. O professor tem que ter uma influência sobre o aluno. Quando eu estudava na escola, tinha bons professores, mas todos os professores me deram atenção, apesar que eu não tinha problemas, eu sempre perguntava. Isso é muito importante. Aluno não pode ter medo de perguntar, quando pergunta, notamos interesse e a maioria dos professores sempre gostavam quando eu perguntava. As vezes acontecia que eles não respondiam direto, mas não havia problema pois os professores viam em casa e explicavam na outra aula. Tudo bem! Acho muito bom fazer com que alunos perguntem em sala de aula, demonstra interesse. Quando o aluno pergunta, ele está pensando. E temos que desenvolver o pensamento do aluno.