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“LE SUICIDÉ”, de Édouard Manet

(MANET, Édouard. Le Suicidé [O Suicida], entre 1877 e 1881. Óleo sobre tela; 38 × 46 cm. Fundação E.G. Bührle, Zurique, Suíça.

Na obra Le Suicidé, atribuída a Édouard Manet e datada de aproximadamente 1877 a 1881, encontramos uma das mais desconcertantes imagens da modernidade: um corpo masculino inerte, semi-reclinado sobre uma cama, com uma pistola ainda pendendo da mão. A cena, desprovida de qualquer elemento narrativo tradicional, parece surgir do silêncio visual, como um corte abrupto na expectativa estética do século XIX. A pintura não nos oferece o consolo da mitologia, a grandiosidade do heroísmo, nem mesmo a acusação moral que tantas vezes acompanhava representações de suicidas em outras épocas. Em vez disso, nos deparamos com o silêncio da existência, a banalidade da morte, a crueza de um ato irredutível, sem alegorias, sem metáforas, sem véus. Em tudo, diferente dos quadros de Rubens ou de Jacques-Louis David (cuja obra, A morte de Sócrates, analiso em profundidade no meu livro A invenção do Suicídio (a sair pela EdUFABC, no segundo semestre de 2025),

O primeiro choque que a imagem provoca não está apenas na violência implícita, mas na sua total falta de ornamentação. Manet, cuja obra frequentemente recusou os artifícios idealizantes da pintura acadêmica, leva aqui esse gesto ao extremo. Não há nenhuma tentativa de emoldurar a cena em símbolos redentores: não há livros abertos, bilhetes de despedida, flores caídas, ou figuras chorosas ao redor. Não há sequer a presença de uma janela, a luz que banha o cômodo parece vir de um lugar impessoal, sem origem: parece-me que a cena está iluminada não por um sol externo, mas pela própria brutalidade do ato representado. É a luz da consciência, talvez, que expõe a morte sem retórica.

A posição do corpo é central: o homem está caído de lado, meio sentado, com a cabeça pendida para trás. Essa não é a pose dos mártires, dos heróis, dos santos ou dos amantes trágicos. É a pose de alguém vencido, de alguém que saiu da cena da vida não como um gesto grandioso, mas como um cansaço último. A cama onde ele repousa é estreita, quase claustrofóbica. É uma cama de pensão barata, de quarto anônimo, de cidade grande e impessoal. Essa cama, por sua vez, adquire um simbolismo inevitável: não é apenas um leito físico, mas o espaço mínimo da intimidade moderna, onde a vida, a solidão e a morte se confundem sem testemunhas. O revólver na mão do homem é um detalhe que aciona toda a lógica do gesto voluntário. É ele que determina o sentido da cena: não estamos diante de um assassinato, mas de um suicídio. Porém, o que mais impressiona não é o revólver em si, mas o modo como ele está quase descolado de qualquer heroísmo. Manet não o transforma em objeto simbólico, como ocorreria em outras tradições visuais. O revólver é apenas um instrumento, tão frio quanto a parede branca ao fundo. Essa recusa da metafísica abre espaço para uma outra leitura: a de que o suicídio aqui representado não é um discurso, mas uma suspensão de todos os discursos. O ato não explica nada; é o colapso da linguagem.

Diante dessa imagem, somos tentados a buscar razões, histórias, contextos. Quem era esse homem? Por que ele se matou? Qual era sua história? Mas a pintura recusa todas essas perguntas. Ela se apresenta como uma opacidade, como um fato bruto,  e é exatamente aí que reside sua potência filosófica. Ao contrário das narrativas religiosas ou psicológicas que buscam explicar o suicídio, Manet (ou quem quer que seja o verdadeiro autor) nos força a confrontá-lo como um limite. O suicídio aqui não é apresentado como problema moral, mas como enigma ontológico. O ser que era, agora não é mais. O gesto final não está inscrito em nenhuma história maior. É o fim abrupto da narrativa.

Se pensarmos com Albert Camus, que em O Mito de Sísifo declara (tão exageradamente!) que o suicídio é o único problema filosófico verdadeiramente sério, então Le Suicidé talvez seja a mais rigorosa visualização desse problema. E este é um ponto particularmente importante: A pintura não nos diz se o homem tinha razão para morrer. Ela nos mostra apenas que ele morreu, e que foi ele quem escolheu fazê-lo. A liberdade radical do gesto choca-se com sua consequência absoluta: o aniquilamento. A imagem não celebra essa liberdade, nem a condena. Ela a mostra. Aqui, outro ponto fundamental: a ausência que quaisquer juízos sobre a morte voluntária. Nesse sentido, a pintura se aproxima de um niilismo tranquilo. Não há Deus, não há propósito, não há transcendência, apenas o corpo, o gesto e o fim. A parede nua atrás do homem, o chão indistinto, os lençóis desorganizados: tudo reforça a sensação de que estamos num mundo sem teleologia. Nenhuma redenção virá. A imagem, portanto, pode ser lida como uma meditação visual sobre o absurdo. Não há uma causa clara, e isso é o mais angustiante. O que resta é a evidência silenciosa do resultado.

Mas há também uma compaixão implícita na frieza da cena. A recusa em romantizar o sofrimento não é desumanidade, mas respeito. Ao não transformar o suicida em símbolo, a obra preserva sua condição de sujeito, um sujeito que, mesmo em seu gesto mais extremo, permanece inacessível. O rosto do homem é visível, mas não revela nada. Não há lágrimas, nem expressão trágica. Há apenas uma ausência: a ausência de vida, a ausência de sentido, a ausência de resposta. Le Suicidé, portanto, é uma imagem do fim, não apenas do fim de uma vida, mas do fim das narrativas que costumávamos contar para tornar a morte suportável. É uma obra onde o espectador não é guiado por um caminho moral ou emocional. Ele é deixado diante da cena como diante de uma interrogação aberta, diante de uma verdade sem moldura: a de que há mortes que não são ensinamentos, que não são mártires, que não são metáforas. Há mortes que são apenas silêncio. E é nesse silêncio, duro e inapelável, que a pintura nos obriga a pensar. E pensar a morte voluntária para compreendê-la é a divisa do grupo Lysis.

Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis

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