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Entre Luz e Sombra: Philosopher in Meditation (1632), de Rembrandt

(Philosopher in Meditation, Rembrandt Harmenszoon van Rijn, 1632. Óleo sobre madeira, 112 x 87 cm. Museu Mauritshuis, Haia, Países Baixos.)

 

Rembrandt, em Philosopher in Meditation (1632), não nos entrega uma ilustração da filosofia, mas sua própria respiração suspensa. A cena é composta por poucos elementos: um interior modesto, de madeira envelhecida, uma escada em espiral que se dissolve na penumbra, uma mulher sentada junto ao fogo, e, ao centro, um velho pensador curvado, absorvido pela própria presença. A luz que invade o aposento, essa luz densa e espiritual, marca de Rembrandt, não ilumina o filósofo para os outros, mas o envolve em uma espécie de epifania silenciosa. Não é um retrato do discurso! Neste quadro há o peso do tempo, a presença do pensamento.

Essa não é uma alegoria clássica da razão, como nas pinturas neoclássicas. Não vemos símbolos da lógica ou da erudição. O “filósofo” aqui é quase indistinto, não sabemos seu nome, sua escola, seu livro. Ele pensa como se respira. Está entregue ao próprio ser, ao lento desdobramento da consciência que não se expressa em palavras, mas se curva sobre si mesma. Como em certos momentos de Heidegger, o pensar aqui não é produção de conceitos, mas um escutar. Uma escuta do Ser, da finitude, do silêncio que habita o tempo.

A escada em espiral, à esquerda, é talvez o símbolo mais poderoso e discreto da pintura. Ela não leva diretamente a lugar algum. Não há começo nem fim visível. É o percurso do pensamento que sobe e desce, que se enrosca sobre si, que não promete saída. A filosofia, sugerida por Rembrandt, não é caminho reto: é espiral. E essa espiral se dá no interior do espírito, onde cada volta é retorno e superação, repetição e diferença. Trata-se de um labirinto ontológico, em que o filósofo se perde e se encontra a cada instante, não como um exercício racional, mas como destino existencial.

A mulher junto ao fogo, aparentemente entregue a tarefas domésticas, não é menos essencial. Ela representa o outro polo da vida: o cotidiano, o calor do mundo, a persistência da vida comum. Ela não olha para o filósofo. Habita outra dimensão, ou talvez a mesma, por outro modo. Enquanto o pensamento se recolhe, o mundo continua. Essa coexistência silenciosa entre o pensamento e o vivido lembra que o filosofar não é fuga do mundo, mas outra forma de habitá-lo. O fogo, neste caso, é o sopro vital que permite ao pensamento não se tornar abstração. A filosofia, para não morrer de si mesma, precisa desse fogo, da mulher, do corpo, do tempo que cozinha o pão enquanto o espírito vagueia.

A luz que banha o filósofo vem de fora, mas sua origem permanece incerta. É uma luz que não projeta sombra nítida. Ela se funde com a penumbra, tornando o espaço pictórico espesso, lento. Essa luz não é a da razão cartesiana, clara, distinta, geometrizante, mas uma luz íntima, interior, quase espiritual. É como se Rembrandt nos dissesse que o pensamento verdadeiro não é iluminação total, mas convivência com o obscuro. A clareza, aqui, é sempre parcial, sempre entrecortada por sombra. Pensar é acolher esse claro-escuro do mundo.

A pintura se torna, então, uma meditação sobre a própria natureza do tempo e da interioridade. O filósofo não está “produzindo” nada. Ele está sendo. E esse “ser” diante do tempo, diante do silêncio, diante da morte, esse é o gesto mais filosófico possível. Ele não responde a perguntas: ele as sustenta. Ele é a própria pergunta, silenciosa, dobrada em si, contida no corpo frágil, na cabeça inclinada, no sopro de luz que insiste em pousar sobre sua testa.

Rembrandt não nos mostra um filósofo no sentido acadêmico. Mostra-nos um homem atravessado pela tarefa do pensar, no mais humano e essencial dos sentidos. A filosofia não é sua profissão. É sua condição. Uma solidão que não é isolamento, mas morada. Um quarto modesto que, por instantes, torna-se templo. Uma escada que sobe para dentro.

Philosopher in Meditation é do que é. Não é uma imagem da sabedoria. Como sempre digo aos meus alunos (evocando Platão), e como hão se lembrar minhas filhas, Helena Poesia e Aurora Poesia: filósofo não é aquele que sabe, não é o sábio! Mas aquele que está disposto a se colocar no caminho da sabedoria. É isso que vejo no quadro de Rembrandt: o ser que pensa, o ser que sofre, o ser que persiste na meditação. Em tempos de pensamentos artificiais e velocidade, essa pintura nos convida a uma ética da lentidão, da interioridade, da escuta. Pensar, Rembrandt parece sussurrar, não é gritar ideias. É sentar-se em silêncio, inclinar a cabeça, deixar que a luz e a sombra nos toquem.

E nisso, sem alarde, Rembrandt torna visível o que raramente é visto: a dignidade do espírito em sua mais humilde e solene forma.

Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis

OBS.: No Museu Mauritshuis, onde a obra está, ela é referida como “Filosof in meditatie” em holandês.

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