
(Segunda Tentação: o Suicídio, 1983. Emeric Marcier. óleo sobre tela. 73,00 cm x 72,00 cm)
O que se vê não é uma pintura devocional. É uma armadilha. A imagem atrai como quem oferece consolo, mas o que entrega é desespero. Um homem, e nada mais que um homem (demasiado homem!), está em pé, sobre um pináculo, diante de um mundo mudo. Lá embaixo, o chão. Atrás de si, a religião; diante de si, o abismo. E uma voz que não grita, mas sussurra: “Salta.” Não se trata do Diabo. O tentador aqui tem outra forma. Talvez não tenha forma alguma. Não é um ser, é uma ideia: a ideia de que tudo pode acabar agora. Não por necessidade, mas por escolha. Por liberdade. Este é o veneno: que o fim esteja nas mãos do próprio sujeito. A tentação não está em ceder à dor, mas em fazer da dor um argumento lógico, racional, definitivo. Há algo profundamente moderno, e portanto desesperador, nisso. Pois se no deserto o diabo ofereceu pão, aqui oferece coerência.
A figura central é Jesus, mas poderia ser qualquer um. Ali não há auréola, não há milagre, não há luz. Há apenas um corpo vertical, contido, que parece estar ali há muito tempo. E o que está em jogo não é Deus, nem doutrina. É a continuidade. A pintura não mostra um momento de crise, mas de decisão. A tensão não está no conflito, mas na consciência clara de que é possível acabar com tudo com um simples passo. E não há ninguém para impedir. Há silêncio na cena. Um silêncio que não consola. É o silêncio do mundo quando já se disse tudo. O silêncio depois da oração, depois do argumento, depois da fé. Resta apenas a liberdade. E ela pesa.A altura é simbólica, sim, mas não alegórica. Não há céu sobre a cabeça de Jesus. Há apenas ar. E esse ar é rarefeito. Nele, respira-se mal. É o ar da lucidez extrema, que revela que não há sentido dado. Que se o sentido existe, terá de ser sustentado à força. Que todo sentido que não for conquistado é mentira. O salto, então, aparece como a única forma honesta de lidar com a farsa. E é por isso que não saltar exige mais coragem que saltar.
O título é cru: “O Suicídio”, com o anteposto da Segunda Tentação, que é descritivo, informativo. Não há metáfora aqui. Marcier diz o que quer dizer. Não é uma tentação qualquer, é a tentação de desaparecer. E não como punição, ou revolta, mas como gesto filosófico. A pintura pergunta, como perguntaria Camus, se vale a pena continuar. E a resposta que se sugere não está no rosto de Cristo, mas em sua imobilidade. Ele não pula. Mas tampouco sorri. É um erro ver nessa recusa um triunfo. Não há vitória. Há apenas recusa. E recusar o salto não é salvar-se — é escolher sofrer. Escolher seguir. Não por promessa de sentido, mas por um tipo de fidelidade que não se explica. Há dignidade nisso, mas não glória. Há seriedade. E um certo desamparo também. Porque o mundo não responde. O gesto de não saltar permanece sem eco. Não há aplauso. Há apenas mais tempo.
O mal, nesta pintura, não vem com chifres. Vem com argumentos. Fala como quem sabe. Cita as Escrituras. Justifica o salto com lógica, com exegese, com piedade. É um mal que convence. E o mais perigoso é que não está fora. Está dentro. A voz do tentador é a mesma que sussurra nos momentos em que a alma se esgota. Ela não grita. Não obriga. Apenas propõe. E o que propõe é simples: “Poderias acabar com isso.” Jesus não responde. Fica em pé. E isso é tudo. Sua recusa é muda. Não há heroísmo, não há metáfora. Apenas um corpo que permanece no tempo. Um corpo que aguenta. E isso, nesta pintura, é mais sagrado do que qualquer milagre. O quadro não é sobre Deus. É sobre estar vivo quando tudo diz que não vale a pena. É sobre continuar mesmo sabendo que não há resposta. E, sobretudo, é sobre a solidão dessa decisão. Porque, em última instância, ninguém pode fazê-la por nós.
Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis
PARA SABER MAIS SOBRE ESSE PINTOR, QUE VIVEU PARTE DE SUA VIDA NO BRASIL: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/53/V%C3%ADdeo_Ag%C3%AAncia_Nacional_07.webm
