
(Bilhete de despedida de Flávio Migliaccio, divulgado pela imprensa (NaTelinha / UOL) em maio de 2020, uso documental, conforme artigo 46 da Lei de Direitos Autorais.)
A discussão sobre o direito a uma morte digna, no Brasil, permanece trancafiada numa espécie de tabu moral, desses que preferimos empurrar para debaixo do tapete coletivo, impedindo-nos de encarar, com mínima lucidez e alguma coragem, o sofrimento real de milhares de pessoas, sobretudo das mais idosas. Quando falamos em morte digna não estamos falando do suicídio comum: trata-se do direito elementar de não ser condenado a permanecer vivo contra a própria vontade, quando a vida já não guarda dignidade, autonomia, desejo ou sequer a promessa de algum sentido. É quase uma ficção de mau gosto esse falso princípio segundo o qual toda vida, por ser vida, deve ser mantida a qualquer custo. E, não raro, esse custo é alto demais… e sempre debitado na conta do outro, a quem se nega até mesmo o direito de dizer o que sente. Mas a dignidade, esse nome grave da condição humana, não se mede pelo simples prolongamento de um organismo que respira. A própria ideia de dignidade na morte exige da sociedade, dos cidadãos, dos intelectuais, dos professores, dos profissionais de saúde, dos políticos, enfim, exige de todos, ao menos, o debate público e a necessidade de pensarmos juntos o que estamos fazendo quando não estamos fazendo nada.
A velhice no Brasil, nesse país que ainda não ousa discutir o direito a uma morte digna, deixou de ser uma estação do espírito para tornar-se, pela ausência de debate e pela proibição à dignidade da despedida, um simples intervalo de sobrevivência, um tempo suspenso em que já não se pode, por escolha, viver a própria morte. Cuida-se do corpo como quem cuida de um mecanismo que não pode parar; abandonam-se, porém, os territórios mais delicados: o sofrimento psíquico, a solidão estrutural, a perda da autonomia, o desejo silencioso de descanso. É precisamente nesse abandono que muitos idosos descobrem o limite entre viver e doar-se a si mesmos uma morte que consideram justa. E quando o Estado lhes nega qualquer forma de assistência legal, resta-lhes apenas a via trágica: ou viver contra a própria vontade, ou morrer por meios violentos, angustiantes, solitários.
Como um oráculo que não explica, mas adverte, os números falam. O gráfico a seguir, referente ao Rio Grande do Sul em 2024, foi divulgado em Setembro de 2025 no BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO RS, e mostra o que não ousamos admitir em voz alta: o suicídio crescente e presente entre os mais velhos, sobretudo entre os homens. A curva, para além da estatística, exige a não indiferença:

Fonte: Sinan – Secretaria da Saúde do RS.
É impossível contemplar esses números sem ouvir, por trás deles, uma dor que ultrapassa o que a moral dominante consegue decifrar. Após os 60 anos, a taxa masculina cresce como se subitamente deixasse de encontrar razões para permanecer: ultrapassa 30 casos a cada 100 mil habitantes, por ano, entre 60–69 anos (a média geral no Brasil é 7,5); passa de 40 entre 70–79; e beira 50 entre aqueles cujo tempo já chegou à sua estação final. Essas mortes não são frutos do acaso, é esse ponto que precisamos enquanto sociedade discutir: são, muitas vezes, escolhas silenciosas feitas por quem já não encontra acolhimento, por quem não se reconhece no que restou de si, por quem já não consegue mais habitar a própria vida.
Enquanto isso, em países que tratam o fim da vida com seriedade ética, como a Suíça, para citar o exemplo mais amplamente conhecido, existem protocolos rigorosos que permitem assistência ao morrer: autonomia da vontade, sofrimento intolerável, discernimento preservado, ausência de coação, avaliação por equipes multidisciplinares. Clínicas como a Dignitas (que possibilitam o suicídio assistido) não “estimulam” a morte; oferecem, isso sim, um espaço humano para que ela aconteça de modo lúcido, sereno e acompanhado, quando a pessoa assim o deseja e quando sua condição já se encontra para além do suportável.
No Brasil, contudo, nada disso existe. A proibição da eutanásia voluntária e do suicídio assistido obriga indivíduos em sofrimento extremo, ou aqueles que já decidiram lucidamente o tempo de sua morte, a dois caminhos igualmente cruéis: continuar vivendo uma vida que já não lhes pertence ou lançar-se a mortes violentas, clandestinas e desesperadas. O Estado, nesse ponto, exerce uma função paradoxal e brutal: protege a vida orgânica enquanto abandona, sem pudor, a vida espiritual, emocional e relacional. É como se bastasse um corpo que respira para decretar que tudo está em ordem, ainda que o sujeito por trás desse corpo já não encontre qualquer lugar no mundo.
