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O Estoicismo, Agostinho, Nietzsche e Trump, entre a razão e o desejo de dominação

 

Introdução
O estoicismo, essa filosofia antiga que propõe a busca pela serenidade e tranquilidade por meio do domínio racional das paixões, tem encontrado uma ressignificação considerável na contemporaneidade. Com suas raízes fincadas em ideais de autodomínio e autossuficiência, representados pelos conceitos de ataraxia (tranquilidade da alma) e apatheia (imperturbabilidade afetiva), o estoicismo ressurge como um caminho para muitos que buscam uma vida mais equilibrada, alheia às turbulências externas, às exigências pela fama nas redes sociais, às guerras com armas, ameaças e tarifas ou embargos. Em um mundo cada vez mais fragmentado e volátil, no qual até mesmo algoritmos se tornaram “interlocutores” da experiência humana, da carência dos que dizem não ter tempo para uma leitura lenta, não é de se espantar que o estoicismo tenha encontrado nova vida. A promessa de uma existência em que, apesar das tempestades, se mantém intacto o centro interior parece sedutora, sobretudo quando as condições externas parecem cada vez mais desafiadoras e imprevisíveis.
Mas esse renascimento do estoicismo contemporâneo, embora tenha ganhado adeptos, também nos convida a refletir sobre suas limitações e os desafios que ele impõe a uma vida plenamente humana. Afinal, a busca por um estado de serenidade imperturbável, muitas vezes desacompanhado do reconhecimento das próprias fragilidades e da interdependência humana, pode nos afastar de uma compreensão mais profunda e existencial de nossa condição. Em tempos em que a busca por controle sobre o que sentimos e pensamos se tornou um imperativo social, será que o ideal de um domínio rígido sobre as paixões, tão defendido pelos estoicos, não corre o risco de se tornar uma forma de negação de nossa humanidade mais vulnerável? Será que os palestrantes das redes sociais dominam as técnicas e os exercícios que podem conduzir a uma vida virtuosa? Será que conhecem os interlocutores do próprio estoicismo antigo? Toda posição filosófica corre o risco e cair no dogmatismo, no sono da razão, para lembrar a expressão de Kant, quando não é estudada em seu contexto de disputas e debates.
Pois bem, uma crítica fundamental à proposta estoica surge na filosofia cristã de Agostinho, que, ao avaliar a busca pela autossuficiência e o controle absoluto de si, aponta para a ilusão dessa meta. O ideal estoico não apenas ignora a verdadeira condição humana, (lembremos que Agostinho conseguiu em profundidade alargar a ideia de interioridade), marcada pela queda e pela corrupção do desejo (libido), mas também serve como uma máscara para um orgulho espiritual que impede o reconhecimento da fragilidade humana e da necessidade da graça divina. A ideia é interessante, mesmo se não seguirmos de coração a ideia cristã de graça: o ser humano, sozinho, abandonado em si mesmo, é incapaz de dominar a si mesmo, incapaz de fazer o uso correto de sua própria racionalidade, dado o poder do desejo, que inevitavelmente conduz a vontade a seus próprios objetos. A ideia grega segundo a qual o ser humano é um animal racional fica ela mesma balançada diante do exame do poder do desejo irracional. E se olharmos para o mundo, para nosso Brasil atacado por tarifas irracionais, ou para as guerras do mundo, não é difícil vislumbrar nos movimentos do poder esse desejo (ou do desejo desse poder).
O conceito de libido dominandi, desenvolvido por Agostinho em sua análise sobre a corrupção da vontade humana, oferece, na minha visão, uma chave interpretativa poderosa para compreender o comportamento político e social nos contextos contemporâneos, onde a busca incessante pelo poder e pela autossuficiência moral ainda predomina. A tentativa de dominação, seja sobre o outro, sobre o mundo ou sobre si mesmo, parece consistir em uma força que revela, paradoxalmente, a impotência do ser humano diante de sua condição caída, nos termos de Agostinho, ou de sua condição miserável, para usar nossos termos.
Minha proposta aqui é convidar o leitor a refletir sobre as tensões entre o ideal estoico de soberania de si e a crítica que Agostinho apresenta, destacando como essa crítica se mantém relevante para analisar as dinâmicas de poder na política contemporânea. Em particular, considero que o estudo da filosofia não pode ser dissociado de uma reflexão sobre o próprio mundo e o próprio tempo. Se uma ideia, conceito ou obra filosófica tem de fato relevância em seu contexto original, é porque ela toca, de algum modo, aspectos da natureza humana que parecem inalterados, mesmo com a transformação dos costumes e das épocas. Agostinho, gostemos ou não, é um clássico. E os clássicos são imortais, o que nada mais quer dizer senão que tem ainda o poder de nos tocar, de nos afetar, nós que estamos em outros tempos.
No fundo, ao menos para a filosofia e a literatura, não é a pessoa de carne e osso que se imortaliza, por óbvio, mas são suas ideias, seus conceitos, suas reflexões, seu poder de penetrar camadas mais profundas que a própria superficialidade de nossa consciência.
Penso que é o caso do conceito agostiniano de libido dominandi. Ele se aplica perfeitamente a certos comportamentos políticos recentes, como as políticas protecionistas de Donald Trump e, em nosso país, as ações de determinados líderes e famílias políticas que, no poder ou com o poder, arriscam não apenas o futuro e o presente de sua pátria, mas também se entregam a um desejo desenfreado de autopreservação e afirmação. Nesse processo, egóico e dominado pela contradição, o que vemos é uma inversão trágica: enquanto buscam controlar o destino do país e dos outros, acabam dominados por uma vontade disfuncional, que corrompe não só a política, mas as emoções daqueles que os seguem, nos quais não é difícil enxergar uma fragilidade emocional e uma carência de ideias.
Em um contexto político em que a “liberdade” e a “soberania” muitas vezes são usadas como justificativas para ações que revelam um desejo de controle absoluto, a libido dominandi não só se manifesta nas decisões de liderança, mas também nas relações de poder que essas decisões estabelecem. O comportamento de submissão dos seguidores, que se deixam envolver por essa retórica de poder e controle, é a face mais trágica desse fenômeno. E também o mais humano. A busca por um ideal de soberania ou independência acaba, ironicamente, por submeter os indivíduos a uma forma de servidão emocional, revelando que, ao final, o domínio do outro ou da situação é apenas a fachada de uma impotência ainda maior: o domínio da própria libido sobre si mesmo no mundo do poder.
Ao refletir sobre essas questões, quero em diálogo com o leitor que me acompanha, mostrar que, ao contrário do que o estoicismo preconiza, o domínio de si não é um ideal acessível sem o reconhecimento da falibilidade humana. A verdadeira paz, penso, não é fruto de um autodomínio racional, mas da rendição ao reconhecimento de nossa dependência em relação à nossa própria fragilidade. Talvez nesse reconhecimento há propriamente alguma força. Agostinho dizia, por sua vez, que essa paz está no reconhecimento de nossa dependência em relação à graça divina. Essa crítica agostiniana, longe de ser uma absoluta da filosofia pagã, abre caminho para uma reflexão existencial profunda sobre o poder, a vontade e a verdadeira liberdade humana.

