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Acaiaca: o edifício e a queda

(Fonte da fotografia: https://portalbelohorizonte.com.br/)

Foi em Belo Horizonte que me formei em Filosofia e iniciei minha carreira como professor universitário. Durante os quatorze anos em que vivi na cidade (metade deles como estudante da UFMG) o Edifício Acaiaca esteve sempre presente, imponente e enigmático, no coração da capital mineira.

Na virada do século, enquanto escrevia meu primeiro livro, Vita (publicado mais tarde em 2007) subi ao terraço desse prédio de trinta andares e cerca de cento e vinte metros de altura. Não fui movido por ideação de morte, mas pelo desejo de experimentar o abismo como espaço de reflexão profunda sobre a vida e de meditar sobre o lugar onde tantas pessoas optaram por encerrar suas histórias.

Queria sentir o ar lá em cima, ouvir o silêncio que envolve quem se encontra entre a cidade e o céu, e deixar que meu corpo percebesse o contraste entre a solidez da construção e o vazio que se abria além da mureta. A visita não foi um passeio turístico… especialmente por causa do difícil acesso, ligado à história do edifício…, mas um exercício meditativo, uma tentativa de me aproximar do significado de estar naquele limite tão próximo da ausência, para, paradoxalmente, tentar compreender melhor o sentido da existência.

Quando escrevi sobre o Acaiaca em minha História do Suicídio, quis revelar não apenas um prédio, mas o clima emocional que ele carrega. No capítulo dedicado a esses “lugares para morrer”, descrevo minha subida ao topo (hoje há um rooftop no 26 andar), a vista panorâmica da Serra do Curral, e a experiência do abismo como um exercício necessário para significar e buscar uma justificativa diante das gratuitidades da vida. Foi uma busca silenciosa para entender o significado daquele lugar para mim e, sobretudo, para refletir sobre o local da morte de alguns: por que ali? Por que assim? Por que naquele ponto exato entre chão e céu?

Naquele momento, minha presença no topo não expressava desejo de queda, mas sim uma reflexão sobre o desejo de muitos por desaparecer. Ainda me pergunto quantos sentiram o mesmo peso do vazio que eu senti, porém sem o privilégio da distância contemplativa, sem a proteção que eu possuía naquele momento de teatralizar o salto como objeto de pensamento. Quantos não estavam ali… não para pensar, mas para efetivamente saltar? Quantos esperavam que saltar fosse um gesto de autenticidade, uma última palavra contra o silêncio do mundo?

É claro que o Acaiaca não foi concebido como ponto de suicídio. Erguido no final da Segunda Guerra, com bunker antiaéreo no porão, elevadores até o 25º andar e colunas moldadas em cogumelos — arquitetura art déco que visava humanidade e segurança —, o edifício se destacava como um símbolo de modernidade e resistência. No entanto, ao longo das décadas, tornou-se palco de vozes que queriam silenciar, supondo que ali, no meio do centro, alguém pudesse encerrar a própria história.

Na fachada do Acaiaca, duas imensas carrancas indígenas — esculpidas em concreto armado — observam a cidade com expressões enigmáticas e imponentes. Essas figuras, inspiradas na tribo Acaiaca, foram projetadas para transmitir força e poder, representando a resistência e a ancestralidade de um povo que, segundo a lenda, sobreviveu ao dilúvio que cobriu a terra. As carrancas, com seus rostos de feições fortes e olhos penetrantes, parecem vigiar o horizonte, desafiando o tempo e a cidade que se transforma ao seu redor. Essas esculturas não são apenas elementos decorativos; são testemunhas silenciosas da história e da memória coletiva, desafiando o olhar apressado dos transeuntes e convidando à reflexão sobre o passado e o presente. Quando comecei a pensar no edifício como “meu lugar-limite”, percebi a intensidade simbólica daquele corpo arquitetônico: uma metáfora para minha própria falha de pertencimento, de estar no meio da cidade e, ainda assim, sentir-me absolutamente isolado. O Acaiaca tornou-se, para mim — e não só para mim — um lugar onde a queda refletia uma forma de saída.

Hoje, vivendo no Rio Grande do Sul e após doze anos no Nordeste, percebo esse vazio se espalhando por outros lugares de Belo Horizonte: o Viaduto Santa Tereza, a Ponte da MG-030, os trilhos ferroviários que cortam a cidade. Espaços que um dia foram clareiras de esperança, viadutos que uniam bairros, pontes que ofereciam passagem, converteram-se em zonas de risco, tornando-se símbolos contundentes da fragilidade dos vínculos comunitários e da falta de uma escuta atenta e compassiva à dor de quem ali se encontra.

Esses “novos abismos” estão por toda parte, mas não são cenográficos nem públicos. Eles penetram em zonas de invisibilidade, em estruturas que ninguém patrulha, em vidas que passam despercebidas. As depressões, os silêncios, as dores se multiplicam em lugares menos óbvios, e a geoestética da cidade se fragmenta em espaços de fome existencial.

Quando penso no Acaiaca e em tudo o que ele representou em minha vida, sinto que não basta mais fechar portas, instalar redes, erguer barreiras. É preciso algo radicalmente mais profundo: abrir diálogos, construir escutas atentas, acolher. Mais do que impedir a morte, é preciso reaprender a sustentar a vida.

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