Nesse deserto moral, gostaríamos de recordar a carta de Paul Lafargue como testemunho de que existem decisões amadurecidas, lúcidas e justificadas, decisões que não nascem do desespero, mas da consciência plena da própria finitude. Aqui se revelam as relações entre o suicídio assistido e o suicídio comum: quando não há assistência legal para morrer, toda a responsabilidade pelo gesto retorna às mãos da criatura, que se vê obrigada a transformar uma morte escolhida em um suicídio comum. Em vez de um suicídio assistido, digno, acompanhado e consciente, produz-se sua sombra mais triste, a morte solitária, improvisada, sujeita ao fracasso, à violência e ao sofrimento derradeiro que poderia ter sido evitado. Ao invés dessa morte triste, para lembrar mais uma vez Nietzsche, tal como já discutimos no Lysis, a morte poderia ser uma festa, um momento solene de última reunião entre amigos e familiares, uma despedida digna e preparada, uma festa importante.
VEJAMOS O CASO DE PAUL LAFARGUE
Paul Lafargue (1842–1911) foi um pensador marxista franco-cubano, jornalista, ativista socialista e escritor. Ele foi uma figura central no movimento operário francês, cofundador do Partido Operário Francês e tradutor das obras de Karl Marx para o francês. Sua produção intelectual é vasta: entre seus escritos mais famosos está Le droit à la paresse (O Direito à Preguiça), que critica a adoração do trabalho sob o capitalismo. Lafargue era genro de Karl Marx: casou-se com Laura Marx, filha de Marx, em 1868. Laura era sua companheira de militância: ela traduziu textos, participou da agitação socialista e viveu ao lado dele os altos e baixos da causa revolucionária. Nos últimos anos de vida, Lafargue se afastou progressivamente da militância ativa. Morava com Laura na pequena cidade de Draveil, nos arredores de Paris.
Em 26 de novembro de 1911, aos 69 anos, com a mente lúcida e o corpo ainda vigoroso, ele e Laura decidiram morrer juntos, antes que a velhice lhes roubasse aquilo que mais prezavam: a liberdade de espírito.
Lafargue, em suas palavras finais, buscava preservar a dignidade contra a dissolução que antevia. Sua decisão repercutiu na Europa como uma provocação e um escândalo, mas também como um manifesto silencioso sobre a soberania da vontade quando a vida já não se reconhece a si mesma. Jornais franceses e alemães noticiaram a morte do casal com surpresa e respeito; muitos socialistas lamentaram profundamente a perda, mas reconheceram a coerência filosófica e existencial de sua escolha. Não houve sensacionalismo, ao menos nos principais jornais que conseguimos examinar, isso é notável: houve espanto e reflexão.
A seguir, o bilhete deixado por Paul Lafargue, um documento histórico em domínio público, exatamente como foi encontrado ao lado de seu corpo, em 26 de novembro de 1911:
« Sain de corps et d’esprit, je me tue avant que l’impitoyable vieillesse qui m’enlève un à un les plaisirs et les joies de l’existence et qui me dépouille de mes forces physiques et intellectuelles, ne paralyse mon énergie, ne brise ma volonté et ne fasse de moi une charge à moi et aux autres. Depuis des années, je me suis promis de ne pas dépasser les 70 années, j’ai fixé l’époque de l’année pour mon départ de la vie, et j’ai préparé le mode d’exécution pour ma résolution, une injection hypodermique d’acide cyanhydrique. Je meurs avec la joie suprême d’avoir la certitude que, dans un avenir prochain, la cause pour laquelle je me suis dévoué depuis 45 ans triomphera. Vive le communisme, vive le socialisme international. » (https://www.bibliomarxiste.net/auteurs/lenine/discours-aux-obseques-de-p-et-l-lafargue/ Acesso em 17 de nov. de 2025.)
Em português:
Sãos de corpo e mente, estou me matando diante da velhice impiedosa que está me roubando, um a um, os prazeres e alegrias da existência e me despojando de minha força física e intelectual, paralisando minha energia, quebrando minha vontade e me tornando um fardo para mim mesmo e para os outros. Por anos, prometi a mim mesmo não viver além dos 70 anos, marquei a época do ano para minha partida desta vida e preparei o método de execução da minha resolução: uma injeção hipodérmica de ácido cianídrico.” Morro com a suprema alegria de saber que, em breve, a causa à qual me dediquei por 45 anos triunfará. Viva o comunismo, viva o socialismo internacional!
A decisão de Paul Lafargue é profundamente filosófica. Ele não se entrega ao desespero; escolhe o momento de partir com lucidez, coerência e convicção política. Em certo sentido, realiza o ideal nietzschiano de “amar o próprio destino”: ele vê o fim como parte de uma narrativa completa, não como falha de vontade ou degradação inevitável, mas como desfecho consciente de uma vida comprometida.
Esse tipo de morte lança uma provocação ética poderosa para discutirmos hoje: se alguém, em lamentável juízo, conclui que seu tempo se esgota, não apenas fisicamente, mas espiritualmente, e deseja partir com consciência e dignidade, por que não permitir que isso ocorra sob condições reguladas? A morte de Lafargue e Laura está muito longe de uma apologia do suicídio, mas pode ser vista como um chamado à responsabilidade social e política: para que possamos reconhecer que a autonomia sobre a própria vida deve incluir, em certas circunstâncias, a autonomia sobre a própria morte.
