
(La suicida, 1952, Acuarela / cartón. 42 x 29 cm. EBV017. Coleção Blaisten)
No léxico recente da saúde mental, a palavra “posvenção” surge como um neologismo terapêutico para designar o cuidado com os que ficam: os enlutados por suicídio. É um termo técnico, sim, mas que guarda em si um abismo ético, um trauma filosófico e uma interrogação sem resposta. O que se pode fazer… o que se deve fazer… depois da morte voluntária de alguém? Se a prevenção pretende evitar a queda, a posvenção lida com o chão. Com os estilhaços. Com o quarto ainda arrumado, o prato ainda na mesa, o gesto ainda suspenso na memória. Ela é, antes de tudo, a nomeação tardia de uma ausência, e, portanto, a tentativa de reintegrar no discurso aquilo que não cabe em nenhuma linguagem: uma vida que escolheu cessar.
Mas aqui começam os problemas. Em muitos programas de posvenção, o que se observa não é escuta, mas “gestão” da dor. A lógica biomédica estende-se ao luto: o sofrimento do enlutado vira sintoma; a saudade, patologia; a busca de sentido, delírio. Em vez de sustentar o vazio, trata-se de preenchê-lo. Em vez de acolher o enigma, trata-se de fechá-lo com diagnósticos. A dor é tratada como algo a ser “resolvido”, quando talvez ela exija apenas uma coisa: respeito… e silêncio.
Essa tendência torna-se ainda mais inquietante quando lembramos que a morte voluntária, no Ocidente, após o fim da Antiguidade Tardia, passou a ser cercada por interditos morais e jurídicos. Desde Agostinho, que a definiu como homicídio de si mesmo (e que mais tarde seria batizada de suicidium, quiçá em homenagem ao bispo), a tradição cristã condenou não apenas o gesto, mas também aqueles que a compreendiam com compaixão. Herdeira desse legado, a modernidade secularizou a condenação: se antes se dizia que o suicida pecava contra Deus, hoje se diz que sofre de um transtorno mental. Em ambos os casos, nega-se a possibilidade de um sentido.
Ora, a posvenção deveria ser, acima de tudo, a chance de restituir algum espaço de sentido ao gesto que desorganiza o mundo dos vivos. Mas como pensar um sentido que não seja moralizante, nem patologizante? Como escutar os que ficam sem fazer deles réus, cúmplices ou pacientes? Sabemos hoje, depois de Foucault, que o discurso do cuidado pode ser também uma forma de controle. A “atenção ao enlutado”, quando codificada em protocolos, corre o risco de apagar o que há de mais radical em sua experiência: o confronto com a liberdade do outro. E na configuração de nossa cultura, não há dor mais difícil de suportar do que aquela que nasce da escolha alheia de morrer. A posvenção, nesse sentido, exige não apenas empatia, exige uma ética da alteridade levada ao limite. A filosofia pode contribuir com essa tarefa, segundo penso, não para explicar o suicídio, mas para sustentar a vertigem de seu mistério. Em Platão, a morte é separação da alma e do corpo, não pode ser apressada (voluntariamente), mas exercitada (pelo exercício do pensamenot); para Agostinho, a morte voluntária é ruptura da ordem divina; para Nietzsche, pode ser o ápice de uma afirmação trágica da vida. Três olhares, três éticas, três formas de escutar o fim. Poderíamos apresentar cem outros olhares, cem outras formas de compreender a morte. E esse talvez seja o ponto mais importante: há sempre a possibilidade de variação. É por isso que penso ser possível uma história do suicídio.
Mas a questão mais dolorosa, e mais urgente, é essa: o que dizer aos que ficam? Talvez nada. Ou quase nada. A dor de perder alguém por esse tipo de morte (o suicídio é um tipo de morte, não uma causa!) não exige explicação — exige presença. O que a posvenção precisa recuperar é menos o manual de conduta do psicólogo e mais a sabedoria antiga do luto. Chorar com. Calar com. Acompanhar até o ponto em que a palavra já não alcança… e ainda assim, não sair de perto. O suicídio é uma ruptura no tempo, mas também no discurso. Deixa frases inacabadas, promessas suspensas, culpas que ninguém sabe se deve ou não carregar. A filosofia pode ajudar, sim, mas apenas se aceitar não saber. O filósofo, insisto com Platão, não é aquele que sabe: é aquele que sabe não saber. A verdadeira posvenção talvez seja esta: sustentar o inacabado.
E, por fim, resta dizer que há silêncios que não são doença… mas resistência. Talvez o luto por suicídio não precise ser curado, mas apenas legitimado. E talvez os que ficam não devam ser medicalizados (leia-se: submetidos ao modus operandi psiquiátrico), mas simplesmente ouvidos… mesmo quando nada têm a dizer. Talvez haja uma sabedoria, também, em escutar o silêncio de alguém.
Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis
Suporte emocional
As pessoas que precisam de ajuda podem recorrer ao Centro de Valorização da Vida (CVV), grupo de voluntários que oferecem apoio emocional gratuito. Saiba mais.