  O Estoicismo e suas promessas de autossuficiência
O estoicismo, fundado por Zenão de Cítio no século III a.C., desenvolveu uma filosofia voltada para o autodomínio, a racionalidade e a busca pela tranquilidade interior, como já disse. Permitam-me de modo muito geral apresentar essa síntese: para a escola do estoicismo, a natureza humana possui uma capacidade única de alcançar a serenidade ao dominar suas emoções e paixões, que são vistas como fontes de perturbação e irracionalidade. O objetivo último da vida do sábio estoico é atingir a ataraxia, um estado de imperturbabilidade emocional por meio da apatheia, ou seja, a extinção das paixões desordenadas, como o medo, a ira, o desejo desenfreado e a inveja.
Essa filosofia, que propõe uma forma de vida autossuficiente, baseia-se na convicção de que a razão é a única guia verdadeira para uma vida virtuosa. O sábio estoico é aquele que compreende o que está sob seu controle, suas próprias representações, pensamentos e julgamentos, e aceita com serenidade aquilo que lhe é externo e, portanto, fora de seu domínio. A partir dessa visão, o controle das paixões, aliado ao cultivo da virtude, seria a chave para atingir a verdadeira felicidade. Mas notem, o cultivo da virtude, ou das virtudes, é aí que devemos compreender a filosofia como modo de vida. E aí é que estão as dificuldades de um contemporâneo estudar essa proposta antiga que, em sua essência, pode ainda renascer, é claro.
Em sua forma radical, o estoicismo propõe que a verdadeira liberdade consiste em libertar-se das dependências externas, seja da riqueza, da saúde, da fama ou do poder político. O sábio não teme a morte nem os sofrimentos físicos, pois sua felicidade não depende de fatores contingentes, mas sim de seu domínio sobre a própria mente. A verdadeira liberdade seria, assim, uma liberdade interior, imune às flutuações da fortuna e independente de circunstâncias externas.
Este ideal de autossuficiência do sábio estoico é, em sua essência, uma proposta de autonomia total. O indivíduo sábio é visto como autárquico (autossuficiente), governando-se inteiramente pela razão e pela virtude. Para o estoicismo, a vida virtuosa é não apenas uma questão ética, mas ontológica, a virtude representa o cumprimento da natureza humana, a realização do logos, o princípio racional que permeia a ordem cósmica.
Contudo, embora essa busca pela autossuficiência possa parecer um caminho para a serenidade e a liberdade interior, o estoicismo, em sua tentativa de domínio total das paixões e das vontades, acaba por construir um ideal que ignora a vulnerabilidade e a fragilidade constitutivas da condição humana. Esse ideal de soberania de si, ao ser levado ao extremo, entra em confronto com as realidades existenciais mais profundas da experiência humana, como a luta interna entre o desejo e a razão, a fragilidade da moral humana e a inevitabilidade da queda. Esse ponto de tensão entre o ideal estoico e a realidade humana será abordado com mais profundidade na crítica de Agostinho, que questiona a viabilidade e a moralidade desse domínio absoluto de si.