Convocamos, assim, toda a nossa comunidade, a pensar algumas questões:
1. O que distingue uma morte escolhida de uma morte desesperada? 2. O que significa “direito à própria morte”? Há limites para essa autonomia? Até onde vai a liberdade individual diante da própria finitude? Há diferença entre autonomia como princípio e autonomia como prática real, atravessada por sofrimento, contexto social e abandono? 3. Por que nossa sociedade insiste em tratar toda decisão de morrer como sintoma patológico? 4. O Brasil proíbe eutanásia e suicídio assistido: o que isso revela sobre nossa concepção de corpo, alma e soberania pessoal? A quem pertence a morte? Qual é o papel do Estado e das instituições religiosas na determinação de continuar vivendo? 5. Quais dilemas morais emergem quando alguém deseja morrer sem sofrimento, lucidamente? 6. Como lidar com pessoas que vivem um sofrimento refratário, sem alívio possível? 7. É mais ético obrigar alguém a viver contra sua vontade, quando apresenta razões e justificativas insuperáveis, ou permitir uma morte pacificada, digna, acolhida? Se não permitimos a morte assistida, quando há razões irrefutáveis, somos imorais e inumanos? 8. Por que o sofrimento na velhice ainda é interpretado apenas como um problema médico, e não como questão de sentido, dignidade e liberdade? A velhice é tratada como sobrevivência, não como vida? Que papel o etarismo desempenha na negação da morte digna? 9. A eutanásia voluntária pode ser compreendida como um exercício extremo de liberdade? Em que sentido a decisão de morrer pode ser comparada a outras decisões existenciais profundas? O que significa, no horizonte filosófico, “escolher a própria hora”? 10. Como pensar a diferença entre deixar morrer (ortotanásia) e ajudar a morrer (morte assistida)? Que distinções éticas precisam ser recuperadas? 11. A morte assistida é uma ameaça aos vulneráveis, ou uma salvaguarda contra sofrimentos desnecessários? É possível construir um modelo ético e jurídico que proteja tanto a autonomia quanto os vulneráveis? 12. Seria aceitável, no Brasil, um modelo de morte assistida fora do SUS? Isso não criaria um privilégio de classes economicamente mais ricas? 13. O que as tradições religiosas realmente dizem sobre o fim da vida? Existe uma interpretação não punitiva da morte voluntária no cristianismo? O que, nas proibições morais sobre o fim da vida, é realmente princípio religioso, e o que é apenas herança histórica que repetimos sem perceber? 14. Quais elementos filosóficos, jurídicos e clínicos devem entrar na conversa? Quais outros elementos? Como articular saúde mental, sofrimento existencial e autonomia sem simplificação?
Responder a essas questões, levantadas pelo Lysis, é uma tarefa coletiva.
Ao final do texto dessa semana, e antes de encerrarmos esta convocação ao debate, é impossível não ouvir sobre tudo o que aqui discutimos, como uma terrível música de fundo, bela e trágica, a voz solitária de Flávio Migliaccio, ator brasileiro, que em 2020, já na velhice, escreveu seu último bilhete, lido hoje quase como diagnóstico e epitáfio da própria nação:
“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora... num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças.”
O país que força seus velhos a esse tipo de despedida é o mesmo que proíbe qualquer discussão séria sobre a dignidade do morrer. A carta de Migliaccio é o testemunho lúcido de alguém que viu a velhice brasileira de dentro, que sentiu na carne o abandono, a falta de sentido, o colapso das políticas públicas e o silêncio covarde de uma sociedade que se recusa a olhar para seus próprios mortos e moribundos. Como Lafargue, à sua maneira e no seu tempo, Migliaccio clamava por lucidez. Dizia o que ninguém deseja ouvir: que o sofrimento moral, espiritual e existencial pode ser tão insuportável quanto o sofrimento físico, e que a velhice, quando não encontra dignidade, pode converter-se em um exílio dentro da própria vida.
Se a carta de Lafargue foi escrita como manifesto político, a de Migliaccio é um grito social. Uma revela a liberdade lúcida de quem escolhe; a outra denuncia a injustiça de quem não pôde escolher. Entre elas, há um mesmo chamado ético: precisamos falar do direito a uma morte digna no Brasil. Precisamos olhar para o sofrimento de quem vive além do que deseja viver, não por escolha, mas por falta de alternativas. Precisamos romper o tabu que nos condena à hipocrisia, que nos faz temer a morte mais do que tememos a falta de humanidade.
Migliaccio pediu apenas que cuidássemos das crianças. Mas, sem ser explícito e mais radicalmente, também pediu que cuidássemos dos velhos, inclusive daqueles que, na solidão de suas últimas horas, só desejavam um modo digno de partir.
Todo respeito aos que não encontraram amparo na hora de morrer, quando, diante de suas próprias razões, já não vislumbravam nenhuma razão para permanecer entre nós.
Alexandre H. Reis
(Professor e aluno).
