
Tradução de Alexandre H. Reis[i]
Recentemente, aconteceu de eu discutir com um de nossos escritores (um grande artista) o caráter cômico da vida e a dificuldade de definir um fenômeno pela palavra adequada.[ii] Antes disso, eu havia comentado que, embora conheça A desgraça de ter espírito há quase quarenta anos,[iii] só neste ano compreendi de fato uma das personagens mais vívidas da comédia, justamente Molchalin — depois que o escritor com quem conversava me explicou Molchalin ao representá-lo, inesperadamente, em uma de suas sátiras. (Algum dia vou me deter sobre Molchalin. É um grande tema.)[iv]
— “Sabe”, disse-me de repente meu interlocutor, que aparentemente há muito se deixara impressionar por essa ideia, “sabe que, por mais que se escreva ou represente, por mais que se tente descrever num trabalho literário, jamais se iguala à realidade? Não importa o que você delineie, será sempre mais fraco que a vida real. Você pode pensar que, numa obra, alcançou o máximo de comicidade em algum fenômeno da vida, que captou seu aspecto mais grotesco — nada disso! A realidade logo se revelará em uma forma ainda mais absurda, numa dimensão que você jamais suspeitara e que supera tudo o que sua observação e imaginação puderam criar…”[v]
Isso eu já sabia desde 1846,[vi] quando comecei a escrever — talvez até antes. Sempre me impressionou esse fato, e a aparente impotência da arte fazia-me questionar sua utilidade. De fato, basta observar um acontecimento da vida real — mesmo um que, à primeira vista, não pareça expressivo — e, se você tiver olhos para ver, perceberá nele uma profundidade que nem Shakespeare alcançou. Mas a questão é: comparado com a visão de quem? E quem é capaz disso? Pois não apenas criar e escrever obras de arte, mas até discernir um fato requer algo do artista. Para alguns observadores, todos os fenômenos da vida se desenvolvem com uma simplicidade comovente e tão clara que não valem reflexão nem olhar mais atento. Entretanto, os mesmos fenômenos podem embaraçar outro observador a tal ponto (e isso acontece com frequência) que ele acaba incapaz de sintetizá-los ou simplificá-los, de alinhá-los numa linha reta e assim acalmar o próprio espírito. Então, recorre a outro tipo de simplificação e, muito simplesmente, enfia uma bala na cabeça para extinguir, de uma vez, sua mente fatigada e todas as suas indagações.[vii] Eis os dois extremos entre os quais se encerra o somatório da inteligência humana. Mas é evidente que jamais conseguimos esgotar um fenômeno, nunca alcançamos seu fim nem seu início. Conhecemos apenas o cotidiano, o aparente e o corrente — e isso apenas na medida em que se mostra a nós, ao passo que os começos e os fins ainda constituem, para o homem, um domínio do fantástico.
A propósito, no verão passado, um de meus estimados correspondentes escreveu-me sobre um suicídio estranho e indecifrável, e desde então tenho pensado em comentá-lo.[viii] Nesse suicídio, tudo é enigma — por fora e por dentro. Naturalmente, conforme é da natureza humana, procurei de algum modo desvendar o mistério, para poder deter-me em alguma explicação e “acalmar-me”.
A suicida era uma jovem de vinte e três ou vinte e quatro anos, filha de um conhecido emigrado russo; nascera no estrangeiro, de pais russos, mas quase nada tinha de russa em sua formação. Creio que houve uma breve menção a ela nos jornais da época, mas os detalhes são curiosíssimos: “Ela embebeu um pedaço de algodão em clorofórmio, amarrou-o ao rosto e deitou-se na cama… E assim morreu.” Antes de morrer, escreveu o seguinte bilhete:
“Je m’en vais entreprendre un long voyage. Si cela ne réussit pas qu’on se rassemble pour fêter ma résurrection avec du Cliquot. Si cela réussit, je prie qu’on ne me laisse enterrer que tout à fait morte, puisqu’il est très désagréable de se réveiller dans un cercueil sous terre. Ce n’est pas chic!”
