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Sobre Estatísticas… e Suicídio Masculino

Como professor de filosofia, sempre tive minhas desconfianças dos números da estatística quando essa “ciência de Estado” é aplica ao suicídio, não pela questão matemática, é claro, mas pela honestidade ou mesmo a capacidade no recolhimento dos dados. Costumo dizer aos meus alunos, ou às minhas filhas, que os números são como o oráculo de Delfos: dão sinais, mas nunca respostas claras, e que, a depender de quem pergunta, pode-se obter as respostas que se deseja, “ao torturar os números”. A estatística, portanto, dá pistas e exige interpretação: trata-se de uma imagem construída pela lente daquilo que se deseja enxergar ou, muitas vezes, daquilo que se é capaz de medir e contar. Os números falam, mas falam em uma língua que exige sempre um mediador, um contexto e, principalmente, uma ética na forma como são manipulados.

É por isso que, quando me deparo com uma instalação como o Project84 (aí exposto na imagem), sinto o peso de uma pergunta mais profunda: como conseguimos enxergar a dor e a tragédia quando ela é cifrada em números, especialmente quando estes números são, muitas vezes, invisíveis ou mal compreendidos? O Project84, instalado em 2018 em Londres pelos artistas Mark Jenkins e Sandra Fernandez, propôs um confronto direto com a estatística de suicídios masculinos no Reino Unido. As 84 estátuas de homens posicionadas no topo dos edifícios, representando o número médio de suicídios semanais entre os homens britânicos, revelam de forma crua e palpável o abismo entre os números e as realidades humanas que eles mascaram. A arte, ao contrário da estatística, não se limita a apresentar números secos; ela traz à tona o sofrimento silencioso que esses números representam, criando um espaço para que a dor ganhe uma forma, uma visibilidade, uma reflexão.

Quando olhamos para uma estatística como essa, o impacto inicial vem da surpresa: 84 vidas perdidas a cada semana (Ainda escreverei sobre os números do Rio Grande do Sul, depois de discuti-los no Lysis). É um número que incomoda, mas que facilmente escorrega para o domínio das abstrações, onde o sofrimento se perde entre as linhas da tabela e a frieza do cálculo. E, no entanto, o Project84 nos faz confrontar essas perdas de uma maneira que a estatística não pode: cada estátua é uma pessoa, um homem, uma vida interrompida, uma história que se desfaz. Cada figura, meticulosamente posicionada nas alturas de Londres, é uma representação simbólica; é uma presença perturbadora, uma sombra que paira sobre o espectador, convidando-o a questionar a indiferença com que tratamos as estatísticas de suicídios. É precisamente nesse ponto que a  arte expõe a fragilidade das estatísticas. Ela não se limita a números e porcentagens; ela lida com a dimensão humana da tragédia, uma dimensão que os números, por mais precisos que sejam, não conseguem capturar em sua totalidade. Ao dar forma ao invisível, o Project84 traz à tona as questões profundas que a estatística tenta medir, mas que ela não consegue explicar: por que esses homens, em sua grande maioria, escolhem a morte? O que falha em uma sociedade que, apesar de saber desses números, não consegue tratá-los com a seriedade que merecem? A estatística pode nos dizer que a cada semana, em média, 84 homens no Reino Unido tiram a própria vida, mas ela não pode nos dizer o porquê. E essa lacuna, esse silêncio, é o que o Project84 procura preencher.

A obra de Jenkins e Fernandez é também uma reflexão sobre o sofrimento masculino, um tema muitas vezes minimizado ou mal interpretado. Em sociedades como a britânica, e em muitas outras ao redor do mundo, espera-se que os homens se mostrem fortes, auto-suficientes e insensíveis. A vulnerabilidade emocional, frequentemente associada à fraqueza, é algo que é reprimido, seja nas relações familiares, no ambiente de trabalho, ou até nas próprias expectativas pessoais. O Project84 sublinha isso ao retratar homens que, num momento de desespero, chegam ao ponto de se afastar da vida. Cada estátua, com seu corpo imóvel e rígido, é um reflexo físico dessa repressão: um ser humano reduzido a um número em uma tabela de estatísticas, cuja dor se perde na frieza das análises. No entanto, a estátua não pode ser reduzida a um número; ela é um grito silencioso que interrompe a quietude da cidade, exigindo que a sociedade olhe para o sofrimento de forma mais atenta, mais empática.

