Por Natália Flores
A frequência de casos de jovens internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) nos Estados Unidos e no Brasil por causa de complicações da Covid-19 acendeu um alerta na comunidade científica para a obesidade como fator de risco para casos severos da doença. Passados alguns meses, essa hipótese, que começa a ser comprovada por diversos estudos, traz o sobrepeso do brasileiro para o centro do debate acadêmico, e leva especialistas em saúde pública a questionar: qual o lugar da obesidade na saúde coletiva?
A importância social de discutir a obesidade ganha intensidade quando analisamos sua prevalência na sociedade brasileira. Ela é a condição com maior crescimento na população brasileira nos últimos 13 anos, superando até mesmo o crescimento da prevalência de diabetes e de hipertensão arterial, segundo dados da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2019. De 2006 para 2019, sua frequência passou de 11,8 % para 20,3%. O excesso de peso atinge uma fatia ainda maior de brasileiros: mais da metade (55,4%) tem essa condição, o que torna o cenário ainda mais preocupante.
A mudança nos hábitos de alimentação e a diminuição na prática de atividades físicas são as principais causas ambientais apontadas pelo pesquisador Licio Velloso, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para explicar a alta incidência de brasileiros obesos. “Com o crescimento da oferta de alimentos industrializados, nos últimos 30 anos nós observamos uma mudança no perfil de alimentação do mundo. A população foi deixando de se alimentar em casa, ao mesmo tempo em que foi consumindo cada vez mais produtos processados com alto valor calórico e densidade energética”.
Crédito/Foto: Charles Rabada/Unsplash
O pesquisador Airton Stein (UFCSPA), colaborador do GBEM, comenta que o aumento rápido de prevalência de excesso de peso e obesidade começou nos países de alta renda a partir dos anos 80. “Em 2015, a obesidade também passou a ser um problema de saúde pública nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Foi estimado que ela afetaria 2 bilhões de pessoas com uma prevalência de 13% em todo o mundo”.
Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais a partir dos dados do Vigitel de 2006 a 2017 revelou que a obesidade mórbida é três vezes mais frequente em brasileiros com baixa escolaridade. “O fator socioeconômico explica essas diferenças, porque ele vai influenciar no acesso das pessoas à informação e saúde. A população de baixa renda tem menos acesso a uma alimentação de qualidade, a tempo para fazer atividades físicas durante a sua rotina de trabalho”, comenta Deborah Malta, pesquisadora que coordenou o estudo. A taxa de mulheres afetadas pela obesidade mórbida foi 30% mais elevada quando comparada à taxa masculina, o que mostra que existe um recorte de gênero.
O consenso dos especialistas é que a gravidade da obesidade está no fato da doença ser um fator de risco para outras doenças. “Três das quatro principais causas de doenças não transmissíveis no mundo tem relação com a obesidade: diabetes, doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer”, afirma Airton. Licio explica que o acúmulo de gordura nas paredes internas dos vasos sanguíneos pode provocar quadros de derrame e infarto no miocárdio.
Além disso, pesquisas encontraram uma relação entre a obesidade e casos mais graves de Covid-19. O grupo de pesquisa de Licio foi um dos primeiros a alertar para esse fenômeno, em março deste ano. “A maior parte das pessoas que desenvolve o quadro grave de Covid-19 tem obesidade, diabetes e hipertensão. No caso da obesidade, uma das razões é que o vírus SARS-CoV-2 ataca o pulmão, que já é um órgão bastante frágil em pessoas obesas. Obesos têm uma dificuldade para respirar, por causa do próprio peso que elas têm que movimentar para executar essa atividade mecânica. Isso se agrava nos quadros de Covid-19, momento em que o pulmão precisa fazer um grande esforço”, explica o pesquisador.
A alta prevalência de obesidade na população traz impactos econômicos substanciais para os sistemas de saúde, já que aumenta as chances de internações e hospitalizações. Junto com desnutrição e mudanças climáticas, a carga econômica global da obesidade é estimada em 2 trilhões de dólares anuais – cerca de 2.8% do PIB mundial – por artigo publicado na Lancet. Custos diretos com cuidados de saúde e com perdas de produtividade econômica estão incluídos neste cálculo. “Estes custos são, a grosso modo, equivalentes aos custos do impacto do fumo ou da violência e da guerra, e terão um efeito maior nos mais pobres”, comenta Airton Stein.
