Força, Equilíbrio e Mente: Como as Artes Marciais Transformam Corpo e Emoções

Do tatame à roda de capoeira, histórias reais mostram como disciplina, cultura e técnica fortalecem a saúde mental.

Em um mundo onde os índices de ansiedade e depressão atingem patamares alarmantes, cresce a busca por alternativas que ajudem a preservar e recuperar a saúde mental. No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, em dados oficiais, cerca de 9,3% da população sofre com ansiedade e 5,8% com depressão, porém, pesquisas mais recentes indicam que 26,8% dos brasileiros foram diagnosticados com ansiedade, com um índice alarmante de 31,6% entre os jovens de 18 a 24 anos, números que colocam o país entre os líderes mundiais nesses transtornos. Nesse cenário, especialistas na área reforçam o exercício físico como uma das principais alternativas para auxiliar no processo de melhora, e, com isso, surgem as artes marciais. Através de disciplinas que exigem técnica e presença, como jiu-jitsu, capoeira e judô, é possível encontrar uma filosofia de vida que pode até ditar seu trabalho, como veremos a seguir.

Diferente de outros esportes que se concentram apenas no desempenho competitivo, as artes marciais oferecem um ambiente estruturado onde valores como respeito, paciência e cooperação são tão importantes quanto a técnica. Essa combinação única estimula a liberação de neurotransmissores ligados ao bem-estar, como serotonina, dopamina e endorfina, e, ao mesmo tempo, cria vínculos sociais que funcionam como redes de apoio emocional. Um artigo publicado em 2024, pelo site Artista Marcial, indica que práticas como judô, capoeira, jiu-jitsu, karatê e taekwondo contribuem significativamente para a redução de sintomas de ansiedade, estresse e depressão, além de melhorar funções cognitivas e promover autoestima. Em bairros periféricos e comunidades vulneráveis, essas modalidades também se mostram ferramentas de transformação social, afastando jovens da violência e criando oportunidades de vida, tanto que, em 2014, a roda de capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pela UNESCO, consolidando aquilo que mestres e alunos já sabiam empiricamente há gerações: é uma das principais formas de não acabar no mundo do crime.

 

O judô como refúgio

 

Enquanto a capoeira organiza o encontro entre música, jogo e comunidade, o judô

lapida a eficiência na ação e o respeito mútuo e o jiu-jitsu desenvolve o controle do corpo e da mente. É nesse cenário que a história de Martina Brandt Sandes De Lima, judoca de Pelotas, ajuda a traduzir números em experiência. Ela começou no judô aos quatro anos, ficou na mesma academia e seguiu competindo na infância, mesmo preferindo o treino ao pódio. Hoje faixa marrom, divide a rotina entre o último ano do ensino médio e as duas sessões semanais no tatame, com finais de semana reservados, quando possível, para ajudar a equipe em campeonatos. O que poderia soar como uma rotina esportiva qualquer se revela, na verdade, uma estratégia de cuidado. Martina conta que atravessou um histórico de depressão e que o judô foi o empurrão para sair de casa, reencontrar amigos e reconstruir a vontade de viver.
Neste processo, do aquecimento à conversa com professores, do respeito às regras do tatame à regra maior de não levar a briga para fora fica evidente que o ambiente também importa.

Na adolescência, ela se sentiu frequentando um lugar em que não pertencia. Hoje, quase
13 anos depois, encontra-se treinando com meninas e meninos conjuntamente. A meta, após a formatura deste ano, é se tornar professora de judô e cursar Educação Física, convencida de que dominar a técnica é somente o início, aprender a ler pessoas, acolher inseguranças e ensinar por meio de uma comunidade é uma das partes mais importante.