Essa questão da vulnerabilidade emocional assentada em um ideal de “homem forte”, que provém a família, que não chora, que não expõe suas fraquezas, parece evidente, por exemplo, na cultura mais tradicional do Rio Grande do Sul, quiçá pela marca da colonização europeia, e do contraste dessa valorização com a de outros povos, a exemplos dos povos indígenas e dos descendentes dos libertos da escravidão, que parecem invisíveis, quando se projeta o ideal do “gaúcho”. Há, por certo, um tabu já na estrutura dessas culturas que impede a manifestação do sofrimento e do pedido de socorro… há, certamente, um silêncio onde poderia haver manifestações desses sentimentos de morte. Em sociedades em que não se pode falar em suicídio… a fala parece dar lugar ao ato. Esse é um ponto particularmente importante, que está na base da criação do projeto Lysis (que iniciamos na UFPEL), como já estava na base do projeto Thanatous (que desenvolvemos na Univasf, no Nordeste, especialmente no interior da Bahia e d Pernambuco).

Mas voltemos à imagem, perturbadora imagem! Filosoficamente, essa instalação pode ser lida como uma expressão do que Albert Camus chamaria de “absurdo”, a luta constante do ser humano para encontrar significado em um mundo que muitas vezes parece indiferente à sua dor. Para Camus, lembremos, o suicídio é uma questão existencial fundamental, pois ele representa a resposta extrema ao absurdo da vida: a percepção de que a existência é sem sentido e, por isso, insuportável. O suicídio masculino, nesse sentido, pode ser entendido como uma manifestação dramática dessa luta contra o absurdo, uma tentativa de escapar de um sofrimento que parece impossível de transcender. Mas a obra Project84 nos confronta com outra questão fundamental: a impossibilidade de se encarar a vida como um mero “problema a ser resolvido”. Em vez de buscar uma solução, a instalação nos força a olhar o problema de frente, nos forçando a questionar a sociedade que tolera essa dor e, ao mesmo tempo, a falha coletiva em criar redes de apoio emocional para aqueles que mais necessitam.

Se olharmos para a filosofia existencialista mais amplamente, o Project84 é também um lembrete da tragédia de se viver em uma sociedade onde as redes de apoio emocional são frequentemente frágeis ou inexistem, onde o sofrimento é internalizado e o silêncio é aceito como resposta. Sartre, ao falar sobre a liberdade e a responsabilidade, nos lembra que a vida humana é uma série de escolhas. No entanto, quando um indivíduo não se sente livre para expressar suas angústias ou quando as estruturas sociais e culturais limitam a possibilidade de se conectar com o outro, essas escolhas tornam-se cada vez mais opacas e, finalmente, insuportáveis. A figura do homem que escolhe o suicídio é, assim, uma expressão trágica dessa liberdade negada, ele escolhe a morte, pois não vê outra opção para escapar de uma dor que parece ser maior do que ele pode suportar.

O Project84 não é apenas uma reflexão sobre a estatística do suicídio masculino; ele é um convite a repensar as condições que produzem essas estatísticas. O número de 84 mortes semanais não deve ser apenas uma estatística a ser registrada, mas um grito por mudança. A instalação nos lembra que cada número representa uma pessoa, e cada pessoa tem uma história que não pode ser reduzida a um simples dado. O Project84 revela a brutalidade de um sistema que não ouve, que ignora a dor que está sendo mascarada pelas estatísticas. A instalação exige uma resposta não apenas intelectual, mas emocional e social,  uma chamada à ação para repensarmos como tratamos o sofrimento masculino e como podemos criar uma sociedade mais empática e acolhedora.

Ao final, o Project84 não resolve o enigma dos suicídios masculinos, mas nos obriga a olhar para ele de uma maneira que os números sozinhos não podem fazer. Ele nos força a confrontar a realidade das vidas perdidas, das dores não expressas e das vidas que poderiam ter sido salvas. Em uma sociedade que frequentemente se esquiva da dor emocional dos homens (sobretudo, talvez, por que há uma violência de gênero, da qual somos culpados), a obra de Jenkins e Fernandez surge como um grito de alerta, lembrando-nos da importância de escutar não apenas os números, mas as histórias por trás deles.

Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis

Suporte emocional
As pessoas que precisam de ajuda podem recorrer ao Centro de Valorização da Vida (CVV), grupo de voluntários que oferecem apoio emocional gratuito. Saiba mais.

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