Só em 2018, a obesidade acumulou R$1,42 bilhão de custo para o SUS, segundo um estudo feito pelo Ministério da Saúde. Neste período, 16% das internações hospitalares foram associadas à hipertensão, obesidade e diabetes. As despesas com essas três doenças alcançaram R$ 3,45 bilhões.
O espaço da obesidade nas políticas públicas
Mesmo afetando metade da população brasileira, o excesso de peso e a obesidade ainda são elefantes brancos no campo das políticas públicas. Na avaliação de Deborah, existe uma insuficiência de medidas regulatórias e políticas afirmativas sobre o tema. “Nós temos evidências que taxar refrigerantes e alimentos ultraprocessados dá resultado. O que falta é comprometimento político de levar essa discussão adiante”, comenta a pesquisadora, que coordenou durante 12 anos o Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção de Saúde, do Ministério da Saúde.
Uma evidência bastante consistente sobre medidas regulatórias de alimentos foi o que aconteceu no México em 2014. Na época com uma das mais altas taxas de prevalência de obesidade no mundo, o país conseguiu frear o consumo de fast foods e refrigerantes a partir da aplicação de um imposto de consumo sobre bebidas adocicadas e um imposto sobre vendas de alimentos com alto valor energético. Ao longo de 2014, as vendas destes produtos tiveram uma queda média de até 6% comparado a vendas pré-taxação, segundo estudo publicado em 2016 do Instituto Nacional de Saúde Pública do México. O efeito foi sentido, particularmente, por camadas de nível socioeconômico mais baixo, que reduziram em até 17% o consumo de bebidas adocicadas.
“No Brasil, o que tem sido feito em termos de políticas públicas é o reverso do cenário mexicano”, avalia Deborah. Um exemplo é o decreto assinado por Jair Bolsonaro em fevereiro de 2020, que estabelece em 8% a devolução do Imposto para Produtos Industrializados (IPI) para os fabricantes de bebidas adoçadas não alcoólicas. A medida de benefício fiscal passou a valer a partir de 1º de junho e, segundo entidades da sociedade civil, vai na contramão de políticas internacionais importantes para a redução da obesidade infantil.
Outro exemplo dos interesses por trás da alimentação do brasileiro é a recente emissão de ofício pelo Ministério da Agricultura pedindo a revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014. Enviada ao MS em 17 de setembro, a nota técnica continha críticas à classificação dos alimentos e à recomendação de se evitar o consumo de ultraprocessados. Em nota oficial, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS), da USP, se posicionou contrário a esse ofício, argumentando que a recomendação “omite os mais de 400 estudos científicos indexados na base PubMED que utilizaram a classificação NOVA e o conceito de alimentos ultraprocessados”, além de ignorar revisões sistemáticas “que demonstraram a associação inequívoca do consumo desses alimentos com o risco de doenças crônicas de grande importância epidemiológica no Brasil e na maior parte dos países, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares”.
Além da taxação de refrigerantes e alimentos ultraprocessados, Deborah acredita que a mudança no cenário da obesidade também passa pela conscientização da população e pela adoção de medidas de controle da propaganda infantil destes produtos. Crianças obesas têm maior probabilidade de serem adultos obesos e de desenvolverem diabetes e doenças cardiovasculares na vida adulta. “Proibir propaganda infantil de alimentos ultraprocessados e refrigerantes pode salvar gerações inteiras com relação a doenças crônicas e obesidade”, afirma a pesquisadora.
“A ênfase dos sistemas de saúde deveria ser nos programas de promoção de saúde e na atenção primária”, avalia Airton. A ação teria vantagens sociais e, também, econômicas. Um estudo publicado na revista “Cost Effectiveness and Resource Allocation” em 2013 mostrou que, no Canadá, programas de prevenção da obesidade têm custos modestos quando comparados aos custos elevados de internações e hospitalizações. Prevenir que as crianças fiquem obesas é melhor do que remediar o problema. Afinal, o elefante branco não vai desaparecer só porque é ignorado.