O que quer dizer:
“Estou prestes a empreender uma longa viagem. Se não der certo, que se reúnam para festejar minha ressurreição com uma garrafa de Cliquot. Se der certo, peço que só me enterrem quando eu estiver completamente morta, pois é muito desagradável acordar num caixão debaixo da terra. Não é chic!”
Nesse “chic” vulgar e repugnante, a meu ver, ressoa um protesto — talvez indignação, talvez cólera —, mas contra o quê?[ix] As pessoas grosseiras matam-se apenas por uma causa material, visível, externa; mas pelo tom do bilhete, percebe-se que aqui não podia haver causa alguma desse tipo. Contra o quê, então, se dirigia a indignação? Contra a simplicidade do visível? Contra a falta de sentido da vida? Seria ela uma dessas juízas e negadoras da existência, indignadas com o “absurdo” da aparição do homem sobre a terra, com o acaso sem propósito dessa aparição, com a tirania da causa inerte à qual não se consegue resignar?
Parece tratar-se aqui de uma alma revoltada contra a “retilineidade” dos fenômenos, incapaz de suportar essa linearidade que lhe fora inculcada desde a infância, na casa do pai. O mais terrível é que, certamente, ela morreu sem qualquer dúvida consciente. É bem provável que sua alma fosse destituída de dúvida ou de indagação. Do mesmo modo, é provável que acreditasse, sem verificação alguma, em tudo o que lhe haviam ensinado desde a infância. Isso significa que ela morreu simplesmente de “frio, escuridão e tédio”, com um sofrimento quase animal e inexplicável; começou a sufocar como quem sente faltar o ar. A alma, inexplicavelmente, mostrou-se incapaz de suportar a retilineidade e, inexplicavelmente, exigia algo mais complexo…
Há cerca de um mês, todos os jornais de Petersburgo publicaram algumas linhas, em letras miúdas, sobre outro suicídio na cidade: uma jovem pobre, costureira, atirou-se da janela do quarto andar “porque já não conseguia encontrar trabalho para sustentar-se”. Acrescentava-se que ela saltou e caiu ao chão segurando um ícone nas mãos.[x] Esse ícone nas mãos é um traço estranho e nunca visto num suicídio! Foi um suicídio tímido e humilde. Aqui, ao que parece, não houve queixa nem protesto: simplesmente tornou-se impossível viver — “Deus não quer” —, e ela morreu, depois de fazer suas orações.
Há certas coisas — por mais simples que pareçam — sobre as quais não se deixa de meditar por muito tempo; elas voltam em sonhos, e chega-se a pensar que se tem alguma culpa nelas. Essa alma mansa que se destruiu involuntariamente continua a inquietar o espírito.[xi] Foi precisamente essa morte que me lembrou o suicídio da filha do emigrado, de que me falaram no verão passado. Mas quão diferentes são essas duas criaturas; parecem ter vindo de dois planetas distintos! Quão diferentes essas duas mortes! E qual das duas almas terá sofrido mais na terra — se é que uma pergunta tão ociosa pode ser feita?