A crítica de Agostinho ao estoicismo e à autossuficiência
A crítica agostiniana ao estoicismo é uma das mais profundas e estruturadas dentro de sua filosofia, especialmente em relação ao ideal de autossuficiência que perpassa toda a ética estoica. Agostinho reconhece, de maneira geral, a nobreza da busca estoica pela virtude e pela serenidade, mas vê nela uma falácia moral e uma ilusão metafísica. Para ele, a liberdade proposta pelo estoicismo, ou seja, a conquista da ataraxia e a perfeita apatheia, é um objetivo inalcançável para o ser humano, cuja vontade está irremediavelmente corrompida pela queda.
Em sua obra De civitate Dei, Agostinho examina de forma crítica o pensamento estoico, e em particular a autossuficiência do sábio estoico. Para o filósofo cristão, a verdadeira liberdade não reside no domínio da razão sobre as paixões, como defendem os estoicos, mas na dependência da graça divina. A vontade humana, que no estoicismo busca a virtude por meios racionais e naturais, está, para Agostinho, ferida pelo pecado original. A concupiscência, como herança dessa queda, distorce os desejos e afetos humanos, tornando impossível ao homem atingir a verdadeira liberdade e a paz interior sem a intervenção de Deus.
A crítica de Agostinho é clara: o homem, em sua condição caída, não pode ser autossuficiente. Ele não possui a capacidade de dominar as paixões e de alcançar o domínio de si sem a ajuda divina. A proposta estoica de alcançar a virtude e a serenidade exclusivamente através da razão e do esforço pessoal é, para Agostinho, uma forma de soberba espiritual. Ao tentar ser senhor de si sem reconhecer sua dependência em relação a Deus, o homem não está sendo verdadeiramente virtuoso, mas está se iludindo com um ideal de autossuficiência que mascara a verdadeira condição humana, a falibilidade e a necessidade de redenção.
Para Agostinho, a autossuficiência não é uma virtude, mas um erro grave, pois implica uma recusa em reconhecer a miséria humana e a necessidade da graça. Em sua visão, a verdadeira virtude está ligada à humildade e ao reconhecimento da fragilidade humana, não à pretensão de alcançar uma autonomia total sobre as paixões. A verdadeira liberdade, portanto, não se encontra no autodomínio absoluto, mas na submissão da vontade à vontade divina, que conduz à paz e à verdadeira serenidade. Isso é algo que o sábio estoico, por mais virtuoso que seja em suas ações, não pode alcançar sem a graça redentora de Deus.
Essa visão agostiniana coloca em xeque o próprio fundamento do ideal estoico: a confiança plena na capacidade humana de se autossustentar moralmente. Agostinho propõe, ao invés disso, um caminho de redenção que exige humildade e reconhecimento das próprias limitações. Em sua crítica ao estoicismo, ele não nega a busca pela virtude, mas aponta que ela deve ser fundamentada no reconhecimento da dependência do ser humano para com Deus, que é o único que pode restaurar, aos seus olhos, a verdadeira liberdade interior.

