
[Le Suicide. 1834 (gravura) · Emile Antoine Bayard. Private Collection /Bridgeman Images]
É próprio de cada época olhar ao redor e acreditar que está diante de um aumento inédito de suicídios. No século XVII, os jornais britânicos alertavam para a expansão da “doença inglesa”, como era então chamada a morte voluntária. Dois séculos mais tarde, os alienistas franceses soavam o mesmo alarme. E, já no fim do XIX, Durkheim observava com preocupação o crescimento de casos na França. Talvez não haja tempo histórico em que alguém não tenha dito: “os casos estão aumentando”. E, no entanto, se compararmos os dados disponíveis ao longo de cem, duzentos anos (quando há estudos epidemiológicos) o que se revela é uma estabilidade surpreendente que talvez queira dizer: esse tipo de morte faz parte da história humana.
Mas não é de estatísticas que quero tratar. Gostaria de comentar um poema. E começo com essa breve reflexão sobre a percepção de “proliferação” porque é precisamente essa impressão que anima os versos de Charles Béranger, no poema Le Suicide, publicado em 1834 (disponível na Biblioteca Nacional da França, aqui).
Trata-se de uma meditação lírica sobre a sensação de que o suicídio se alastra pelo mundo moderno como um furor, um flagelo, uma febre moral. Não é ainda uma análise científica ou sociológica, como a que Durkheim irá propor algumas décadas depois. Mas, curiosamente, ela coincide com o sociólogo em um ponto crucial: o suicídio não é, aqui, visto como um gesto privado e isolado, mas como sintoma coletivo, mal metafísico, crise espiritual da civilização.
Béranger é claramente um moralista, isto é, um observador dos costumes, mas é sobretudo um profeta lírico. Seu poema constrói uma atmosfera carregada de desesperança, mas que paradoxalmente aponta para uma teologia possível da salvação. Entre o grito e a súplica, entre a denúncia e a oração, o que se desenha é quase um salmo trágico da modernidade.
Desde os primeiros versos, o tom é abertamente apocalíptico:
La mort semble avoir pris possession du monde, / Le suicide y règne…
[A morte parece ter tomado posse do mundo, / O suicídio reina ali…]
A morte surge como potência soberana, e o suicídio, seu “atleta audacioso” [Athlète audacieux], percorre o mundo marcado vidas com uma mão “hedionda e descarnada”. Há aqui uma personificação demoníaca, quase bíblica, do suicídio: esse tipo de morte não é pensado como decisão subjetiva, mas como epidemia moral, força cósmica de devastação. A imagem do furacão que “gronde, mugit, éclate et tonne” transforma o gesto individual em tempestade coletiva.
Esse tratamento lírico do suicídio pode ser lido como um efeito tardio da crítica agostiniana à mors spontanea: como se Béranger fosse um herdeiro romântico de De Ciuitate Dei, transplantado à desordem moderna. Se, para Agostinho, o suicídio representava uma ruptura com a ordem divina, para Béranger ele é o sinal de que essa ordem já foi esquecida. Vivemos num tempo onde a liberdade tornou-se veneno:
Te fit libre. C’est là de ses dons le plus beau ; / Mais il ne t’a pas dit de te faire bourreau !
[Fez-te livre. É esse o seu dom mais belo; / Mas ele não te mandou te tornar carrasco!]
Liberdade sem transcendência é liberdade que se volta contra si mesma. Nesse ponto, a estética do poema toca o nervo moral da tradição cristã, não negando a liberdade humana, mas advertindo sobre o seu abismo quando ela se aparta da graça.
Mas gostaria de chamar a atenção para esse ponto de vista do poeta moralista: Béranger não limita sua crítica ao indivíduo suicida. Ele denuncia as estruturas culturais da época, com um olhar agudo para a mídia de massas:
Tous les journaux, ces trompettes vivantes / De la vieille bavarde à la centuple voix…
[Todos os jornais, essas trombetas vivas / Da velha tagarela de voz centuplicada…]
A imprensa, com “vozes centuplicadas”, espalha os nomes dos mortos (populares e reis) como espetáculo mórbido, reforçando o contágio. O poema insinua que a cultura moderna transformou a dor em manchete, a morte em ruído, e o sofrimento íntimo em espetáculo público. Essa crítica antecipa, em chave romântica e religiosa, algo que pensadores como Debord, Foucault ou Sontag abordariam mais tarde: a espetacularização do sofrimento e a normalização da morte como objeto de consumo simbólico.
