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Escutar o Pensamento de Morte: David Hume e a Desconstrução do Preconceito sobre o Suicídio

Melancolía. Pintura (Vanitas) de Domenico Fetti (1589-1624).

 

David Hume escreveu, em meados do século XVIII, um breve mas inquietante e polêmico ensaio: On Suicide (Do Suicídio). Redigido no calor das discussões iluministas sobre razão, providência e liberdade humana, o ensaio foi mantido fora de circulação pela primeira edição de Hume e só circulou abertamente após sua morte. Essa história editorial já é um indício da potência perturbadora do texto: Hume não propõe aqui um microrretrato da alma, nem uma defesa apaixonada do ato em si; propõe, com a clareza cortante que lhe é própria, desarmar as razões que historicamente transformaram o morrer voluntário numa acusação moral insofismável. O que ele faz é um trabalho de desconstrução das legitimações religiosas e sociais que cerceiam o juízo humano sobre a morte voluntária. Certamente o ensaio, este breve ensaio, o leitor haverá de concordar, tem um alcance filosófico, histórico e psicológico, e está precisamente muito bem fundamentado nessas três áreas do conhecimento. Passados quase trezentos anos, Do Suicídio mostra ao leitor do século XXI tanto o lugar que Hume ocupa na genealogia do pensamento secular moderno quanto a urgência de suas provocações para uma ética pública e crítica que saiba ouvir o pensamento de morte sem condená-lo por reflexo. Penso, particularmente, que este texto ainda tem a capacidade de nos mobilizar, de nos afetar, embora nossos tempos sejam, ao menos quando olhamos do alto e ao longe, mais abertos do que aquele século XVIII.

O contexto no qual esse filósofo admirável viveu, pensou e escreveu, certamente revela um tempo e uma situação próxima da ideia de encruzilhada: David Hume foi formado na tradição da filosofia britânica moderna, imerso na leitura dos antigos, permeado pelo espírito experimental e pelo ceticismo metódico. Não é gratuito que, entre as vozes invocadas no ensaio, apareça explicitamente “Túlio” (o Tullius do latim, ou seja, Cícero) e que Hume dialogue incessantemente com a memória da antiga filosofia romana e grega. Isso diz algo duplo: por um lado, Hume reclama a autoridade da história intelectual (os antigos discutiram e não unicamente proibiram); por outro, ele demonstra que suas conclusões nascem de uma prática filosófica que opera por analogia, exame de costumes e exame empírico, não por apelos a verdades reveladas. Na sua formação intelectual também se reconhece o contato com Montaigne, com a tradição cética e com a nova ciência natural: Hume pensa com o cosmopolitismo erudito de quem leu os clássicos, conhece as disputas teológicas e foi educado pela imagem desta providência natural que a física newtoniana tornara familiar, um quadro de leis gerais, regularidade e naturais conexões de causa e efeito.

A estrutura argumentativa do ensaio é, até onde a compreendo em seus contornos essenciais, simples e ao mesmo tempo radical: Hume reúne as objeções tradicionais (o suicídio seria uma injúria a Deus; seria uma ofensa à sociedade; seria uma injustiça para consigo mesmo, que remonta a uma longa tradição, de Aristóteles, passando por Agostinho, até a autoridade de Tomás de Aquino) e mostra, uma a uma, que nenhuma delas resiste a um exame consistente. O que caracteriza o movimento do seu raciocínio é uma combinação de naturalismo e hábito empirista: Hume começa sempre por recordar como as coisas realmente se processam, quais são as paixões e os usos humanos, e só então problematiza as normas que pretendem ser absolutas. Não se trata de racionalizar o ato por via de princípios abstratos, mas de colocar em evidência que a prática moral humana é sempre embebida em sentimentos, convenções e finalidades, e que o juiz supremo das normas deve ser, em última instância, a razão prática acompanhada do senso comum.

Contra a primeira objeção (o caráter sacrílego do suicídio) Hume desloca o debate. Ele relativiza o papel da providência, argumentando que, se tudo no mundo material obedece a leis gerais e imutáveis, e se a providência divina governa por esses mesmos princípios, então a intervenção humana que altera o curso dos eventos (construir casas, cultivar campos, introduzir remédios) não pode ser logicamente distinguida de um ato que antecipa a morte. A analogia é estratégica: a queda de uma casa ou a infusão de um veneno mata do mesmo modo que uma doença; negar ao indivíduo a faculdade de pôr termo à vida seria, por essa linha, uma inconsistente hierarquização de ações humanas. Hume não nega a providência; ele a reconstrói como um pano de fundo que admite a liberdade prática humana e que, se tudo compõe um universo ordenado, então as ações humanas também são partes da ordem. Assim, o que costuma ser apresentado como usurpação da soberania divina é, na visão humeana, uma leitura supersticiosa da providência, uma leitura que confunde o respeito com a servidão.

No segundo fio do argumento (o dever para com a sociedade) Hume é ainda mais inquietante: reivindica que a obrigação social é, em última instância, instrumental e ligada à utilidade. A vida impõe deveres enquanto somos cooperadores úteis; quando a existência se converte em fardo permanente, prolongá-la apenas para atender a uma norma abstrata é empobrecer tanto o indivíduo quanto a coletividade. Aqui Hume descansa numa economia moral: se a ação humana pode ser julgada por suas consequências para a felicidade geral, então a abdicação do viver, em casos extremos de miséria e dor insuportável, não é necessariamente um mal público. Ao contrário, Hume sugere, com um gesto provocador, que um exemplo corajoso e pensado de libertação pode, se imitado com prudência, aumentar a chance de felicidade para muitos. Essa frase final (que desconcertou seus primeiros leitores) não é um convite à contagioso romantismo suicida, mas uma interrogação sobre a coerência das nossas normas morais: por que glorificamos o soldado que se arrisca num campo de batalha e vilipendiamos quem põe termo à vida por motivos análogos?

