O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, cerca de 1485. Têmpera sobre tela, 172,5 × 278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença.
A reflexão sobre a liberdade, especialmente à luz do pensamento agostiniano, adquire uma profundidade renovada quando articulada à análise contemporânea de Hannah Arendt, que oferece uma abordagem filosófica rica e instigante para esse conceito fundamental. Para Arendt, a liberdade não se reduz a um ato de ruptura ou à simples escolha autônoma do sujeito, mas é um dom originário e uma potência de início, profundamente enraizada na condição humana da natalidade: o nascimento entendido como entrada em um mundo pré-existente e, simultaneamente, como a capacidade de iniciar algo novo.
Nesse sentido, a natalidade é a base da liberdade, pois inaugura sempre um espaço para a novidade e a ação inédita, afastando-se do entendimento clássico da liberdade como mera vontade ou arbitrário exercício individual. A liberdade, portanto, aparece como uma dádiva que deve ser acolhida e preservada, um convite à continuidade e à abertura para o futuro. É nesse quadro que a morte voluntária se revela paradoxalmente como a negação radical dessa liberdade: ao interromper deliberadamente o dom da vida, o suicida rejeita o fundamento ontológico da liberdade — a vida que possibilita o recomeço incessante e a renovação da ação humana. Assim, a morte autoinfligida não representa o ápice da liberdade, mas sua falência, uma abdicação do próprio princípio de início que a liberdade pressupõe.
A complexidade da vontade, tema caro a Agostinho, complementa e aprofunda essa reflexão. O bispo de Hipona já reconhecera uma cisão interna na vontade humana, uma luta entre forças opostas que colocam o eu em constante tensão. Arendt, em sua obra A Vida do Espírito (1978), destaca que a vontade é o espaço onde o sujeito experimenta sua força de começar, mas que simultaneamente revela a divisão interna do eu entre o querer e o não querer — uma fragmentação que torna a vontade um campo de conflito. Nesse ponto, a morte voluntária se apresenta como um gesto trágico e paradoxal: ele não expressa a liberdade plena, mas sim o colapso dessa potência iniciadora. O suicida, ao desistir da vida, abdica da possibilidade de superar a divisão da vontade, renuncia ao juízo e à capacidade de recomeço, refletindo uma exaustão tal que o eu volta-se contra si mesmo, anulando seu futuro e, com isso, sua liberdade.
Outro aspecto essencial a essa reflexão é o papel do amor, base da vida interior e raiz do juízo, conforme salientado por Arendt em seu ensaio O Conceito de Amor em Santo Agostinho (escrito há quase um século, em 1929). Para Arendt, o amor é aquilo que orienta a vontade e estrutura o juízo, sendo a qualidade do mundo interior do sujeito indissociável daquilo que ele ama. Na tradição agostiniana, a libido não deve ser vista simplesmente como desejo desregrado, mas como um amor desorientado: um amor que perdeu seu objeto legítimo e, portanto, transforma o eu em algo estranho a si mesmo. Assim, a morte voluntária pode ser interpretada como um erro radical do amor: o sujeito que opta pelo fim da vida demonstra ter perdido a capacidade de amar aquilo que dá sentido e repouso à existência. Em um gesto trágico, o suicida confirma a desordem amorosa que o afasta de si mesmo e do mundo. O juízo falha porque não reconhece mais o que merece ser amado, comprometendo a estrutura que mantém viva a liberdade e aberta a seu futuro.
No entanto, é justamente aqui que a condenação agostiniana da morte voluntária merece um olhar crítico. Agostinho, profundamente marcado pela teologia cristã, interpreta o “suicídio” como uma transgressão radical contra o dom divino da vida, um pecado que rompe com a ordem moral e ontológica do mundo criado por Deus. Essa condenação, embora coerente com sua visão teológica, pode ser vista como insuficiente para abarcar a complexidade da experiência humana diante do sofrimento extremo, da angústia existencial e da perda do sentido de vida. A negação da morte voluntária como expressão da liberdade ignora os dilemas éticos e psicológicos que levam o sujeito a essa decisão, reduzindo-o a uma falha moral, sem reconhecer a profundidade da crise interior e o desespero que podem acompanhar a escolha pela morte voluntária.