A libido dominandi como uma crítica a uma vontade corrompida
A libido dominandi é um dos conceitos centrais na antropologia filosófica de Agostinho, e sua análise profunda da corrupção da vontade humana fundamenta sua crítica ao estoicismo e a outras filosofias que exaltam a autossuficiência humana. A expressão libido dominandi, que pode ser traduzida como exatidão como o “desejo de dominação”, ou, dentro de uma determinada interpretação, vontade de poder, vontade de dominação, revela o impulso desordenado que surge da vontade humana corrompida pela queda, um desejo que não visa a busca pela justiça ou pela verdade, mas sim a busca por poder, controle e subordinação dos outros, do mundo e, até mesmo, de si mesmo.
Para Agostinho, a vontade humana não é neutra nem pura; ela é marcada pela concupiscência, que é a inclinação desordenada para o prazer e para a autossatisfação. Essa corrupção da vontade faz com que o homem, em sua condição decaída, não busque mais o bem absoluto ou a verdadeira liberdade, mas sim a afirmação de si mesmo e a busca incessante por domínio. O desejo de dominar não é apenas uma característica das relações de poder entre os indivíduos, mas é uma expressão profunda da vontade humana corrompida, que não só deseja o controle sobre os outros, mas também a dominação do próprio ser, tentando ocultar sua fragilidade e dependência.
A libido dominandi de Agostinho não se restringe apenas ao desejo de dominar fisicamente ou socialmente os outros; ela se estende a uma tentativa de controlar a própria vida e os próprios afetos de forma autossuficiente, como acontece na ética estoica. O estoicismo, que, como eu disse, busca a apatheia (imperturbabilidade) e a ataraxia (serenidade) por meio do autodomínio, acaba, segundo Agostinho, refletindo a mesma libido dominandi, mas disfarçada sob o manto da razão. Ao tentar dominar suas paixões, o sábio estoico, ao invés de reconhecer sua fragilidade e sua dependência da graça, procura se tornar autossuficiente, ignorando que sua vontade está, na verdade, corrompida e que ele precisa da ajuda divina para restaurar sua verdadeira liberdade.
Em De civitate Dei (V, 19), Agostinho argumenta que a paz aparente do Império Romano não é o resultado de uma verdadeira virtude ou justiça, mas sim o efeito da libido dominandi ordenada por instituições políticas, que mantêm a ordem através da repressão e da imposição do poder. O domínio do império sobre seus súditos, que se apresenta como um modelo de ordem e estabilidade, é, na realidade, uma expressão da corrupção da vontade humana, uma vontade que não busca a justiça, mas a imposição do poder sobre os outros.
Essa análise de Agostinho se conecta com sua crítica à autonomia moral proposta pelos estoicos, pois revela que a verdadeira liberdade não consiste em um controle absoluto sobre as paixões e desejos, mas no reconhecimento da vulnerabilidade humana e na entrega da vontade à graça divina. A libido dominandi é, portanto, não apenas uma crítica ao desejo de poder político e social, mas também à pretensão de controle absoluto sobre a própria vontade, como se o ser humano fosse capaz de se salvar por suas próprias forças.
A libido dominandi agostiniana, como uma força corrompida que distorce a razão e a verdadeira busca pelo bem, implica que o desejo de poder, seja sobre os outros, sobre o mundo ou sobre si mesmo, não leva à paz ou à verdadeira liberdade, mas à escravidão da vontade. O homem que busca dominar a si mesmo sem reconhecer sua fragilidade e sua necessidade da graça divina acaba escravizado pela sua própria vontade corrompida, perpetuando um ciclo vicioso de desejo e frustração. Para Agostinho, o único caminho para a verdadeira liberdade é a conversão da vontade, que deve ser purificada pela graça divina e pela humildade do coração.