Eu poderia ter nomeado esse brevíssimo comentário do poema Le Suicide com o seguinte título: “Poetas, salvem-nos: o clamor pela arte redentora”. De fato, eu pensei nisso, pois uma das seções mais tocantes do poema é o apelo aos poetas. Béranger dirige-se à arte com um imperativo moral e salvífico:
Ô poètes, chantez, de vos chants les plus doux !
… Que votre voix éclate / En un cantique saint qui console et qui flatte
[Ó poetas, cantem, com seus cantos mais doces!
… Que a vossa voz irrompa / Em um cântico sagrado que consola e
acaricia]
Aqui, a poesia parece ser pensada, para além da expressão de dor, como remédio espiritual. Em meio ao colapso metafísico do século, o poeta é invocado como profeta restaurador, capaz de resgatar o amor, a fé e a esperança. Não por acaso, o final do poema transfigura a tempestade inicial numa oração humilde:
Grand Dieu, mets en leur cœur du calme et du courage.
[Grande Deus, coloca em seus corações calma e coragem.]
É a súplica de quem reconhece os limites da razão e da poesia e que, como último gesto, se rende à transcendência. Esse desfecho poderia ser lido como uma teologia poética da paciência, parente da patientia agostiniana que substitui a fortitudo estoica. Só que agora, não como dogma, mas como clamor lírico de um mundo doente.
Do ponto de vista estético, o poema é um exemplo típico do romantismo moral francês do século XIX, com sua dicção grandiloquente, imagens cósmicas e estruturas de repetição profética. Ao mesmo tempo, o texto está em tensão com os discursos modernos que buscavam laicizar e psicologizar o suicídio, como Durkheim o faria sessenta anos depois. Béranger, ao contrário, insiste no caráter teológico da crise.
Assim, sua estética é, paradoxalmente, tanto ultrapassada quanto profundamente atual: ultrapassada porque já não convence os modernos que se afastam da linguagem sacra; atual porque intui o mal-estar metafísico que acompanha a perda do sentido — e que continua, sob outras formas, a nos assombrar.
“Le Suicide” é um poema entre a denúncia e a oração, entre a estética do sublime trágico e a esperança de salvação espiritual. Sua força reside menos em oferecer respostas do que em reencenar a luta interior da alma moderna diante do vazio e da tentação do fim.
Como um Agostinho romântico, Béranger clama por uma voz que nos console… e que ainda creia que a vida, embora frágil, seja digna de ser vivida.
Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis
Abaixo, a minha tradução do poema.
O Suicídio, de Charles Béranger
27 de agosto de 1834
A morte parece ter tomado posse do mundo,
O suicídio reina, e, furioso vencedor,
Sua voz vibra no ar: é o furacão que ruge,
Muge, explode e troveja. Atleta audacioso,
Ele marca com sua mão hedionda e descarnada
As cabeças que deseja tomar, e vê-se sua pilhagem
Aumentar a cada dia, sem esforço e sem pena.
Quer-se morrer. Por quê? Porque outros morreram.A morte gera a morte: é como a avalanche
Que cresce no tempo sobre este mundo que declina.O Anjo exterminador imprime nas mais belas testas
Estigmas ardentes, corroídos, negros, profundos,
Visíveis a todos, até mesmo aos vulgares.
Seu braço ameaça tudo; como o trovão
Que destrói ao mesmo tempo a videira e a oliveira,
O teto do lavrador, a jangada do barqueiro.Mas a tempestade é breve; um vento leve a dissipa.
Outra tormenta ruge, e sobre a espécie humana
Sopra o ar glacial de um sombrio desespero.Nosso mundo está coberto por uma nuvem espessa;
A luz que dela escapa é lúgubre, e só ilumina
Ódio ou ceticismo, ou medo ou cólera;
Vivemos de egoísmo ou de incredulidade,
E Deus parece ter esquecido de ser bom para nós;Deus não enviou seu mensageiro celeste,
Como limpa o céu em resposta à prece do lavrador.