Essa abordagem dogmática corre o risco de obscurecer a possibilidade de uma reflexão mais compassiva e filosófica sobre a morte voluntária, que considere não apenas a negação da liberdade, mas também as condições trágicas que a ameaçam e os limites da autonomia humana diante do sofrimento. A crítica contemporânea, influenciada por filósofos como Arendt, sugere que a morte voluntária não deve ser encarada simploriamente como um ato de rebeldia ou de fraqueza, mas como um fenômeno que revela a fragilidade e a contradição inerentes à condição humana, especialmente no campo da vontade e do amor.
Autores como Susan Wolf (1990), que discute a “condição de sentido” da vida, chamam atenção para a importância de considerar o sofrimento psíquico e existencial, que pode corroer a vontade de viver e desafiar as noções tradicionais de autonomia e responsabilidade moral. John Hardwig (1997), por sua vez, problematiza o “dever de viver”, argumentando que manter a vida pode não ser um imperativo absoluto quando o sofrimento se torna insuportável. Já filósofos como Jennifer Nedelsky (2011) reforçam a necessidade de uma ética relacional, onde a autonomia é vista como construída em vínculos afetivos e contextuais, questionando visões individualistas rígidas.
Essas perspectivas ampliam o debate para além da simples condenação moral, abrindo espaço para uma reflexão que acolha as nuances do sofrimento humano e a complexidade dos juízos morais sobre o fim da vida. A abordagem de Hannah Arendt se mostra, assim, especialmente fértil, ao compreender a liberdade como potência de início, ameaçada mas sustentada pela ação, pelo amor e pelo juízo.
Diante disso, o estudo da morte voluntária não deve restringir-se a um exame teológico ou legal, mas demandar um engajamento filosófico que considere a interseção entre liberdade, vontade e amor, reconhecendo a tragédia que permeia essa escolha. O pensamento de Arendt, com seu foco na natalidade e na condição humana, oferece um terreno fecundo para essa investigação.
Assim, este tema permanece aberto e urgente para pesquisadores, filósofos, profissionais da saúde e demais interessados em compreender a profundidade e os dilemas éticos da morte voluntária. Convido o leitor a aprofundar-se no pensamento de Hannah Arendt, cuja obra desvela um horizonte de reflexão que ultrapassa julgamentos reduzidos, reconhecendo a complexidade da vida humana e da liberdade em seu aspecto mais radical.
Prof. (e estudante) Alexandre H. Reis
NOTA: Das referências que fiz no texto, permitam-me apresentar brevemente. Susan Wolf (1990) refere-se ao livro dessa escritora, Meaning in Life and Why It Matters. Wolf discute o que dá sentido à vida, enfatizando que a vida deve ter valor objetivo e subjetivo. Ela argumenta que o sentido não depende apenas do que a pessoa quer, mas de como o que ela faz ou vive se conecta com valores que importam. Essa perspectiva é útil para entender dilemas como o suicídio e o sofrimento extremo, pois o sentido da vida pode ser comprometido, afetando a vontade de continuar vivendo.
John Hardwig (1997) refere-se a um artigo que pode facilmente ser encontrado na web: “Is There a Duty to Die?”. Hardwig questiona se há um dever moral de continuar vivendo em todas as circunstâncias. Ele sugere que, diante do sofrimento insuportável e dos custos para entes queridos, pode haver situações em que a morte voluntária é eticamente compreensível, rompendo com o imperativo absoluto da preservação da vida.
Aqui fica também a sugestão de leitura de Jennifer Nedelsky (2011). trata-se do livro Law’s Relations: A Relational Theory of Self, Autonomy, and Law, em que Nedelsky apresenta uma teoria relacional da autonomia, argumentando que a autonomia não é uma propriedade isolada do indivíduo, mas algo construído em relações sociais, afetivas e contextuais. Isso amplia a ética da autonomia ao considerar vínculos e dependências, o que é crucial para pensar a autonomia em decisões sobre a vida e a morte.