  Nietzsche e a vontade de poder como contraponto
A crítica agostiniana à autossuficiência humana e à libido dominandi encontra um contraponto fascinante na filosofia de Friedrich Nietzsche, que, em sua obra Além do Bem e do Mal, propõe a ideia da vontade de poder como o motor fundamental da vida humana. Embora ambos os pensadores compartilhem a visão de que a vontade humana é frequentemente corrompida, suas respostas à condição humana e à natureza do poder são profundamente diferentes, refletindo suas visões filosóficas contrastantes sobre moralidade, liberdade e a condição existencial do ser humano.

 Notas acerca de algumas semelhanças
Tanto Agostinho quanto Nietzsche reconhecem que a natureza humana está marcada por uma força de vontade que transcende o desejo ou impulso instintivo: é uma vontade de afirmação, de poder, e, em essência, de dominação. Para Agostinho, a libido dominandi é uma manifestação da corrupção da vontade humana pela queda, uma vontade que busca se afirmar contra a ordem divina e que resulta em conflito, sofrimento e destruição. De forma similar, Nietzsche vê a vontade de poder como o impulso primordial que permeia toda a existência humana, embora ele a entenda de maneira mais afirmativa do que Agostinho.
Ambos os pensadores, portanto, concordam que a verdadeira liberdade não pode ser alcançada por um simples exercício de autocontrole racional ou moral, como é o caso no estoicismo, mas está ligada a um reconhecimento das forças interiores que movem o ser humano, sejam elas de dominação, afirmação ou destruição. Para Agostinho, a redenção e a verdadeira liberdade vêm da graça divina, que purifica a vontade humana, enquanto para Nietzsche, a verdadeira liberdade é a capacidade de afirmar a vida em sua totalidade, sem a submissão aos valores tradicionais ou à moralidade herdada.

  Diferenças
As diferenças entre Agostinho e Nietzsche começam a se destacar quando se observa a natureza da vontade e o papel que a transcendência desempenha em cada um de seus sistemas filosóficos.

  Algumas notas e anotações:
1. Visão sobre a condição humana:
Agostinho vê o homem como uma criatura caída, cuja vontade foi corrompida pelo pecado original. A vontade humana é, portanto, irremediavelmente inclinada para o erro e o mal, e a salvação só é possível por meio da intervenção divina. A libido dominandi é, para Agostinho, uma manifestação dessa corrupção, uma vontade desordenada que distorce a natureza humana e a afasta da verdadeira liberdade, que é a rendição à vontade divina. A redenção só se dá através da graça, que restabelece a ordem divina na alma humana.
Nietzsche, por outro lado, não vê o homem como uma criatura caída, mas como um ser cuja vontade de poder é uma força primordial que precisa ser afirmada para a realização plena da vida. Para Nietzsche, a vontade de poder não é uma corrupção da natureza humana, mas sua essência. Ele rejeita a noção de uma moral universal ou transcendente, afirmando que a moralidade cristã — que Agostinho defende como caminho para a salvação — é uma moral de negação da vida, que reprime a vontade de poder. Para Nietzsche, o ser humano deve afirmar sua própria vida, inclusive em sua luta contra a moralidade tradicional e a busca de valores superiores a partir de sua própria força vital.

2. A questão do poder:
Para Agostinho, a libido dominandi é negativa, pois se trata de um desejo de poder que não busca a justiça ou o bem, mas apenas a autoafirmação do ego humano. A vontade corrompida pelo pecado, segundo Agostinho, leva à escravidão e ao distanciamento de Deus. A verdadeira liberdade é encontrada na submissão à vontade divina e no reconhecimento da fragilidade humana.
Já para Nietzsche, a vontade de poder não tem uma conotação moral negativa, mas é a força vital que impulsiona o ser humano a superar suas limitações, a buscar novos horizontes e a criar seus próprios valores. O Übermensch (além-do-homem), conceito central na filosofia de Nietzsche, representa aquele que é capaz de transcender os valores tradicionais e afirmar sua própria vontade, criando uma nova ordem de valores e de significados. O poder, para Nietzsche, não é algo a ser evitado, mas algo a ser afirmado, uma vez que ele é a condição da autoafirmação e da criação.

  3. A resposta à queda:
Agostinho vê a queda como a razão pela qual o homem não pode confiar em sua própria vontade para alcançar a verdadeira liberdade. A redenção, portanto, não depende da vontade humana, mas da graça de Deus, que cura a vontade corrompida. Em contraste, Nietzsche nega a noção de uma queda moral ou espiritual da humanidade. Para ele, a história humana é marcada pela luta constante entre forças de afirmação e negação, e a única “redenção” possível é a autoafirmação da vontade humana, que não depende de qualquer transcendente ou da ajuda de uma divindade, mas da vontade de poder individual.

