
(Still Life with Skull and Quill, Pieter Claesz, 1628. Óleo sobre tela, 55 × 74 cm.
Acervo: Mauritshuis, Haia, Países Baixos.)
Existe em nossa época, tal como existiu na Antiguidade Clássica, uma conquista ética que não pode mais ser silenciada, embora frequentemente seja omitida dos debates públicos mais urgentes: o direito de morrer com dignidade. Um direito que, embora muitas vezes se traduza em linguagem jurídica ou médica, tem por origem e destino uma interrogação filosófica: uma interrogação sobre o estatuto da vida e a legitimidade de sua posse. Afinal, se há um titular da vida, e se este titular é um sujeito consciente, lúcido, ético, por que não lhe caberia a decisão última sobre os termos e os modos de sua própria morte?
O que hoje se chama de testamento vital (ou Diretiva Antecipada de Vontade) é, em seu núcleo mais sensível, uma afirmação ética e um dos poucos princípios humanistas ainda reconhecidos em nossos tempos pós-pandêmicos. Trata-se de uma declaração antecipada, elaborada por alguém em plena posse de suas faculdades, na qual se projeta no tempo futuro uma decisão negativa: “quero que minha vontade, hoje consciente, prevaleça sobre a possível ausência de lucidez, discernimento e autonomia de amanhã.” Geralmente, aconselha-se que um advogado seja consultado para a feitura do documento. Mas qualquer pessoa pode fazer um texto e registrar em cartório. O testamento vital é, nesse sentido, a recusa da obstinação terapêutica, o veto antecipado a um prolongamento artificial da vida, e, em alguns casos, a escolha serena por uma morte sem aquela interminável hospitalização de quem já não encontra mais recursos para sobreviver com dignidade no fim da vida. Nesse sentido, ele também é um antídoto contra a distanásia involuntária, isto é, contra a imposição da vontade de terceiros, ainda que motivados pelo afeto, sobre a vontade não mais exprimível de quem, por direito, é o único intérprete do próprio fim.
No Brasil, apesar de não haver uma lei federal específica que regulamente o testamento vital, sua validade é reconhecida desde 2012 pela Resolução nº 1.995 do Conselho Federal de Medicina. Essa resolução orienta os médicos a respeitar a autonomia do paciente, inclusive no que se refere à recusa de tratamentos que não sevem de muita coisa ou que sejam desproporcionais. Mas, como se sabe, resoluções não têm força de lei, o que deixa as diretivas sempre vulneráveis à contestação de familiares, instituições e até do próprio Estado, como se o sujeito deixasse de ser soberano sobre sua existência no exato momento em que mais precisaria sê-lo. Se conhecemos a vontade de um familiar, se ele expressa em vida consciente o modo como deve ser tratado no fim da vida, por amor a ele, e não por egoísmo e pela fraqueza de nossos afetos, devemos respeitar suas decisões… que estão em nossas mãos. Por esse motivo, seria interessante um debate familiar e a compreensão de a morte faz parte da vida, que ela envolve mais quem fica do que quem parte… e seria demasiado bonito conversar sobre isso… exatamente para liberar quem fica de quais quer sentimentos de culpa e de dúvidas sobre o que fazer…
Tramitam no Congresso diversos projetos de lei que buscam regulamentar a ortotanásia (que é o nome que se dá para a não intervenção de quadros que são irreversíveis), a recusa terapêutica e os próprios testamentos vitais. O Projeto de Lei nº 3.002/2008, de Hugo Leal, propõe regulamentar a ortotanásia (Até onde sei, nunca foi pautado!). O PL 6.715/2009, de Gerson Camata, sugere alterações no Código Penal para excluir a ilicitude do ato (Até onde sei, e já pesquisei esse assunto, nunca foi pautado!) Este projeto está apensado aos PLs 3.002/2008, 5.008/2009 e 6.544/2009. O PL 5.559/2016, de Pepe Vargas, Chico D’Angelo e Henrique Fontana, busca estabelecer os direitos dos pacientes, incluindo a recusa de tratamento independentemente da idade ou da gravidade da condição (Até onde sei, nunca foi pautado!). O PL 352/2019, do então deputado (hoje ministro) Alexandre Padilha, versa sobre o consentimento informado e instruções prévias de vontade. E o PLS nº 236/2012, que propõe uma reforma do Código Penal, tipifica a eutanásia e prevê sua exclusão de ilicitude em determinadas condições. Salvo minha ignorância, nenhum desses projetos foi, até hoje, debatido pelo nosso congresso. E o silêncio legislativo é um ruído ético ensurdecedor. percebem?