No Rio Grande do Sul, onde indicadores de depressão são historicamente preocupantes e a vida escolar costuma apertar no terceiro ano do Ensino Médio, a rotina de treinos tem servido ainda como antídoto digital. São horas a menos de feed e a mais de olho no olho, espaço para falhar sem humilhação e tentar de novo sem rótulos. Quando as dificuldades batem, como em lesões ou desânimos, o suporte aparece em forma de professores que sentam ao lado, colegas que cedem o tempo de luta, ou da viagem longa em
equipe para um Meeting (Campeonato de judô, que serve para definir os classificados que representarão as Seleções Brasileiras de Transição do Judô) de três dias, em que a ansiedade é reconhecida, nomeada e manejada aos poucos.

Quando a literatura fala em redução de agressividade e aumento de inteligência
emocional no judô, parece descrever o que Martina aprende no corpo: como cair, como
levantar, e principalmente como perder sem desistir.

 

A ginga da capoeira

 

Se o judô organiza o mundo pelo princípio da eficiência e do benefício mútuo, a
capoeira o reorganiza pelo canto, pela ginga e pela roda. Mestre Jarrão descreve a capoeira como sagrada e familiar, um espaço de respeito e aprendizado circular, onde todos ensinam e todos aprendem.

Para as crianças, esse arranjo vira gramática de convivência: atenção ao outro, cuidado constante, a certeza de que na roda ninguém está só. Para adultos, ela opera como refúgio de calmaria, uma válvula de escape paradoxal em que treinos puxados se suavizam na música e
no compasso. Em territórios periféricos, Jarrão fala de capoeira como prevenção, reforçando uma tese que gestores de saúde pública conhecem de perto: onde há cultura e esporte, há menos violência e menos uso de drogas ou álcool.

O mestre lista casos de ex-usuários, ex-integrantes do crime e pessoas em separação ou sob pressão no trabalho que encontraram na capoeira um jeito de recomeçar. Esses relatos sugerem conversa com pesquisas recentes da Fiocruz, que têm aproximado capoeira e saúde mental a partir de evidências sobre identidade, pertencimento e reorganização de vínculos em serviços como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). A chancela da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) ajuda a explicar por que funciona: a capoeira é, por definição, uma tecnologia social que integra corpo, música e comunidade, atualizada a cada roda. Mesmo em cenários clínicos, como em projetos direcionados a pessoas com Parkinson, deficiências mentais ou transtornos psicológicos, a combinação de ritmo, interação e movimento tem mostrado ganhos em equilíbrio, autoestima e bem-estar, lembrando que cuidado também é alegria e brasilidade.

Mestre Jarrão em uma roda de capoeira na frente do Mercado Central Pelotense

Para todos verem: A imagem apresenta uma roda de capoeira com cerca de dez homens, sendo dois de costas para a câmera, com a camiseta da escola pertencente, dois realizando a ginga, um deles branco, de cabelo grisalhos e o outro, que está em um pé só, negro e de dreads. Também mostra os outros seis homens virados para a câmera tocando os instrumentos e batendo palmas. O tapete é circular e vermelho vivo e as paredes do mercado são bege com detalhes em marrom e vidro.

 

O auxílio do jiu-jitsu

 

Nas bordas entre esporte e segurança pública, a experiência do ex-professor de jiu-jitsu e atual policial penitenciário Lucas Belletti acrescenta nuances valiosas. Ele resume a curva de aprendizagem sem adorno: o primeiro ano é duro, dói no corpo e no ego. Quem chega com a autoconfiança inflada invariavelmente perde para gente menor, para mulheres mais experientes, para iniciantes que entenderam primeiro como usar alavancas e base. Esse choque inicial, que machuca psicologicamente, é também uma escola de humildade e persistência.

Lucas Belletti enquanto professor com a sua aluna que não aceitava toque, tinha problemas de fala ou expressão de sentimentos, e teve uma melhora significativa após o judô, até mesmo no âmbito escolar.

Para todos verem: Na imagem, em um tatame azul de academia de jiu-jitsu, um homem sorri enquanto segura uma mulher de forma brincalhona sobre os ombros. Ele veste quimono preto com faixa marrom e óculos; ela, quimono branco com faixa amarela e preta, e cabelos longos e cacheados que caem para baixo. Ao fundo, na parede clara, há o logotipo “Mestre Julio Secco Jiu-Jitsu”, um relógio digital marcando 11:00:15 e a frase “Supere seus limites e conquiste seu eu”. A cena transmite leveza e diversão.