  4. A moralidade:
Agostinho baseia sua moralidade na virtude cristã e na humildade diante de Deus, sustentando que a verdadeira liberdade é a liberdade do ego, que se submete à vontade divina. A moralidade cristã, para ele, é um caminho para a cura da libido dominandi e a restauração da verdadeira ordem.
Nietzsche, por outro lado, critica a moralidade cristã como uma moral de “rebanho”, que reprime a vontade de poder e promove uma visão negativa da vida. Ele propõe uma moralidade baseada na afirmação da vida e na superação das limitações humanas, desafiando as normas estabelecidas e criando uma nova ética, que valoriza a autonomia e a afirmação da individualidade.
Essa comparação entre Agostinho e Nietzsche revela duas abordagens contrastantes para entender o poder, a vontade e a liberdade humanas. Enquanto Agostinho vê a vontade humana como corrompida pela queda e precisa de redenção por meio da graça divina, Nietzsche afirma que a vontade de poder é uma força vital e essencial à existência humana, que deve ser afirmada e cultivada. A crítica agostiniana à libido dominandi como uma vontade desordenada e corrompida é, assim, contraposta pela afirmação nietzscheana da vontade de poder como o princípio vital e criador da existência humana. Ambos os pensadores, no entanto, reconhecem o poder como uma força fundamental na vida humana, mas suas respostas a esse poder, e a relação que ele mantém com a moralidade e a transcendência, mostram visões profundamente diferentes sobre a natureza humana e seu destino.

  Interlocução com a Crítica Atual
A crítica contemporânea à moralidade e à busca de poder, seja no campo político, econômico ou social, encontra uma ressonância direta com os conceitos agostinianos e nietzscheanos da libido dominandi e da vontade de poder. Em tempos de crescente polarização política e ascensão de lideranças populistas e autoritárias, os conceitos de domínio, poder e controle sobre a vontade humana se tornam especialmente relevantes para compreender as dinâmicas sociais e políticas atuais.

O domínio da libido dominandi no cenário político contemporâneo
O conceito de libido dominandi, desenvolvido por Agostinho, se aplica com precisão às observações atuais sobre as tendências autoritárias de líderes políticos contemporâneos. O desejo de poder, ou libido dominandi, é claramente perceptível nas práticas de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, cujos governos, muitas vezes, manifestam ou manifestaram uma busca incessante pela afirmação do poder e da subordinação dos outros à sua vontade, misturando e confundindo interesses públicos com privados ou, no caso brasileiro, familiares. Essa dinâmica não apenas caracteriza os aspectos autoritários da política contemporânea, mas também expõe a vulnerabilidade desses líderes a uma forma de “dominação da libido”, em que o desejo de controle e soberania acaba por se voltar contra si mesmo.
A política externa de Donald Trump, por exemplo, em sua abordagem protecionista e na imposição de tarifas, visava ao fortalecimento do poder americano, mas também revelava uma obsessão por afirmar o domínio econômico e político global. O próprio comportamento do ator político é movido pelo domínio da libido. No entanto, como bem observa Agostinho, a busca insaciável por poder, quando desprovida de justiça e humildade, acaba criando uma relação simbiótica entre o dominador e sua própria fragilidade. No caso de Trump, as sanções e tarifas não apenas refletiam um desejo de subordinar outros países à vontade americana, mas também expunham a dependência dos EUA de manter sua posição de liderança no mundo, um poder que acabava por ser corroído pelas consequências econômicas e políticas internas.

