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Sócrates: uma filosofia da boa morte

A morte de Sócrates permanece como um dos episódios mais emblemáticos da história da filosofia. Ainda voltamos a ela com frequência para as primeiras lições do iniciante dos estudos filosóficos. Há, por certo, mais ali para compreender do que a simples execução de um cidadão condenado pelo estado ateniense: trata-se de um gesto aparentemente deliberado, profundamente ambíguo, que ainda hoje instiga questões sobre o que é morrer com dignidade. Chamaríamos aquela cena de Sócrates vertendo o cálice de cicuta de suicídio? Obediência? Martirização? Sobre no nosso tema, o debate que vem à superfície a partir dessa morte remete à necessidade de definir os contornos do conceito de suicídio e, sobretudo, de pensar o que seria uma boa morte e quando ela ocorre. Essa boa morte, a partir de Filon de Alexandria (tema para outro artigo) passou a ser nomeado de euthanasia.

Platão, no Fédon, retrata a morte de Sócrates com uma solenidade quase sagrada. As páginas finais desse escrito são, na minha opinião, imortais para a história da literatura. Sócrates é a personificação do que mais tarde se chamaria de estoico. Não há pânico, súplica ou revolta. Sócrates bebe a cicuta com a mesma compostura com que, em vida, conduzia um diálogo: sereno, presente, atento aos argumentos e à verdade. Sua morte não é um evento abrupto que rompe a continuidade da existência, mas um desfecho coerente com sua vida filosófica: é o coroamento de uma trajetória marcada pela busca do bem, da justiça e da coerência interior. Ao recusar a fuga proposta por seus amigos e discípulos, Sócrates recusa também o privilégio pessoal que contradiz aquilo que sempre ensinou: que a justiça não pode ser dobrada pela conveniência individual. Sua postura diante da morte é, assim, uma extensão ética da sua filosofia. Ele transforma o ato de morrer em um ato filosófico, em um ensinamento vivo, ou melhor, um ensinamento no momento de morrer.

O que impressiona em sua atitude não é apenas a coragem (andreia), mas a clareza com que ele compreende o significado de sua própria morte. Sócrates não morre como vítima de um sistema injusto, mas como alguém que compreendeu que viver em desacordo com seus princípios seria uma forma de morte mais grave. A cicuta, nesse contexto, torna-se menos um veneno e mais um instrumento de fidelidade à razão e à virtude. Sua morte, portanto, adquire o caráter de uma morte consentida — não no sentido trágico da renúncia à vida, mas como afirmação radical de um modo de viver. Ao aceitar morrer nos termos da cidade, Sócrates afirma a autonomia do pensamento sobre o instinto de autopreservação. O corpo pode morrer, mas a alma, entendida como aquilo que se governa pela razão, permanece intacta. Em Platão, esse é o verdadeiro triunfo do filósofo: morrer não como fuga da dor, mas como continuidade da vida pensada.

Mas vejamos rapidamente o derradeiro escrito do octogenário Platão. Em As Leis, ele condena expressamente o que modernamente denominamos “suicídio”, salvo em quatro circunstâncias excepcionais, como nos casos de doenças incuráveis, desonra irreparável (ou vergonha pública), compulsão legal ou quando a vida se torna um obstáculo à prática da virtude. A morte de Sócrates parece se enquadrar, ao menos, em duas dessas exceções: ela foi ordenada legalmente pela pólis, e pode ser compreendida como uma forma de preservar sua integridade filosófica diante da impossibilidade de continuar vivendo conforme seus princípios.

Ainda assim, a morte de Sócrates resiste a uma classificação moral simples. Sua aceitação da pena capital, ainda que tivesse meios de evitá-la, desloca a questão da simples obediência para o terreno da escolha. Seria essa morte um suicídio ético, legitimado pela razão e pela coerência de vida? Ou uma execução à qual ele aderiu voluntariamente como forma de libertação? A ambiguidade permanece, e é precisamente nela que reside a força do gesto socrático: ele transforma a sentença da cidade não em humilhação, mas em ocasião de afirmação filosófica.

A força simbólica da morte de Sócrates reside em sua abertura ao debate. Ela nos obriga a repensar o que constitui o suicídio, e quando uma morte pode ser considerada não apenas aceitável, mas até desejável. A leitura de Xenofonte é particularmente reveladora nesse ponto. Até agora, tivemos em mente o Sócrates de Platão. Mas penso que é o Sócrates desse outro de seus discípulos, Xenofontes, que a questão ganha contornos interessantes. Vejamos o que Sócrates diz em sua pena:

               “Por que, se julgam os deuses mais vantajoso para mim deixar a vida desde já? (…) Se vivesse mais, seria obrigado a pagar o meu tributo à velhice. Veria e ouviria menos, a inteligência me turbaria, mais                       custoso ser-me-ia aprender, mais fácil esquecer e assistiria ao definhamento de todas as minhas prerrogativas.”
(Xenofontes, Apologia de Sócrates, II, 9–10)

Nesse trecho decisivo, Sócrates não se apresenta como alguém vitimado pela cidade, mas como alguém que lê a própria morte como favorável, até mesmo desejável. Ele não se volta contra os deuses, não amaldiçoa o destino, tampouco clama por injustiça. Ao contrário: interpreta a sentença como sinal de que os deuses, em sua sabedoria, escolheram por ele o momento certo de partir. Notemos que, aqui, a morte não aparece como tragédia, castigo ou fracasso, mas como prevenção lúcida contra a degeneração da existência. Sócrates projeta com nitidez os efeitos do tempo sobre o corpo e a mente: a perda dos sentidos, a fragilidade da memória, o embotamento da razão, o empobrecimento da capacidade de aprender. Trata-se de uma visão profundamente filosófica da velhice, não como fase natural da vida, mas como potencial inimiga da atividade racional e da dignidade do espírito. Essa é uma questão atual, e deveria fazer parte de nossos debates públicos sobre o direito a uma eutanásia voluntária (tema para outro artigo).