NOTAS DO TRADUTOR
[i] Embora eu conheça bem o alfabeto russo e consiga ler o texto russo, estou ainda longe de compreendê-lo a ponto de traduzi-lo com segurança. Falta-me, sobretudo, o vocabulário necessário para apreender todas as nuances de uma língua tão densa e espiritual. Nós, que aprendemos desde cedo, pelas próprias exigências dos estudos filosóficos, a ler os textos gregos (estudei grego no curso de Letras da UFMG, nos tempos da minha graduação em Filosofia), encontramos no russo uma familiaridade visual e estrutural, mas também um abismo semântico. Assim, a tradução utilizada aqui é a partir da tradução inglesa do texto russo, que faço com o original russo sempre ao lado, como referência e horizonte de leitura. Utilizei a seleção de textos de Fiódor Dostoiévski que provém da coletânea intitulada The Diary of a Writer (1873-1881) (em russo Zapiski iz Pis’mennika) e está disponibilizada no acervo digital The Ethics of Suicide Digital Archive, hospedado pela Universidade de Utah (para ler o texto em inglês: https://ethicsofsuicide.lib.utah.edu/selections/fyodor-dostoevsky/). Nesta edição, somos apresentados a uma série de ensaios curtos e mediatos: “In Lieu of a Preface on the Great and Little Bear, on the Prayer of the Great Goethe, And, Generally, on Bad Habits”, “Two Suicides”, “The Verdict”, “Arbitrary Assertions”, “A Few Words About Youth”, “On Suicides and Haughtiness”, “The Boy Celebrating His Saint’s Day”, “The Dream of a Strange Man: A Fantastic Story”. Do ponto de vista editorial, cabe salientar que este formato de “seções soltas” caracteriza o modo como Dostoiévski entende o ensaio como exercício de reflexão moral, cultural e existencial, em que o fenômeno do suicídio (tema central nesta seleção) aparece em permutação entre testemunho social, intuição filosófica e denúncia espiritual.
[ii] A discussão inicial sobre o “caráter cômico da vida” é típica do pensamento tardio de Dostoiévski (década de 1870), quando ele via o riso como via de acesso ao real e à contradição humana — um eco de O idiota e do “riso de Cristo” em sua obra.
[iii] A desgraça de ter espírito (Gore ot uma, 1823) é uma comédia de Aleksandr Griboiedov. Dostoiévski, ao citar a peça, demonstra sua leitura contínua da literatura russa como autocrítica moral e política.
[iv] Molchalin é uma personagem da comédia Горе от ума (O infortúnio de ter juízo, 1824), do dramaturgo russo Aleksandr S. Griboiédov (1795–1829), uma das obras fundadoras da literatura moderna russa. Subordinado servil e ambicioso, Molchalin representa o tipo social do oportunista sem princípios, que busca ascensão pela adulação e pela obediência cega às hierarquias. Sua figura tornou-se proverbial na cultura russa, simbolizando a mediocridade moral disfarçada de prudência — o “homem pequeno” que se adapta às conveniências do poder. Dostoiévski retomará esse arquétipo em personagens como Piotr Luzhin, em Crime e castigo (1866), e Andréi Versílov, em O adolescente (1875), nos quais a astúcia social substitui a profundidade espiritual.
[v] O tema da inferioridade da arte diante da vida reaparece em Memórias do Subsolo e em O idiota: a realidade supera a ficção porque nela o mal e o absurdo são concretos, não idealizados.
[vi] O ano de 1846 marca a publicação de Gente pobre, primeira obra de Dostoiévski — o início de sua reflexão sobre o sofrimento como revelador da alma russa.
[vii] Este trecho articula, de modo velado, a crítica de Dostoiévski ao racionalismo suicida do século XIX — antecipando os temas de Kiríllov (Os demônios) e do “homem do subsolo”: a razão que se volta contra a própria vida.
[viii] O caso da jovem emigrada pode ter sido inspirado em notícias reais de suicídios parisienses publicadas nos anos 1860. O tom ensaístico e quase jornalístico antecipa o Dostoiévski do Diário de um escritor (1873–1881).
[ix] O narrador aqui introduz um tipo de “niilismo estético”: o suicídio como revolta contra a linearidade, isto é, contra o mundo compreendido apenas como sequência racional de causas e efeitos — antecipando a crítica à modernidade como “retilínea”, sem transcendência.
[x] O suicídio da costureira constitui o contraponto cristão do ensaio: ao contrário da moça “chic”, sua morte é humilde, confessional, quase sacrificial. O ícone nas mãos evoca a pietas popular russa e sugere que a fé, mesmo na miséria, dá forma ao gesto extremo.
[xi] O encerramento retoma o tema da “culpa alheia”: o narrador sente-se responsável pela morte da costureira, antecipando a tese central de Os irmãos Karamázov: “Cada um de nós é culpado por todos e por tudo.”
