
O debate de Sócrates e Aspásia.
MONSIAU, Nicolas-André. Le débat de Socrate et Aspasie, século XIX. Óleo sobre tela. Museu Nacional de Versalhes, França. Disponível em: https://images.openai.com/thumbnails/f5f8a08c271d39132e70fec984fc6ace.jpeg.
A tela do pintor neoclássico Nicolas-André Monsiau, Le débat de Socrate et Aspasie, pintada no século XIX e hoje exposta no Museu Nacional de Versalhes, nos leva à Atenas do século V a.C., não como observadores da pólis (como costumeiramente ensinam os professores de história, ciência política ou filosofia), mas como testemunhas de uma cena filosófica rara: uma mulher, Aspásia de Mileto, debate com Sócrates, o símbolo por excelência da razão ocidental. É uma imagem de suspensão histórica. De um lado, um homem que não deixou obra escrita, mas cuja memória se tornou fundadora da tradição filosófica. De outro, uma mulher que tampouco deixou textos, mas que a história hesitou entre silenciar ou difamar. E, entre ambos, um momento: o debate.
A imagem é, em si, uma provocação. Ela desmente, com a linguagem própria da arte, a exclusão secular das mulheres dos espaços do saber. Sim, Platão e Sófocles, prestemos atenção em suas obras, não tinham a mesma posição que dominará o Ocidente. Não estou dizendo que a antiga Grécia não era machista. Sim ela era. E era profundamente. Mas é possível encontrar, se procurarmos, lugares para um respiro. Aspásia, amante e interlocutora de Péricles, professora de retórica, estrangeira em Atenas e alvo de ataques morais, aparece aqui não como sombra de um grande homem, mas como pensadora em pé de igualdade com Sócrates. Ela olha, fala, argumenta. Não se trata de uma figura decorativa ou de uma musa inspiradora: trata-se de uma voz. A pintura de Monsiau é mais do que um exercício de reconstrução histórica: é uma crítica anacrônica, e, como toda crítica anacrônica bem lançada, ela nos atinge no presente. Por que não há mulheres nas primeiras páginas da filosofia? Por que a Academia, não só a de Platão, mas a que herdamos dela, se constituiu como espaço masculino, e por que isso ainda persiste?
Embora Platão, em A República (Politeia), defenda a igualdade intelectual entre homens e mulheres e proponha que as mulheres guardiãs recebam a mesma formação filosófica que os homens, a própria Academia que fundou, parece não ter tido muitas mulheres entre os seus. Não por acaso, Aspásia permaneceu como figura periférica, lembrada por Xenofonte e por Platão apenas como personagem dialógica ou por sua suposta beleza e astúcia. Sabemos de uns dois ou três nomes de mulheres que estudaram na Academia nos tempos de seu fundador. Mas a estrutura da paideia grega excluía sistematicamente as mulheres do logos público. Na pintura de Monsiau, no entanto, essa exclusão é imaginariamente desfeita: o debate está em curso, o espaço do saber se reconfigura, a mulher não é ausência nem exceção. Esse gesto pictórico tem ressonância ética e política. A imagem antecipa, talvez sem querer, o debate contemporâneo sobre o lugar das mulheres na filosofia, nos espaços de poder simbólico e nas instituições acadêmicas. Quando vemos Aspásia discutindo com Sócrates, somos forçados a perguntar: quantas outras foram silenciadas antes que falassem? Quantas “Aspásias” foram soterradas pela tradição que, ironicamente, herdamos de um homem que nada escreveu?
A lição dessa bela pintura não é sobre o passado. A presença de Aspásia na tela nos obriga a revisar o cânone, a romper com a ideia de uma filosofia feita apenas por homens e para homens. A exclusão das mulheres da filosofia, e da própria Academia (depois dos tempos de sua fundação), não é natural nem necessária: é histórica. E como toda construção histórica, pode e deve ser desfeita. A pintura de Monsiau, enfim, não retrata um fato, mas sugere um contrafato: e se essa cena fosse costumeira na Academia? E se as mulheres não tivessem sido relegadas à esfera do doméstico, do privado, do não filosófico? O quadro nos convida a imaginar uma história da filosofia outra, onde o debate entre Sócrates e Aspásia não fosse uma exceção, mas o início de uma tradição. Sócrates morreu uns 14 ou 15 anos antes da fundação da Academia… mas certamente teria sorrido e se alegrado com essa conversa.