No terceiro eixo (o dever para consigo mesmo) Hume veste sua crítica de uma tonalidade psicológica: o que importa para julgar um suicídio não é uma fórmula abstrata de propriedade divina, mas a qualidade concretíssima da vida da pessoa. Afirmar que a vida deve ser mantida “a todo custo” é, para ele, uma hipocrisia que ignora que a proteção da vida é já uma prática humana repleta de intervenções que alteram a sequência natural. Hume usa imagens prosaicas e por vezes cortantes (desviamos pedras que caem, dirigimos rios para mover máquinas) para mostrar que a relação do homem com a própria vida é prática, e que, se já admitimos manipular as causas naturais para preservar a vida, somos incoerentes ao proibir a manipulação para abrevá-la quando esta se converte em mal inevitável. Nesse ponto, volta a emergir o núcleo sentimentalista da sua filosofia moral: juízos de censura ou de aprovação nascem em última instância de sentimentos; reclamar um dever absoluto contra si próprio é cair na abstração que Hume combate.

A retórica de Hume, portanto, não é nem um panfleto utilitarista nem uma apologia hedonista do morrer precoce. Ela se sustenta num duplo movimento: denunciar a superstição, e com ela a hipocrisia institucional que confunde medo com moralidade, e restaurar um espaço de julgamento prático onde a singularidade da vida e do sofrimento humano sejam considerados. É por isso que, ao ler Hume hoje, não devemos reduzi-lo a um precedente de legislações permissivas; devemos antes situá-lo como um chamado à escuta e ao exame. Ele nos lembra que a linguagem de pecado e crime que cerca a morte voluntária não é um fundamento lógico, mas uma construção histórica que pode ser questionada.

Daí a atualidade do ensaio, segundo penso e defendo, para a construção de uma nova ética da escuta. Em sociedades que ainda estigmatizam o pensamento de morte, o ensaio de Hume tem ao menos duas grandes lições: primeiro, é preciso retirar o julgamento automático como primeiro movimento, isto é, substituir o fechar-se da moral condenatória pela abertura de uma atitude interrogativa; segundo, combinar essa abertura com uma prática de cuidado. Ouvir um pensamento de morte não exige concordância nem estímulo: exige compreensão da história de dor que o alimenta, reconhecimento das contingências sociais, pobreza, retraimento, sofrimento físico e psíquico, e a oferta de respostas que combinem apoio emocional, tratamento clínico e, quando for o caso, discussões sérias e respeitosas sobre autonomia e fim de vida. Hume dá ao leitor moderno um mapa conceitual: abalar o pilar do preconceito religioso não basta; é preciso construir instituições que ouçam sem condenar, que proponham assistência sem paternalismo e que reconheçam a agência sem desconsiderar a vulnerabilidade.

Tudo isto, porém, pede cautela. Os críticos de Hume apontaram, e com razão, segundo entendo, que seu ensaio pode ser apropriado descuidadamente para legitimar abandono social ou para banalizar a dor que pede resposta. Hume, com sua ênfase na liberdade individual, não se detém extensivamente na sociologia (ciência ainda inexistente em seu tempo) do sofrimento nem nas condições materiais que tornam a “escolha” de morrer uma opção profundamente coercitiva. A leitura contemporânea responsável do ensaio deve, portanto, combinar a sua radicalidade anti-punitiva com uma teoria robusta do cuidado, da ocupação com o outro, que reconheça fatores de influência, a importância de intervenções de saúde mental em um modelo apropriado à crítica anti-manicomial e a dimensão estrutural do sofrimento. A ética da escuta, sobre a qual sou disposto a pensar e a contribuir para sua construção, pode aprender com Hume a não ser um permissivismo libertário à margem das redes de cuidado; antes, um princípio que orienta que essas redes existam, que sejam acolhedoras, não estigmatizantes, e que ponderem, com rigor clínico e sensibilidade moral, entre proteção e respeito à autonomia.

Em última instância, Do Suicídio de Hume permanece um convite: ao pensamento, a não sucumbir à superstição; à política, a não confundir proibição com cuidado; à clínica, a escutar sem precipitar condenações; à filosofia, a não se isentar do labor moral com as dores extremas. Ler Hume é lembrar que as grandes questões do humano, sobre o valor da vida, sobre a dor, sobre a obrigação, resistem a fórmulas prontas, sobretudo resistem aquelas repedidas nos Setembros Amarelos e que advém uma psiquiatria acrítica. O seu ensaio nos empurra para um lugar desconfortável, mas fecundo: o lugar onde a razão se alia com a compaixão e onde o juízo moral só encontra legitimidade se for capaz de suportar o peso dos fatos e das vidas que o testam. É aí, precisamente aí, que se situa a urgência deste texto para os nossos dias.

Alexandre H. Reis

Pelotas, 30/09-01/10 de 2025.

(O texto de Hume está disponível em nosso site, na aba Próximo Encontro).

 

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