  Essa mesma libido dominandi é observada em comportamentos como o de um deputado licenciado brasileiro que, ao buscar uma aliança ideológica com os Estados Unidos durante o governo de Trump, manifesta uma dependência emocional e política em relação ao poder imperial, ou ao império do poder. O uso da política externa para agradar ao governo americano, ou para satisfazer o desejo da família (desiderium familiae) não reflete um desejo genuíno de autonomia ou força, mas uma servidão mascarada de lealdade estratégica. Colocar a própria família acima do país já demonstra, para além de toda confusão da coisa pública com a família, própria da esfera doméstica, uma desordem do desejo, das paixões, das emoções, da dependência do próprio poder. Agostinho teria identificado nesse comportamento não uma simples estratégia para a manutenção do poder, mas um vício moral, uma forma de submissão afetiva que impede o reconhecimento da verdadeira liberdade, que só é alcançada pela superação da libido dominandi.
Por outro lado, a vontade de poder nietzscheana também oferece um quadro explicativo para o crescimento do neoliberalismo e suas políticas de austeridade, que buscam impor uma lógica de mercado sobre todas as esferas da vida social e política. Para Nietzsche, a vontade de poder é a força vital que impulsiona o ser humano a buscar a afirmação de si, a autossuficiência e a superação das limitações. No entanto, essa visão positiva da vontade de poder, quando aplicada às estruturas neoliberais contemporâneas, revela um paradoxo: a busca pela autonomia e pela afirmação do “indivíduo” no capitalismo moderno frequentemente resulta na intensificação da desigualdade, da exploração e da alienação social.
No contexto neoliberal, a vontade de poder parece se manifestar através de um culto à individualidade e à liberdade de mercado, mas na prática essa liberdade é profundamente limitada, pois está atrelada à acumulação de capital e à perpetuação das desigualdades. Nesse sentido, a vontade de poder que Nietzsche celebrava como princípio de autossuperação se torna, nas políticas neoliberais, uma força que concentra poder nas mãos de poucos, exacerbando as divisões sociais e econômicas e subordinando a maioria à lógica do consumo e da competitividade.
A crítica que Agostinho faria ao neoliberalismo seria justamente a de que essa vontade de poder, ao buscar a autonomia sem reconhecer as limitações humanas e a dependência da graça, leva a uma forma de escravidão, não do corpo, mas da alma. A busca pelo domínio econômico e político no neoliberalismo, sem uma moralidade fundamentada na justiça, acaba levando à exploração das fragilidades humanas, ao invés de proporcionar a verdadeira liberdade ou serenidade.
Por fim, a tensão entre a busca pela autossuficiência estoica e a falibilidade humana ganha relevância em um contexto atual marcado pela crise existencial, o aumento da ansiedade e a insegurança social. A obsessão por controlar as emoções e alcançar um estado de serenidade plena, como pregam os ideais estoicos, é cada vez mais adotada como um modelo de vida no mundo moderno, especialmente em tempos de crise econômica, política e ambiental. No entanto, como Agostinho bem apontaria, essa busca pelo controle absoluto é irrealizável sem o reconhecimento da condição humana como finita e falível.
A sociedade contemporânea, muitas vezes influenciada por ideologias de autossuficiência e self-help, faz eco ao ideal estoico de domínio sobre as emoções. No entanto, as palavras de Agostinho alertam para a ilusão desse ideal: a verdadeira liberdade não vem de um controle rígido sobre si mesmo, mas da aceitação da própria fragilidade e da rendição àquilo que está além do controle humano — a graça divina, ou, em termos existenciais, a aceitação da inevitabilidade da morte e da limitação humana.
A crítica de Agostinho à libido dominandi e a sua visão sobre a condição humana como essencialmente dependente da graça divina ressoam fortemente com os desafios contemporâneos que enfrentamos, seja nas dinâmicas de poder político e econômico, seja nas exigências de autossuficiência pessoal. O conceito de libido dominandi revela a corrupção da vontade humana e a falsa busca pela liberdade, enquanto a vontade de poder nietzscheana, embora afirmativa da vida, nos lembra das armadilhas de uma liberdade que ignora a interconexão entre os seres humanos e a necessidade de compaixão e justiça. O debate sobre o controle das emoções e a busca pela autossuficiência, tão presentes na filosofia estoica e em muitas correntes filosóficas contemporâneas, deve ser contextualizado em um entendimento mais profundo da fragilidade humana, como Agostinho propõe, para que se evite a alienação existencial e se abra caminho para uma verdadeira liberdade, fundamentada na aceitação da nossa condição de ser finito.
Se a razão não é a única força que compete pelo controle do nosso corpo, da nossa inteligência e das nossas emoções, devemos, ao menos, estar atentos às opiniões alheias e ao verdadeiro objeto de seus desejos. Antes de concedermos nossa anuência, é fundamental que realizemos um exercício de exame crítico. Um bom ponto de partida para esse exame pode ser o conceito de patriota, por exemplo.

Alexandre H. Reis (professor e aluno).

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