Vejamos então, algumas questões fundamentais: viver é dever de quem? Em nome de que princípio se obriga alguém a seguir respirando quando a dor tornou-se insuportável, e a esperança não é mais um horizonte, mas um sarcasmo? A resposta tradicional, herdeira de Agostinho e Tomás de Aquino, é que a vida pertence a Deus, ou à Natureza, ou ao Estado. Este tripé teológico-naturalista-estatal ancora parte da jurisprudência brasileira contemporânea, como se a morte de si, mesmo quando assistida ou paliativa, fosse um atentado metafísico à ordem das coisas. Mas se assim é, o que resta da autonomia moral do sujeito? A titularidade da vida, esta expressão que parece administrativa, mas é profundamente filosófica, deve significar que a pessoa é fim em si mesma, como queria Kant. E, sendo fim, não pode ser convertida em meio: nem para a medicina, nem para a religião, nem para o aparato jurídico. A vida humana é, antes de tudo, vida vivida. E uma vida vivida tem na dignidade de seu término uma das suas expressões mais altas.
A leitura dos antigos nos ajuda a compreender essa possibilidade. Não foi por outro motivo que escrevi a História do Suicídio. Os estoicos, e Sêneca em especial, nos legaram uma ética da liberdade diante do sofrimento. Em sua Carta 70 a Lucílio, Sêneca escreve:
Pois a essa vida, como você sabe, nem sempre devemos nos apegar. Pois viver não é meramente um bem, mas sim viver bem. Por conseguinte, o sábio viverá o tempo que for necessário, não tanto quanto puder. Ele vai lembrar em que lugar, com quem, e como deve conduzir a sua existência, e o que está prestes a fazer. Ele sempre reflete sobre a qualidade, e não sobre a quantidade, de sua vida
(Sêneca, Carta LXX, 4-5. Ver a minha História do Suicídio, p. 233, em que analiso essa passagem).
E é isso o que o testamento vital, em sua forma moderna, afirma: que não se vive a qualquer custo. Que viver mal, isto é, sem dignidade, sem presença de si, sem consciência, não é uma obrigação. O direito de morrer dignamente é, no fundo, o direito de não ser mantido vivo contra si mesmo, como se o corpo (sim, o corpo, mantido pelas nossas técnicas) fosse um bem que não lhe pertence, e a pessoa (o nosso ser amado), uma ausência tolerada.
É por isso que o testamento vital deve ser reconhecido como cláusula ética fundamental, não como resposta ao desespero, mas como forma de serenidade. A morte assim escolhida não é fracasso, é liberdade. É a última forma de cuidado de si, como diriam os antigos (Cuidado de si é um conceito que chega a nós por Platão, lembremos!). E talvez seja esta, afinal, a pergunta decisiva de nosso tempo: o que é mais digno? Condenar alguém a viver quando a vida já não lhe pertence, ou reconhecer a grandeza silenciosa de quem sabe que sua hora chegou, e escolhe partir? Que sejamos grandes e fortes para reconhecer a vontade expressa… de quem efetivamente a expressou em vida… quando a última hora chegar.
Prof. (e aluno) Alexandre H. Reis.
Suporte emocional
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