Os dias seguem os dias, resta-nos o desespero.Escuta-se a cada dia um imenso clamor
De morte; todos os jornais, essas trombetas vivas
Da velha tagarela de voz centuplicada,
Exibem, como luto, em suas páginas sangrentas,
Os nomes dos filhos do povo, e os dos filhos dos reis,Dos príncipes, dos poderosos. Em toda parte o suicídio
Penetra; ele envenenou com seu sopro lívido
O ar que respiramos. Acordo, trêmulo,
Com medo de ter perdido o amigo que deixei sonhando
À noite, ao deixá-lo, não longe do rio.E adormeço, imerso em amarga dor,
Por sofrimentos expressos em mil gritos diversos.
Verdadeiro concerto de condenados que os infernos inspiram.Temo, a cada dia, os males da véspera.
Homem que queres morrer, o Deus que vela por ti
Te fez livre. Esse é de seus dons o mais belo;
Mas Ele não te ordenou fazer-te carrasco!Como?! Amantes juntos abandonam a vida,
Não encontrando mais em seus corações nada que os convide
Ao prazer, à felicidade, que já não compreendem!Ah! É que o próprio amor torna-se um mistério horrível,
Quando ao grande nome de Deus nossa alma é insensível,
E Ele nos chega apenas como som difuso,
Palavra vã, sem virtude, como o balbuciar da infância.Teriam passado todos os dias da esperança?
Deus não tem mais voz para penetrar os corações?
Homens de quinze anos clamam suas dores;
E sua voz não mente: pois, para provar, eles morrem!A morte, sempre a morte! Ó, para os que ficam,
Viver já não é, ai de nós, senão um dever penoso!
Onde encontrar, onde buscar calma e esperança,
Se não estão no coração da infância alegre?Qual poeta, de voz terna e melodiosa,
Embriagando o universo com sons harmoniosos,
Dilatará os corações, umedecerá os olhos
Com lágrimas de alegria que aliviam as almas?Ó poetas, cantem! Vocês possuem essas chamas
Que permitem ver, através das eras passadas,
As eras futuras, reveladas aos nossos olhos.Falem-nos do futuro, de seu poder, de sua glória;
Façam-nos amar a Deus; contem-nos a história
Da felicidade que Ele reserva aos nossos filhos por vir.Por que seus cantos de morte? Sois vós tão poderosos
Apenas para desesperar? Que vossa voz ressoe
Num cântico sagrado que console e afague;
E que obrigue a morte a afastar-se de nós.Ó poetas, cantem, com os vossos cantos mais doces!
O mundo ouvirá. Quando o globo onde estamos
Ainda ardia; quando a multidão dos homens
Ainda era cativa de um sopro divino,
A matéria era tudo, a inteligência, nada.Deus dizia, guiando essa massa disforme,
Que estremecia ao som de sua voz amorosa:
“Avança sem parar, o progresso é tua lei.”Sua voz ainda o clama; e nós, homens sem fé,
Queremos, esquecendo nossa origem sagrada,
Queremos deter a potência divina;
Retroceder na vida e nos aniquilar,
Nós que nada podemos começar, nem terminar!A vida, ela nos mantém numa rede sublime;
Sua base é o desconhecido, mas seu cume é visível.
É Deus que nos atrai, erguendo com sua mão,
Abrigo do Universo, um eterno amanhã!Ah! Por que apressar-se a abandonar a vida
Antes que, com o tempo, ela tenha amadurecido?
A felicidade e a fé não estão na morte.
Homem, sê povo ou rei, viver é o teu destino!A morte não passa de palavra vã que não comove o sábio.
É um país novo, é uma terra distante
Que todos visitarão, que deve a todos oferecer:
Um mundo inteiro de amor, de felicidade, de prazer.Mas é preciso alcançá-lo pela estrada comum.
Uma existência frágil e enfermiça
É a condição do homem mal concebido,
Mal feito, mal gerado, que sua mãe recebeu
Como um germe fatal de dor e angústia.Proferis anátema ao mundo que vos fere.
Chamais pela morte, pensais que ela vos trará
O repouso; mas ele não pode estar ali.Buscai em outro lugar, buscai. A vida universal
Possui tesouros ocultos: ai daquele que vacila
No espaço infinito que ela oferece a percorrer,
E que não se pode deixar, nem mesmo ao morrer!Buscai. Deus, que enche os mundos e os espaços,
Deus que, por um instante, ocultou seu rosto a vós,
Vos criou para a vida e para o amor. Sua mão
Plantou apoios ao longo do caminho.Repousem cem vezes: mas façam a viagem.
Grande Deus, ponde em seus corações calma e coragem.tradução de Alexandre H. Reis