Lucas treina há quase 11 anos e não pretende parar. O que ele descreve como transformação interna aparece na forma de se desligar do mundo, principalmente em uma profissão tão perigosa. No trabalho, essa disciplina assume um contorno ético e vital. Ele fala em autocontrole como condição de segurança. Perder o domínio numa tratativa com um preso pode matar, e o oposto também é verdadeiro: intervir sem noção técnica pode ferir gravemente um agressor.

O jiu-jitsu, no relato de Lucas, ensina a defender a si e ao outro, controlando, imobilizando e sabendo o que fazer quando alguém “apaga”. A regra do tatame vira política de redução de danos atrás das grades. Pesquisas postadas na U.S. NEWS reforçam exatamente essa importância: reduzir o uso de força potencialmente letal, diminuir lesões de policiais e de pessoas abordadas e, por extensão, proteger a saúde mental de quem está na ponta.

Curiosidade: O Artigo Brazilian Jiu Jitsu—Inspired Tactics Training on Use of Force and Related Outcomes publicado em 2024 pela Cardiff University pela mostrou que o treinamento policial inspirado no Jiu-jitsu pode reduzir em até 59% o uso da força e cortar pela metade as lesões em suspeitos e agentes. Além de aprimorar o controle físico, a prática fortalece a saúde mental, aumentando confiança, resiliência e reduzindo sintomas de estresse pós-traumático, fatores essenciais para o bem-estar e a segurança no dia a dia da profissão.

As três trajetórias se entrelaçam em perguntas que vão além da hora treinada. O que torna uma academia, uma roda ou um tatame, ambientes que favorecem saúde mental? Na prática, a resposta passa por cinco pilares que aparecem tanto nos relatos quanto nos estudos. Primeiro, previsibilidade. Sessões com início, meio e fim, progressões por faixa ou por jogo, rituais de abertura e encerramento criam sensação de segurança. Segundo, pertencimento.

Terceiro, agência. O aluno ajusta metas, compara consigo mesmo, aprende a medir progresso por microvitórias. Quarto, regulação. Técnicas de respiração, pausas estratégicas, respeito às regras e ao árbitro são treino de autorregulação emocional. Quinto, transferência. O que se aprende ali dentro (cair sem se quebrar, pedir ajuda, controlar a força) é aplicável lá fora, onde conflitos são menos coreografados e mais imprevisíveis. Tudo isso vale para reconhecer as artes marciais como contexto de cuidado.

Os depoimentos revelam temas pouco visíveis. No gênero, Martina Brandt lembra o início como uma das poucas meninas no tatame e a chegada de mais mulheres, com turmas específicas para quem prefere começar separada. Em competições, notou olhares que viam a categoria feminina como sem graça, cenário que vem mudando. As artes marciais podem impulsionar autoestima e autonomia feminina, mas pedem vigilância contra preconceitos. Na capoeira, Mestre Jarrão evidencia a cultura como política de prevenção: menos evasão escolar, mais acesso a serviços e repertório cultural ampliado. Já na segurança pública, Lucas Belletti revisa narrativas sobre masculinidade e força. Um policial que admite a necessidade de respeitar limites e valorizar técnica sobre brutalidade reforça uma saúde coletiva que vai das corporações à sociedade.

Podemos concluir que, apesar das diferenças entre as trajetórias e visões de cada entrevistado, há um ponto em comum: todos reconhecem que o esporte vai muito além da performance física. Seja no tatame, na roda de capoeira ou na gestão pública, ele se apresenta como um espaço de transformação, disciplina e superação. Ao unir diferentes histórias e perspectivas, reforça-se a ideia de que investir no esporte é investir em pessoas, e que os impactos positivos se multiplicam dentro e fora das salas.

 

Autora: Amanda Marin

Você pode gostar...