Essa perspectiva socrática antecipa, de modo radical, uma ideia de limite existencial. Quando a vida deixa de ser um espaço fértil para a virtude, para a escuta, para o pensamento… ela se torna, aos olhos de Sócrates, não apenas menos desejável, mas talvez menos legítima. Não há aqui espaço para o culto da longevidade pelo simples acúmulo de anos. O que importa não é a duração da vida, mas a qualidade ética e intelectual com que ela se sustenta. A escolha de não prolongar uma existência que caminharia para o esvaziamento aparece, portanto, como uma forma elevada de autonomia: Sócrates prefere morrer enquanto ainda é inteiro, ao invés de assistir ao lento esvaziamento de si mesmo. A morte, nesse contexto, não é sinônimo de destruição, mas de coerência com o próprio ideal de vida. Morre-se, aqui, por convicção — não por desespero. É nesse sentido que podemos dizer que a morte de Sócrates é oportuna. Não no sentido de oportunismo, mas no de kairós, o tempo certo, o instante adequado, aquele momento fugaz em que agir é sabedoria. A existência ainda conserva sua inteireza, e a morte funciona como um fechamento pleno, digno, fiel à própria história. Nesse gesto, Sócrates nos convida a pensar que a vida filosófica exige, talvez, uma morte igualmente pensada.

Essa interpretação é reforçada pela forma como ele conduz sua defesa no tribunal. Ao invés de tentar salvar a própria vida, Sócrates oferece discursos filosóficos que parecem até provocadores. É aí que a leitura de Izzy Stone se torna decisiva:

          “A estratégia de Sócrates era claramente perder não apenas na primeira votação, que determinava o veredicto, como também na segunda, que decidiria a pena. Se apaziguasse o júri, este — ainda que o                        julgasse culpado — talvez lhe impusesse uma multa, tal como pedia a defesa, em vez da pena de morte exigida pela acusação. Sócrates queria morrer. Indaga ele: ‘Se percebesse minha decadência e começasse            a me queixar, como poderia continuar a gozar a vida?’” (STONE, I. F. O julgamento de Sócrates, tradução de Paulo H. Brito, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, cap. 14.)

Stone vê, não um mártir injustiçado, mas um homem que escolhe a morte e a provoca com lucidez estratégica. Ele não apenas aceita o veredito da pólis: ele o molda. Trata-se, talvez, do que poderíamos chamar de um suicídio mediado pela legalidade, ou até mesmo de um exemplo precoce daquilo que hoje chamaríamos de “morte assistida”, ainda que filosoficamente, não clinicamente. Essa leitura perturba a imagem tradicional de Sócrates como puro mártir da liberdade. Ela propõe que sua morte tenha sido deliberada, desejada e organizada como fim filosófico de sua própria biografia. Não é menos admirável por isso, mas é certamente mais inquietante. As interpretações de Xenofonte e Stone deslocam a narrativa platônica heroica. Ainda assim, não desvalorizam o gesto de Sócrates. Pelo contrário: tornam-no mais humano, mais consciente, mais radical. O que se apresenta não é uma oposição entre vida e morte, mas entre tipos de vida e de morte. A escolha de morrer, nesse caso, é também a escolha de não renunciar à própria integridade,  de não se deixar arrastar pela deterioração, nem pela hipocrisia.

Sócrates, com sua morte, parece antecipar uma ideia de “boa morte” que percorre a filosofia posterior: morrer quando se deve, e não quando se é forçado. A morte, para ele, não é uma tragédia a evitar, mas uma parte da vida a ser pensada. A serenidade com que a encara, e a recusa em evitá-la, oferecem ao debate moderno sobre o suicídio uma profundidade que vai além da patologia: a morte pode ser também uma escolha ética.

A morte de Sócrates não pode ser pensada somente a partir dos textos de Platão. Penso que essas outras possibilidades ainda hoje não foram exploradas em profundidade. Por ora, notemos que a morte de Sócrates, nas fontes, não encerra uma vida, não se esgota propriamente na ideia de finitude: a morte de Sócrates sustenta a sua vida, tal como a conhecemos. Ao beber a cicuta sem protesto, ele inscreve seu próprio fim como o ponto culminante de sua filosofia. A ambiguidade entre suicídio, execução e martírio não enfraquece seu gesto, ao contrário, faz dele um campo fértil para pensar os limites entre liberdade, justiça e o direito de escolher o momento de morrer. Ao refletirmos sobre esse episódio, não estamos apenas voltando ao passado: estamos tocando, ainda hoje, no cerne de questões morais e existenciais que permanecem vivas. Estamos reativando o debate sobre a boa morte

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